terça-feira, 3 de julho de 2012

Lisboa - Paris por cinco contos de réis [5]



Escreve
 
 
Amílcar Felício




Armando e Faustino dormiram a bandeiras despregadas na sua primeira noite parisiense, naquela pensão rasca que lhes tinha “sabido” a uma verdadeira estada num Palácio Real. Quando acordaram no dia seguinte, já o sol ia alto.

Tinham decidido ficar um dia em Paris antes de prosseguirem viagem até ao próximo porto de abrigo – um contacto que possuíam em Bruxelas -- para conhecer os famosos cafés do Quartier Latin, que se dizia frequentados por uma chusma de portugueses dos mais variados matizes. Tinham curiosidade em conhecer o ambiente ao vivo, para confirmar se a bota batia com a perdigota.

E que “fauna” que eles foram encontrar por lá, caramba! Desde gente de vida fácil a bufos da pide apontados a dedo por todos até revolucionários de café, passando por vadios e hypies de todas as cores e sabores tudo circulava por ali... mas também havia gente boa de trabalho no meio daquele folclore, diga-se em abono da verdade.

Para seu espanto começaram por encontrar antigos camaradas de tropa, gente equilibrada e interessante que se tinham antecipado a eles, ainda a “saborear” as suas arriscadas estórias de deserção. Mas contra todas as previsões e expectativas também por lá vagueavam verdadeiros aventureiros, para quem Armando olhava na tropa como “os futuros heróis” da guerra das colónias quer pela sua loucura, quer pela entrega entusiástica às lides militares. Contariam também as suas tresloucadas odisseias da travessia da fronteira, com direito ao rebentamento de granadas para comemorar o acontecimento ou para espantar os perseguidores como quem espanta pardais.

Velhos conhecidos assim como conhecidos de última hora, todos faziam força para aliciar Armando e Faustino a permanecer em Paris com o argumento de que precisavam de um “banho de civilização urgente”, pois tinham acabado de chegar e ainda vinham em “estado selvagem puro”. Descreviam Paris como a cidade ideal para todos os gostos e feitios e aonde não faltava de nada. Armando e Faustino achavam piada àquele folclore tão diversificado, mas não era bem aquilo que procuravam nem era aquilo que os seduzia. Não tiveram qualquer dúvida em prosseguir viagem no dia seguinte.
E assim aconteceu. Depois de mais uma noite bem passada na “sua” pensão rasca apalaçada, lá agarraram na trouxa e fizeram-se à estrada à boleia, para poupar os parcos tostões que ainda resistiam. Da famosa cozinha francesa levavam apenas como recordação o paladar do célebre “cacete francês”, pois atravessariam a França a comer cacete francês com manteiga com alguns 50 centímetros de comprimento e um copo de leite quente de quando em vez para aquecer a alma naquele inverno que lhes gelava as entranhas e lá se fizeram à primeira boleia. 

Deixariam Paris e apanharam boleia até à cidade francesa de Valenciennes. Conseguiriam a seguir nova boleia mas desta vez de um carro belga por estarem já a menos de 30 quilómetros da fronteira e por se tratar da melhor maneira de entrar na Bélgica, como o amigo Carlos lhes tinha aconselhado. Cometeriam contudo um erro grosseiro de palmatória.

Cidade de Valenciennes

Ao longo da viagem, conversa puxa conversa lá foram falando com o condutor belga quer da miserável situação do Portugal de então, quer de situações da sua própria vida pessoal. Já a uns 200 metros da fronteira perto de um rio e de uma ponte que conduzia à cidade fronteiriça belga de Tournai, o condutor parou o carro e pediu delicadamente a Armando e a Faustino para saírem, porque não se queria meter em sarilhos.

Pouco passaria das 9 horas da noite. Com temperaturas negativas de bater o dente e todos aqueles campos em volta como se fossem um mar de gelo em pedra a que os franceses chamavam de “verre glace” com mais de 50 centímetros de altura, Armando e Faustino sentiam-se num outro mundo. Nunca tinham visto nada semelhante. Parecia-lhes que estavam no Pólo Norte. Em contrapartida na escuridão da noite e com um frio de rachar, aquele deslumbramento envolvente transformava-se numa solidão pesada e deprimente que esmagava qualquer humano e de aonde apetecia fugir.

Cidade de Tournai (Bélgica)

Armando e Faustino depois de estudar o local à distância, arriscaram discretamente a sua sorte. Esperando o momento para apanhar os guardas belgas distraídos, tentaram atravessar a ponte sobre o rio esgueirando-se sorrateiramente. A ponte era nem mais nem menos do que a própria passagem da fronteira, com guardas belgas à saída já no lado da Bélgica e guardas franceses do outro à entrada, pois que naturalmente metade da ponte era belga e a outra metade era francesa.

