quinta-feira, 19 de julho de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXXII



Escreve

Daniel Teixeira


















O TI MARCOS

O Ti Marcos, por esta ordem, era tosquiador, barbeiro e comia coxas de rã. Morava no final da azinhaga que partia do antigo Lagar dos Tomáses, depois de passado um espaçoso terreiro que fazia uma das entradas para as moradias destes Lavradores e donde se via a entrada da casa que foi do Sargento Gabriel e da Dona Maria, Tomás por nascimento.

Agora, e segundo a foto do Zé Varzeano existe lá em frente da casa uma palmeira no local onde antes estava uma pereira, normalmente esquelética e com frutos tamanho mini, não por falta de cuidado mas porque estava mesmo mal situada no isolamento da encosta, não retendo a água das regas e sendo fustigada pelas enxurradas de inverno que lhe punham as raízes à mostra.


Um renque de casas, palheiros e armazém de carros de besta dava então início ao renque (quarteirão) onde trabalhava (na sua tosquia) e vivia o Ti Marcos. Na foto acima vê-se a minha pessoa envolvida numa análise profunda do sistema de atrelagem do animal com uma camisa de cor a condizer com a época (anos 70/80). Para o lado direito da foto era o final deste renque, não sem antes haver uma casa de habitação (não habitada) da minha Tia Zabelinha. Para o lado esquerdo, puxadas para o centro do quadrante, estavam então as casas de habitação, e não só, dos Lavradores Tomás tal como já referi.

Sendo o Ti Marcos o personagem desta história em teoria eu deveria passar a falar nele já, mas esta lembrança da casa da minha Tia Zabelinha (que não se vê na foto) fez-me lembrar um aspecto da vida no Monte que acho interessante sem ser transcendental, é claro. No correr do quarteirão havia uma outra casa da minha Tia Bia (também não habitada) e do lado direito do quarteirão havia um palheiro do meu avô com uma pequena cerca. Todas elas herdadas do ramo Coelho da minha avó como deduzo.

Ora a vida normal do dia a dia passava-se em habitações próximas das zonas de serviço (cozinha principalmente) e toda essa vida tendia a concentrar-se no mínimo de espaço geográfico possível: da cozinha da minha avó havia uma entrada (não utilizada) que dava directa para as costas da arramada, a minha Tia Zabelinha fazia 90% da sua vida num renque de casas (com cozinha e arramada inclusas) embora a sua casa de habitação (de dormir) fosse a vinte metros de distância e a minha Tia Bia guardava os trastes nesta sua casa que nem secundária era embora vivesse a cerca de cinquenta metros dela.

O meu avô, por sua vez, fazia da sua casa nesta zona, palheiro, mas muito pouco usado no dia a dia. Devo dizer que esta casa dele tinha mais condições para arramada do que a outra que era usada. Os animais tinham de se «agachar» para entrar na arramada mas era também porque não sabiam baixar apenas a cabeça (coisa esquisita diga-se) uma vez que a porta de entrada era muito baixa na sua percepção e não dava para subir mais uma vez que o tecto começava logo ali.

Na arramada da minha Tia Zabelinha (e Tio Afonso) passava-se o mesmo: as mulas, ou uma mula e um macho, também tinham de se baixar sem necessidade na nossa perspectiva de humanos: dava à vontade, num caso e noutro, para eles entrarem nas calmas e ainda sobravam mais de vinte centímetros. Na foto acima vê-se uma porta arranjada, mas pelas minhas contas com menos de um metro e oitenta de altura, o que era uma pecha generalizada tanto em portas exteriores como em portas interiores: não têm conta as cabeçadas que eu dei em vãos de porta por aquele monte. Agindo preventivamente os animais eram mais espertos que eu...

Bem...o Ti Marcos era objecto de um aviso quase todos os anos: «se eles te convidarem para comer qualquer coisa come só o que conheceres: queijo, presunto, pão, etc.» . Nada de manjares esquisitos...podiam ser pernas de rã. Nunca comi, diga-se, mas é um manjar muito apreciado em França (onde estive algum tempo) e ali havia aquela repulsa. As rãs eram aos montes tanto nos barrancos com poças de água, junto aos poços de rega, no Ribeirão e na Ribeira, enfim: para eles, Ti Marcos e esposa seria difícil entrarem em deficit proteico.

Era um excelente conversador, contava daquelas histórias que toda a gente incluindo ele sabia que são aldrabice e era um profissional competente na tosquia tanto de bestas como de humanos. As tatuagens no cabelo, agora tão na moda, fazia-as ele nos animais mas não teria então e não teria hoje clientela humana para as fazer.

Pensar que se tiram hoje cursos para aprender a fazer coisas que há 40/50 anos o Ti Marcos fazia na maior, com cuidadosos olhares à distância para ver o elaborado do relevo, cortes milimétricos de correcção, tesourinhas de unhas de toucador para as partes mais difíceis, pedidos de aprovação ou crítica estética aos presentes, enfim...un artist, um verdadeiro artista que nunca teve o reconhecimento merecido.

Só era pena a tal coisa das pernas de rã mas todos os artistas têm e merecem ter as suas liberdades.