quarta-feira, 11 de julho de 2012

A Alfândega e a fronteira de Alcoutim

Sanlúcar, o Guadiana e Alcoutim. Foto JV, 1991
Desde que entrou na posse dos portugueses, vem de sempre a posição raiana de Alcoutim.

O Guadiana actuou como marco divisório fronteiriço, salvo excepções, como nas zonas de Serpa-Moura ou ao sul, onde tremulou a bandeira portuguesa na actual cidade de Aiamonte. A tradição de que o primitivo castelo de Sanlúcar tivesse sido obra de D. Sancho II quando investiu por este lado está, segundo pensamos, por provar.
D. Dinis
O Tratado de Alcanices (1297) veio a definir, contando com a habilidade política de D. Dinis, as fronteiras que chegaram com pequenas modificações até hoje, ainda que não seja esquecido o engulho da cidade bem portuguesa de Olivença.
Alcoutim e Sanlúcar, as irmãs “siamesas” como bem as definiu Luís Cunha, estiveram sempre e referimo-nos às suas gentes, viradas e não de costas, uma para a outra, com enormes carências devido, principalmente, ao seu isolamento.

Se a passagem clandestina sempre existiu, a legalizada com o consequente pagamento de impostos fez-lhe, segundo parece, companhia até 1936.

Sabe-se que o surto de comércio externo, ao longo do século XV, obrigou movimento alfandegário e que, Diogo Pereira criado de D. Afonso V, obteve a recebedoria da Alfândega desta vila. (1)


O mesmo rei retirou a D. Maria Freire a dízima da alfândega de Alcoutim, dando-lhe em contrapartida dezasseis mil reais de tença.

 A 13 de Julho de 1481 fez-lhe doação da dízima de todos os espelhos, aguilhós, pentes, cofres, arcas e de todas as outras coisas de que el-rei havia dízima na alfândega de Alcoutim. A Infanta D. Joana tinha a mesma mercê em relação à alfândega de Lisboa. (2)

 Lourenço José de Mendonça Mascaranhas é nomeado, por carta de Mercê de D. Maria I, de 26 de Agosto de 1782, Juiz da Alfândega de Vila de Alcoutim (3) funções que vem a desempenhar pelo menos até 1805, admitindo que o possa ter sido por mais dois ou três anos, pois nesse ano exercia as funções de Provedor da Santa Casa da Misericórdia. Ainda que exista uma pequena diferença no nome, tudo indica tratar-se da mesma pessoa. (4)

 Por esta altura exercia as funções de Feitor da mesma Alfândega José Rodrigues Pereira por carta de nomeação, igualmente de D, Maria I, datada de 25 de Fevereiro de 1786. (5) e Pedro José de Andrade é nomeado escrivão da Alfândega por carta de D. Maria I datada de 29 de Outubro de 1790. (6)

 Em data mais recuada e por Mercê de D. João V de 20 de Junho de 1718, Manuel Martins, filho de Francisco Martins é nomeado escrivão das sisas acumulando também o lugar de escrivão da Alfândega. (7)

Um decreto de 13 de Janeiro de 1834 reuniu os antigos serviços de Alfândega Grande do Açúcar, da Alfândega do Tabaco e da Casa das Índias, na Alfândega Grande de Lisboa. Ao mesmo tempo, foram fixadas as atribuições do pessoal, organizou-se com carácter militar o corpo de guardas da mesma Alfândega e regulamentaram-se os respectivos serviços. (8)

Nesta altura, mais precisamente em 6 de Setembro daquele ano, é nomeado interinamente escrivão da Alfândega de Alcoutim, José Pires dos Reis, isto enquanto sua Majestade não mandar o contrário, de sentimentos livres que tem prestado serviços à causa da Liberdade.

