Escreve
Amílcar Felício
Estávamos em 1969 no auge da guerra colonial. Queriam
fazer-nos viver a todo o custo num ambiente de guerra e para isso inventavam
com requinte de tudo um pouco. Havia dias que passávamos uma manhã inteira
debaixo de fogo real em campos de arame farpado, ou então divertiam-se a
disparar-nos tiros de G3 a um palmo do nariz. Muitas noites enquanto dormíamos
na foz do Rio Lisandro – local aonde era hábito pernoitar uma ou outra vez –
entretinham-se a rebentar granadas a 2 ou 3 metros de distância ao
longo da noite, acompanhadas de rajadas de metralhadora.
Nas provas de sobrevivência, depois de nos revistarem e
ficarmos sem um tostão nas algibeiras, davam-nos cinicamente uma pequena
tablete de chocolate para nos desenrascarmos durante quase uma semana pelos
campos, montes e montanhas de Mafra. Algumas vezes atiravam-nos com baldes de
fezes humanas em operações noturnas, obrigando-nos a andar dias inteiros sem
poder mudar de farda. Outras vezes tínhamos que rastejar e atravessar na
escuridão da noite estreitos aquedutos mal cheirosos, aonde mal cabíamos e
aonde tinham colocado um mês antes, buchos e tripalhada de porco e de vaca
podres quer no chão quer penduradas no tecto.
Para os que foram posteriormente mobilizados já no Porto,
ainda estariam reservadas umas pequenas "férias" de 2 ou 3 semanas em Penamacor. Por
sorte, entrei numa escala de rendição individual, pelo que não acompanhei os
meus camaradas em
Penamacor. Pelo que me relataram, aquelas semanas ultrapassariam
tudo o que se possa imaginar em dureza, perigosidade e falta de dignidade a que
tínhamos sido sujeitos em
Mafra. Houve noites em que foram obrigados a rastejar por
cima de cadáveres que iam buscar à morgue.
Era assim o dia-a-dia que aqueles senhores nos
proporcionavam, no meio de um exercício físico diário duríssimo e perigoso que
passava pelas descidas à corda nas abruptas escarpas da Ericeira junto ao mar
ou a atirarmo-nos do Unimog a mais de 50 km à hora com uma G3 nas mãos. Às vezes a
instrução roçava o massacre, continuando durante a noite a instrução do dia.
Diziam os instrutores que no conjunto da recruta e da especialidade cada
instruendo palmilhava cerca de 10.000 quilómetros .
Em certas alturas havia corações que à meia-noite ainda batiam 120 pulsações.
Neste cenário bélico e perigoso, naturalmente que chegaram a acontecer algumas
mortes que foram cuidadosamente abafadas.
Era um Batalhão de cerca de 800 almas. Metade na recruta e a
outra metade um pouco mais adiantada e já na especialidade, mas pouca diferença
faziam. Havia gente de todos os lados do Norte, do Sul, do Centro, das Ilhas.
Amparávamo-nos e ajudávamo-nos uns aos outros para nos aguentarmos no balanço,
criando um espírito de corpo enorme para enfrentar aquela gente fanática pela
guerra. Fazia parte do meu pelotão o Zé, um alentejano de fraca figura, casado
e que vivia atormentado pela separação conjugal a que a tropa o obrigava. Ia a
correr para a terra todos os fins-de-semana que tínhamos livres apesar de não
se aguentar nas canetas, sempre ansioso e preocupado com o que iria encontrar.
O Zé passava toda a semana cabisbaixo e receoso das
consequências do seu afastamento de casa, não sei se por maneira de ser ou se
existiriam razões para aquela sua insegurança. Era um homem atormentado, um
treme treme cheio de fraquezas psicológicas. De facto viria a constatar mais
tarde já como Oficial no Porto, que a tropa foi um drama que separou muitos
casais, quando me incumbiam de ir por aquelas aldeias do Norte comunicar e dar
os pêsames pela morte de mais um ou outro jovem na frente de batalha.
Tantas vezes que me aconteceu ao comunicar a minha missão e
perguntar aonde morava a viúva, muitos dos aldeãos me retorquirem: “não valia a
pena cá vir perder o seu tempo amigo, pois ela ainda antes dele morrer já tinha
arranjado outro”. A tropa foi uma tragédia conjugal para muita gente, não
tenham dúvidas.
