quinta-feira, 22 de novembro de 2012

As Casas de Hóspedes de Alcoutim até meados do século passado [2]


 


Escreve

Gaspar Santos



A PENSÃO MADEIRA

Aspecto da fachada principal.
Foto JV, 1971
A Pensão Madeira funcionava no edifício onde hoje é a Farmácia Caimoto, mesmo ao lado da Igreja Matriz de Alcoutim. Era explorada por Custódia Madeira, uma senhora que tinha três filhos: Alfredo, Palmira e Alzira.

Este edifício foi mais tarde restaurado mantendo todavia a mesma fachada. A entrada principal era onde hoje é a porta da farmácia e dava acesso ao 1º andar e terraço. À direita existe um portão de ferro onde outrora havia um portão de madeira, que dava entrada para o quintal e as cavalariças. Deixemos a descrição do interior da pensão para José Varzeano que, em solteiro, esteve aqui hospedado quando já era Pensão Marreiros, nome do novo hospedeiro.

 Para além do edifício referido e praticamente em ângulo recto por detrás da casa de António Luís Fernandes e da Fábrica de Foices desenvolvia-se um quintal estreito mas muito comprido, murado do lado da Ribeira de Cadavais até quase à porta do logradouro da GNR, deixando um estreito caminho a que se dava o nome de “estrazes”.

O quintal tinha dois portões que davam para os “estrazes”: um a meio e outro no topo poente junto ao logradouro da GNR. Nele semeava o vizinho Domingos Corvo favas, ervilhas e outros legumes, além das ervas de cheiro com que a Senhora Custódia Madeira condimentava as comidas. Este quintal foi sacrificado com a construção da actual rua de continuidade com o Largo da Igreja.

Tinha um poço muito fundo, com cerca de 25 m. Tomo esta medida pelos metros de corda que a Senhora Custódia comprava quando tinha de substituir a que servia para içar o balde. No verão apenas tinha pouco mais de um metro e meio de altura de água. A secção quadrada em alvenaria desde o gargalo até cerca de 5 m abaixo do solo, assentava em rocha xistosa. Para baixo, nessa rocha mantinha a secção quadrada embora mais tosca tal como fora escavado até ao fundo. Encostava ao muro do gargalo um tanque de lavar roupa que as empregadas da pensão utilizavam. Tirava-se a água com um balde atado a uma corda e por meio de uma roldana.

Esse poço fazia parte de um sistema que incluía uma cisterna localizada no terraço da pensão e que era alimentado a partir do poço através de água que escorregava por uma telha de canudo encimando o muro, que ainda lá está a ladear um caminho até ao terraço. A outra margem deste caminho encostada aos muros de suporte dos quintais vizinhos tinha um canteiro de flores que se continuava até ao terraço.

A água desse poço tinha mau gosto, não sendo utilizada senão para lavagens. Meus pais, que sempre tiveram boas relações de vizinhança com a proprietária da pensão, estavam autorizados a tirar do poço a água que quisessem, o que nos deu um grande conforto, pois o abastecimento alternativo era longe e caro. Aqui bastava tirar a água aos baldes do poço e subir a rampa do muro derrubado para o nosso quintal.

O velho portão da pensão.
Foto JV, 1971
Para além da água que este poço fornecia, tinha uma outra utilização igualmente nobre: fazia as vezes de frigorífico quando este utensílio doméstico ainda não tinha chegado a Alcoutim. A senhora Custódia Madeira utilizava-o por vezes e outras vezes eram pessoas que lho pediam para refrescar cervejas ou vinho para alguma festa. Quem conhece o calor dos nossos verões sabe, com certeza, avaliar a necessidade de bebidas frescas, frescura essa que esta água tinha o mérito de lhes conferir.

O tipo de pessoas que aqui se hospedavam eram funcionários públicos em princípio de carreira, caixeiros-viajantes, ou alguma pessoa que se vinha tratar com o Dr. João Dias. O atendimento e os pratos que serviam, bem como o grau de satisfação e de fidelidade dos clientes, para não me estar a repetir, direi que era o mesmo da Pensão Botelho sua concorrente, já aqui referida no dia 4 de Novembro.

 Conheci alguns hóspedes que me ficaram na memória: o Professor José Amaral, família de pintores dinamarqueses, Almeida Carrapato viajante, Araújo Ribeiro industrial de moagem, vários chefes de finanças como Mário Pires, Manso Ribeiro, e o lavrador Silva que lá ia às vezes comer e que por morte deixou à Senhora Custódia o usufruto da horta na curva da ribeira atrás do Lar de Alcoutim e um cercado de amendoeiras na Fonte da Serra.

O Senhor Silva era talvez a pessoa mais rica da vila. Além de ser um grande proprietário de terras e laranjais era funcionário da Câmara Municipal, tendo chegado a Chefe de Secretaria interino. Era porém um alcoólico inveterado e tinha fama de ser um D. Juan, parece que com muitas aventuras no seu passado. Quando apanhava uma bebedeira maior ficava adoentado e ia curar a ressaca hospedando-se na Pensão Madeira onde lhe davam uns caldinhos e alguma aspirina até passar.

Da família dinamarquesa (um casal com duas filhas e um filho) ali hospedados eram todos pintores de quadros a óleo. A sua técnica era do tipo naturalista e pintavam sobretudo paisagens. Estiveram hospedados duas grandes temporadas com um intervalo. Os jovens filhos solteiros integraram-se muito bem na juventude alcouteneja, eram agradáveis e geralmente estimados. Iam aos bailes e o Henry e uma irmã estiveram à beira de casar em Alcoutim.

O Jorge era um adolescente com forte gaguez mal se percebendo. Natural do distrito de Leiria, no início dos anos 40 esteve hospedado na Pensão Madeira enquanto se tratava com o Dr. Dias. Estava acompanhado de um familiar mais velho. Fomos amigos e convivemos muito pois o nosso quintal e o da pensão eram contíguos e dava para brincar em baloiços e com o meu cavalo de madeira. Mais tarde, aí pelos anos 60, fui encontrá-lo internado no Hospital Júlio de Matos muito revoltado com a vida e também com o familiar que o acompanhara durante o tratamento. Não foi capaz de superar as dificuldades de comunicação e a sua mente adoeceu.

A Pensão Madeira também tinha capacidade de alojar as bestas e até as carroças e/ou charrettes, meios de transporte que os hóspedes utilizavam quando ainda não havia ou não se tinha generalizado o automóvel. Era nesse estábulo que o vizinho Domingos Corvo guardava a sua burra.

No tempo a que me reporto era ali empregada Maria Miquelina, de Alcoutim, em permanência, com a ajuda de Maria Rufino de Balurcos quando havia mais trabalho, e ainda outras pessoas em trabalhos de carácter sazonal. 

Com o envelhecimento da dona da pensão esta passou a ser gerida pelo Senhor Marreiros dando continuidade a esta casa de hóspedes nos anos 60.