Em algumas Alfândegas do País, as receitas orçavam pelas despesas de manutenção, como era o caso de Alcoutim, que no ano de 1835 tinha 31$790 de receita e despesa. (9)

Do Palácio das Necessidades, em 20 de Dezembro de 1837 é expedida a seguinte correspondência:- Manda a Rainha, pela Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, remeter ao ajudante do Procurador Geral da Coroa as inclusas cópias autênticas da Representação do Director da Alfândega Grande de Lisboa, e do ofício a que ele se refere do Administrador do Concelho de Alcoutim, acerca das prevaricações e violências cometidas por alguns Empregados da Alfândega daquela vila, a fim de que servindo os ditos documentos para a formação do corpo de delito, promova pelos Agentes do Ministério Público os termos Judiciais que tiverem lugar por semelhante facto.

Palácio das Necessidades
Em Sessão da Câmara de 5 de Agosto de 1838, acordou-se por unanimidade que nenhum benefício, antes pelo contrário, tem experimentado o município com a execução da nova Pauta das Alfândegas, aprovada pelo Decreto de 10 de Janeiro de 1837 e que tal pauta tem cooperado muito para a propagação do contrabando.

O Decreto de 27 de Abril de 1842 fornece a Alcoutim o seguinte quadro da Alfândega: um subdirector que será também recebedor e verificador, um escrivão de receita, que será também contador, um porteiro que será igualmente medidor e pesador, um meirinho, dois guardas a cavalo e dois a pé.

Vem a ocupar o lugar de Subdirector António Pedro Teixeira, nomeado por carta de D. Maria II de 18 de Abril de 1845. (10)

A Câmara deliberou sobre a extensão do terreno que deve pertencer à fiscalização da Alfândega da vila. Assim, foi considerado todo o terreno que vai desde a ribeira do Vascão até à de Odeleite, aliás, é este o espaço que há muito tem sido fiscalizado. (11)

Acontece que o Juiz Ordinário e Subdirector da Alfândega residiam nas Casas da Câmara onde estavam também os seus serviços de Alfândega. Entende a Câmara que esta situação não lhe convinha e que à mesma só competia fornecer uma sala para as “Audiências do Juízo”. Foi resolvido oficiar ao interessado neste sentido que não se mostrou disposto a abandonar a residência. (12)

Em 28 de Janeiro do mesmo ano, o Subdirector da Alfândega apresenta à Câmara uma proposta para tornar os seus serviços mais eficientes e esta só responde dois anos depois!

Analisado o assunto, (13) tomaram-se as seguintes posições:

Escaler
 "1º - A existência de um escaler, que ronde o Guadiana, deverá produzir óptimos resultados. Não convém, porém, suprimir os guardas a cavalo pelos motivos expostos pelo Director do Círculo, em 22.03.1844, devendo sim, ser suprimidos os guardas a pé.

2º - Que estabelecido o escaler, será mais conveniente haver em lugar de porteiro, um meirinho, o qual satisfaça, além das obrigações do seu cargo, também as que são indicadas pelo Subdirector.

Sabemos que em 1846 eram guardas da Alfândega, Mateus António Xavier e Francisco Maria Xavier de Andrade, sendo Justino José Gomes Monteiro considerado empregado de Alfândega. Em 1854, António da Silva era chefe de guardas da Alfândega, por carta De D. Pedro V datada de 8 de Abril (14) enquanto Sebastião José de Freitas, por Mercê de D. Maria II, datada de 12 de Maio de 1853, é nomeado guarda a pé, por um ano, da mesma Alfândega. (15)

Em 1858 o lugar de Chefe de Guardas passou a ser desempenhado por António Simão Vieira. (16)

A reforma aduaneira introduzida pelo Decreto de 7 de Dezembro de 1864 coloca a Delegação da Alfândega de Alcoutim dependente da Alfândega de Olhão, considerada de 2ª classe. (17)

Manuel António de Almeida que tinha sido escrivão da Alfândega em 1855 passa a Subdirector da mesma por carta de 20 de Março de 1863. (18)

Alcoutim visto de Sanlúcar. Foto de JMN, 2012
E as transformações na rede alfandegária continuam.