Como se não bastasse a Instrução duríssima a que nos
sujeitavam, forneciam-nos ainda por cima uma alimentação miserável e
insuficiente para as energias que despendíamos. Tínhamos a sorte de fazerem
parte do nosso pelotão dois recrutas médicos, que por dever de ofício nos davam
umas dicas na alimentação para compensar as lacunas da alimentação militar.
Aconselhavam-nos a maior parte das vezes iogurtes e sandes de atum em conserva. Lembro-me
de apesar de magro ter perdido quase 10 quilos em 3 meses, tais os esforços que
nos eram impostos às vezes 24 horas por dia.
Mas tudo isto criava em nós um espírito de corpo e de
unidade e entreajuda tremenda – nunca me senti tão igual entre iguais pois ali
não havia diferenças -- a tal ponto que combinámos ir à luta para melhorar as
nossas condições do dia-a-dia. Era um Batalhão forte e combativo que
incorporava todos aqueles estudantes que tinham enfrentado o Américo Tomás em
Coimbra em 1969 e que se tinham batido com a Polícia e com os seus cães,
levando gatos para a Rua e colocando os cães em histeria, desorientando a
própria Polícia. Tinham sido compulsivamente integrados na tropa naquela
Incorporação.
Neste contexto, preparámos para certo dia um Levantamento
de Rancho, para conseguir-mos alguma melhoria na alimentação. Tudo estava
organizado para aquela hora de almoço. À volta das mesas em pé e em silêncio,
todos esperávamos como sempre pelas ordens do Oficial de Rancho. O Oficial na
sua habitual rotina lá dá a ordem sagrada: “Atenção Batalhão, sentido!” Toda a
gente se pôs em sentido como sempre fazíamos. E lá continuou na sua lengalenga
de sempre: “Atenção Batalhão, podem-se sentar!”. Mas aqui alto e para o baile,
pois toda a gente fez de surdo como combinado. Eram 800 almas de pé e em
sentido, num silêncio de cortar à faca que desobedeciam 100% à ordem do Oficial
mantendo-se em sentido, pois ninguém se sentou.
O Oficial de Rancho embora aparentemente calmo ficou com um
olhar que até parecia que deitava faíscas, pois constava-se que era a primeira
vez que aquilo acontecia por ali, mas não disse nem uma palavra sequer. E lá
continuava de corredor em corredor de mãos atrás das costas enfrentando os
recrutas nos olhos, com olhos que fuzilavam. Estes por sua vez olhavam como
quem olha para o infinito e não vê nada por perto. Foram seguramente mais de 10
minutos de um silêncio sepulcral aonde só se ouviam as passadas das botas do
Oficial percorrendo corredor a corredor todo o Refeitório. De mãos atrás das
costas lá ia ele aparentemente sereno, perscrutando ao pormenor cada recruta e
escolhendo possivelmente a vítima que lhe parecesse mais fraca.
Já numa 2ª volta pelos corredores do Refeitório e sempre de
mãos atrás das costas, quando passa ao pé do Zé saca agilmente da pistola e
encosta-lha à testa com um olhar tresloucado e a voz transtornada e furibunda,
ordenando-lhe aos gritos: “Senta-te e come ou morres!”. Oitocentas vozes em
surdina gritam ao mesmo tempo: “Aguenta-te Zé!”. Mas o Zé não se aguentou.
Traumatizado, com a pistola encostada à testa e a tremer como varas verdes, o
Zé comeu tudo até ao fim.
Terminada a façanha o Oficial já mais empertigado e senhor
de si próprio, respirando uma autoconfiança que ainda não se lhe tinha visto,
enfrenta o Batalhão informando-o: “Aqui não houve Levantamento de Rancho
nenhum! Vocês se quiserem comer comam, se não quiserem podem sair”. Era a lei
do Exército da altura e era assim que ele limpava a sua Folha de Serviços, pois
se houvesse nem que fosse um só soldado a comer, já não era considerado
Levantamento de Rancho.
Claro que a seguir vieram as investigações, mas nunca
chegaram a descobrir os cabecilhas. Era de facto um Grande Batalhão! Mas tinha
valido a pena, pois melhoraram consideravelmente a alimentação nos dias
seguintes...