Já mesmo a pisar território belga ouve-se uma sinfonia de apitos e mais apitos. Eram os guardas belgas que corriam acelerados para eles, levando-os para a sua guarita. Falavam uma língua estranha e não se percebia patavina do que diziam. Parecia que lhes pediam o passaporte que eles não tinham. Eram belgas flamengos, uns latagões louros que com aquele linguarejar esquisito mais pareciam restos de boches alemães que tinham sobrado da 2ª Guerra Mundial. Acabariam por entrega-los às autoridades francesas, que lhes fariam um longo inquérito de quase 2 horas, no meio de uma longa conversa à francesa por vezes amena e simpática.

Armando e Faustino explicavam-lhes que a passagem por ali era apenas um recurso para chegar à Holanda e seguir para a Suécia. Os guardas franceses retorquiam que “vocês não podem seguir pois até podem ser desertores sabe-se lá, mais isto e mais aquilo etc. e tal...”. Mas Armando e Faustino insistiam que não, que tudo estava em ordem e que apenas iam trabalhar, mas nada feito. “Então se é para trabalhar, fiquem em França que é o melhor país para vocês”, remataram os franceses fazendo jus ao seu tradicional chauvinismo. E assim se despediram das autoridades francesas, ficando por ali entregues a si próprios no meio daquele deserto de gelo e daquela escuridão desoladora.

Já na estrada a pé em direcção a Valenciennes de aonde tinham vindo e sem saber muito bem o que fazer à vida naquele ambiente aterrador e depressivo, Faustino descontrola-se completamente entrando num choro convulsivo e gritando como um louco para Armando que “temos que entrar esta noite na Bélgica custe o que custar, nem que tenhamos que atravessar o rio e se não quiseres vir, vou eu sozinho!”. Armando estava longe de imaginar ver Faustino claudicar emocionalmente daquela maneira, mas percebia que naquele ambiente depressivo só poderia tratar-se de um ataque de ansiedade e pânico.

 De facto já tinha assistido a situações semelhantes durante a desumana e sádica recruta na tropa com outros camaradas que em situações psicológicas limite, depois de passarem uma manhã debaixo de fogo real e com minas a rebentar-lhes a um ou dois metros ou depois de estarem com uma lata pendurada a um palmo do nariz e um oficialzito pateta divertindo-se de gozo a disparar balas reais de G3 à lata, desmoronar-se-iam psicologicamente, sendo levados de charola em choro e aos gritos para o hospital.

Preocupado, imaginava que corria o risco de perder o amigo Faustino naquele estado de descontrolo emocional, pois o rio ainda tinha uns bons 20 metros e à vista parecia ser profundo, sem contar com a temperatura da água que deveria dar para congelar. Tinha que se impor custe o que custasse para neutralizar a vontade de Faustino, qualquer que ela fosse. O relógio cavalgava aceleradamente para a meia-noite.

No meio daquela prova de sobrevivência inesperada e do desvario para onde Faustino tinha resvalado, Armando agarra-o pelos colarinhos agressivamente e abana-o com quanta força tinha para lhe tirar qualquer dúvida, gritando-lhe “ouve-me de uma vez por todas pá, daqui para a frente fazes o que eu disser e acabou a conversa! Reparei que a uns três ou quatro quilómetros atrás passámos por uma Oficina isolada à beira da estrada e vamos até lá para ver se o dono nos deixa dormir nem que seja dentro de um carro, pois passar a noite ao relento corremos o risco de acordar em pedra. E amanhã tentamos atravessar a fronteira novamente durante o dia!” Faustino lá se acalmou depois daquele safanão de poucos amigos e lá continuaram estrada fora.


Oficina
Andaram uns quilómetros para trás até à Oficina e lá bateram à porta. Contaram ao proprietário as suas desventuras, pedindo-lhe se os deixava dormir dentro de um carro, pois tinham pouco dinheiro. O homem foi simpático e compreensivo. “Isto não está tempo para dormir em carros, eu conheço uma pensão de uma pessoa amiga em Valenciennes e levo-vos até lá para ver se com esse dinheiro, ela vos deixa dormir por lá”. E assim fez, conduzindo Armando e Faustino no seu carro até à referida pensão em Valenciennes.

Apesar do dinheiro ser curto para os preços praticados, a Senhora da pensão mostrando grande compreensão faria questão de lhes deixar ainda uns trocados na algibeira para uns cafés no dia seguinte, o que foi simpático e muito agradecido quer por Armando quer por Faustino. E por ali pernoitaram, pois iriam tentar um novo esquema de passagem da fronteira para a Bélgica no dia seguinte.

(CONTINUA)