Em 1875 foi criada uma secção para a fiscalização externa das Alfândegas, compreendendo a área desde Olhão até Mértola, sendo nomeado seu chefe, António José Ramos Faísca Caimoto, da vila de Alcoutim. (19)


Edifício onde funcionou a Alfândega. Foto JV
Dois indivíduos (pai e filho) são presos pelos guardas da alfândega, devido a terem insultado os remadores da mesma. (20)

Os guardas, no exercício da sua função, entre Lutão e Martim Longo, atiraram sobre o sangrador, José de Sousa Barão, provocando a morte do animal que montava. (21)

O Tribunal de Contas em acórdão de 1 de Junho de 1880, proferido no processo de gerência de L. F. de M. e Brito, na qualidade de Subdirector da Alfândega desta vila, no período de 12 de Julho até 9 de Setembro de 1874 (?), condena-o ao pagamento de 29$834 réis. Os éditos correram por esta Administração do Concelho. (22)

Pelo ofício nº 19, de 25 de Fevereiro de 1881, informa o Administrador, o Delegado do Procurador Régio da Comarca de Tavira que se ignora se é ou não vivo o referido funcionário e no caso de o ser, qual a sua residência e possíveis haveres.

Diz o Administrador que se lembra de, pelo menos, há trinta anos, ter sido transferido para a Alfândega de Setúbal e sabe igualmente que é natural da cidade de Faro, locais onde poderão ser obtidas mais informações. (23)
Em 1882 Fontes Pereira de Melo procede a outro reajustamento alfandegário, sendo Alcoutim classificado como delegação de 2ª classe.

Como se vê, várias transformações sofreu a Alfândega alcouteneja mediante as reformas introduzidas, pautadas umas pelo cariz político outras tomando em consideração o movimento operado. Com maiores ou menores atribuições, ora como delegação ora como posto, a verdade é que ia servindo, fundamentalmente, o interesse das duas povoações.

Os mercados da vila, no 4º domingo de cada mês, eram importantes pelo intercâmbio comercial de gado grosso, cavalar e muar e a transacção de ovos e aves com destino ao país vizinho aferia-se pelo mesmo diapasão.

Era importante também a comunicação humana em termos de verdadeira amizade e sob todos os pontos de vista. Os cruzamentos sanguíneos mais apertavam esses laços. (24)

Depois a Guerra Civil espanhola pôs fim a tudo isto e a fronteira fechou em 1936, segundo dizem, por imposição do Generalíssimo Franco. A rígida interdição da comunicação, retirando ao rio a função de elo de ligação, fez dele barreira isoladora.

Começou por abrir em Setembro pelas Festas da Vila e pela Páscoa, pelas da Virgem de La Rábida. Depois foram contemplados o Natal e outras situações.

O tratado luso-espanhol de 1960 previa tal abertura, mas ainda hoje se espera por ela. (25)

Luís Cunha foi um acérrimo defensor da abertura da fronteira, não na qualidade de Presidente da Câmara que era, mas sim como simples alcoutinense que se honrava de ser. O talento da sua pena demonstrou bem a justeza do seu sentir.

Ambas as povoações mantêm esse grande desejo que naturalmente floriu com o 25 de Abril.

Fernando Lopes Dias, presidindo à Comissão Administrativa, Júlio António Rosa, primeiro presidente eleito e Manuel Cavaco Afonso, que efectuou três mandatos, nunca descuraram tal assunto, colocando-o em posição de prioridade. As forças vivas de Sanlúcar apoiaram sempre iniciativas deste tipo e muitas vezes tomaram a “liderança” do processo.

Em 1974, o prof. Trindade e Lima, que foi presidente da Câmara, quando a fronteira ainda estava aberta, defende a sua reabertura no jornal O Povo Algarvio, de Tavira. (26)

Em 1979, o jornal O Dia noticiava, segundo revelação do presidente Júlio Rosa, uma reunião em Huelva entre os responsáveis pelos distritos e das localidades fronteiriças, para avaliarem da possibilidade da reabertura da fronteira. (27)

Desconhecemos as conclusões dessa reunião.

Sanlúcar. Foto de JMN, 2012
Em 1981, o vereador, Francisco Ribeiros, em declarações prestadas ao Correio da Manhã, diz que a abertura da fronteira poderia contribuir para o descongestionamento do tráfego em Vila Real de Santo António. (28)

É lançada nova ofensiva pela municipalidade alcouteneja em 1983, com cobertura pela imprensa. Reivindicam mesmo que a ponte internacional sobre o Guadiana seja construída em área da sua jurisdição, ligando a vila a Sanlúcar. (29)

O Alcaide de Aiamonte chegou a tomar posição sobre o assunto, não o apoiando, naturalmente.

Em entrevista ao Correio da Manhã, o presidente da Câmara, Manuel Cavaco Afonso, declarava:- Sempre que há campanhas eleitorais, é o ponto quente, mas só que essas campanhas passam e a fronteira continua por abrir.

Estes últimos parágrafos escritos em 1985 estão desajustados nos dias de hoje. Não houve a abertura formal da fronteira, que nunca foi conseguida, mas a integração dos dois países na Comunidade Europeia tudo modificou.

NOTAS

(1) – História de Portugal, J. Veríssimo Serrão, II Vol. p. 234.
(2) – Brasões da Sala de Sintra, Anselmo Braamcamp Freire, Vol. III, pág.349IN-CN (Edição facsimilada da de Coimbra, 1930.
(3) – PT-TT-RGM/E/113883 – D. Maria I, liv.13, fl. 190.
(4). - Livros de actas das reuniões da Irmandade.
(5) – PT – TT – RGM/E/ 106672 – Chancelaria de D. Maria I, liv. 19, fl. 197.
(6) – PT – TT – RGM/E/ 116136 – Chancelaria de D. Maria I, liv. 26, fl. 49.
(7) – PT – TT – RGM/C/10/94509 – Chancelaria de D. João V, liv. 10 fls. 316.
(8) – Dicionário de História de Portugal (Direcção de Joel Serrão), Vol I pp 95 e 96.
(9) - História de Portugal, Joaquim Veríssimo Serrão, Vol. VIII, p. 299.
(10) – PT – TT – RGM/H/232303 – Chancelaria de D. Maria II, liv.23, fls. 171-172.
(11) – Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 21 de Janeiro de 1843.
(12) – Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim 6 de Outubro de 1843.
(13) – Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 10 de Março de 1845.
(14) – PT – TT – RGM/I/ 217090. Chancelaria de P. Pedro V, liv. 4, fl. 218.
(15) – PT – TT – RGM/H/232393, Chancelaria de D. Maria II, liv. 39 fl. 282.
(16) – PT – TT -  RGM/I/ 216818, Chancelaria de D. Pedro V, liv. 14, fl. 212.
(17) – História de Portugal, Joaquim Veríssimo Serrão Vol. IX, p. 287.
(18) – PT – TT – RGM/J/2/184293, Chancelaria de D. Luís I, liv. 2, fl.241.
(19) – Of. Nº 57 de 20 de Outubro de 1875.
(20) – Of. Nº 48 de 29 de Março de 1877.
(21) - Of. nº 186, de 7 de Dezembro de 1877.
(22) – - Ofs. nºs 48 e 67 de 6 de Julho e 7 de Julho de 1880, do Administrador do Concelho.
(23) - Of. nº 19 de 25 de Fevereiro de 1881 do Administrador do Concelho ao Delegado do Procurador Régio da Comarca de Tavira..
(24) - “Alcoutim e S. Lucar (Vilas de Portugal e de Espanha) devem reatar a amizade que as unia”, Luís Cunha, Diário Popular de 13 de Maio de 1968.
(25) - “Uma estrada marginal ligando Alcoutim a Castro Marim oferecia extensa zona venatória ao turismo”, Luís Cunha, Jornal do Algarve de 7 de Abril de 1973.
(26) - O Povo Algarvio de 5 de Novembro de 1978.
(27) – “Em estudo a abertura da Fronteira com San Lucar”, O Dia de 13 de Maio de 1979.
(28) – “Alcoutim insiste em ter aberta a sua fronteira” Correio da Manhã de 20 de Agosto de 1981.
(29) – “Alcoutim quer ponte sobre o Guadiana e porto de recreio”, Jornal do Algarve de 25 de Agosto de 1983 e ainda “A ponte do Guadiana”, Correio da Manhã, de 29 de Agosto de 1983.