domingo, 4 de novembro de 2012

As Casas de Hóspedes de Alcoutim até meados do século passado [1]





Escreve

Gaspar Santos



A PENSÃO CHICA BOTELHO

A vila de Alcoutim, nesse tempo, vivia sobretudo do Turismo de Saúde. Dizemos isto porque muitas casas alugavam quartos a doentes que procuravam o Dr. João Francisco Dias para se tratarem. E o comércio vendia muitos produtos locais aos doentes e seus acompanhantes pelo que os efeitos económicos também se sentiam no resto do concelho.

Havia com carácter legal duas pensões: A Pensão Madeira e a Pensão Chica Botelho. Vamos referir hoje apenas a segunda.

O seu aspecto era peculiar por ter a cozinha e a sala de jantar separados várias dezenas de metros dos outros cómodos, que eram vários, onde os hóspedes eram alojados. Essa sala e a cozinha situavam-se na Rua da Misericórdia, mesmo em frente da casa da família do Dr. Cunha (hoje Restaurante Vila Velha). Os quartos eram sobretudo na Rua Pedro Nunes.

Os clientes desta pensão eram quase sempre funcionários públicos solteiros, em princípio da carreira em Alcoutim e, em menor escala, alguma pessoa das que vinham em procura de cura para os seus padecimentos. Tinha fama de servir bem e a garanti-lo estava a fidelidade dos hóspedes que em geral não mudavam para a outra.


A medieval rua da Misericórdia onde fun-
cionou a cazinha e casa de janatar da
Pensão Chica Botelho (primeiro
edifício do lado esquerdo)
Foto JV
Serviam peixe do rio ou do mar que aqui chegava com abundância e era barato e bacalhau. A carne era de borrego e cabrito ou porco, coelho e aves. Nos pratos predominaria como é natural o pão. Por isso alguns dos seus hóspedes engordavam, pelo que os alcoutenejos comentavam ver nisso um sinal de prosperidade que a pessoa anteriormente não possuiria. A tia Chica Botelho era uma senhora bem-disposta e simpática, por sinal uma das duas que em Alcoutim fumava. Ela fumava de cachimbo, nunca em público. De cima da parte poente do castelo vimo-la muitas vezes fumar o seu cachimbo quando ia dar de comer à criação no vasto galinheiro que tinha em baixo junto à parede do castelo. Esse cachimbo que não tinha boquilha, só fornilho e pouco mais, ela o disfarçava na mão e só o levava à boca para tirar uma fumaça, nos intervalos de chamar as galinhas: pita…pita…pita, de maneira que nós os miúdos achávamos imensa graça.

Era divorciada do Senhor Rosa, de quem tinha dois filhos: Júlio Rosa que foi Presidente da Câmara Municipal de Alcoutim entre 1977 e 1979, e Virgílio Rosa Oficial de Marinha.

O Senhor Rosa seu ex-marido foi ferrador e cantoneiro das estradas. Não sei qual foi primeiro, ou se em simultâneo. Mas sei que o seu emprego como cantoneiro terminou bruscamente.

Quando frequentei a Escola Primária havia nas paredes uns posters de propaganda. Um deles apresentava uma estrada antes e outra depois do Estado Novo, que passei a recordar ao mesmo tempo que o episódio do casal Rosa/Botelho que refiro.

Uma vez chegou a Alcoutim um homem bem vestido que se hospedou na Pensão da tia Chica Botelho. Enquanto o hóspede jantava, o casal à lareira estava muito intrigado sobre quem era. Ao servi-lo a tia Chica ainda fez umas perguntas exploratórias, mas o homem nada disse de esclarecedor. No dia seguinte de manhã, sem dizer nada, percorreu a pé a estrada até onde hoje são as Quatro Estradas e que estava num estado deplorável.

Rua de Nª Sª da Conceição. Casa da esquerda
onde funcionavam quartos.
Foto JV, 1986
Nesse tempo não havia automóveis e só carroças lá circulavam. A estrada em MacAdame tinha dois sulcos, quais linhas de caminho de ferro ao contrário, por onde as rodas das carroças habitualmente passavam e eram guiadas. O homem não viu o cantoneiro e, nem sequer, as pessoas a quem perguntou sabiam quem era.

Voltou à pensão e inteirou-se que o cantoneiro era o Senhor Rosa. Apresentou-se como inspector de estradas e imediatamente o demitiu.

O tenente Virgílio Rosa filho da tia Chica, que era oficial de transmissões, tinha alguma superintendência sobre as antenas da Serra do Monsanto onde se efectuaram as primeiras experiências da Radiotelevisão Portuguesa.

No fim do ano lectivo de 1968/69, para os exames finais de Probabilidades e Estatística no I.S.T. de que então eu era regente mobilizaram para completar o júri o Eng. Lopes que era assistente de telecomunicações no I.S.T. e quadro da RTP. Quando ele soube que eu era de Alcoutim perguntou-me logo se conhecia o Tenente Virgílio Rosa e contou-me que ele não os largava enquanto quadros da RTP. É que ele tinha-lhe facilitado a vida nos ensaios das primeiras emissões de TV e agora queria um retransmissor para Alcoutim. E só os largou quando o retransmissor lá foi colocado. Um benefício que a Vila de Alcoutim teve mais cedo por influência desse seu filho a quem deve estar grata!

Esta pensão dava trabalho directo em Alcoutim a várias pessoas, sobretudo jovens. Muitas delas seguiram os seus percursos depois que dali saiam para outros empregos ou para casarem. Recordo a Custódia Mestra ali empregada e com poucas letras e que estudou e empregou-se como regente escolar. Era de Tacões, freguesia do Pereiro, onde depois de muitos anos sem a ver a fui encontrar já aposentada e muito feliz pois tinha feito um curso de aperfeiçoamento no magistério primário seguido de promoção. Estava aposentada como Professora do Ensino Básico.

Rua Trindade e Lima onde funcionaram
igualmente quartos.
Foto JV, 2010.
Reconhecemos duas boas qualidades no feitio da tia Chica Botelho: uma é ser uma negociante que sabia zelar pelo seu negócio, outra é ter bom coração.

Quando surgia um possível comensal nunca dizia, não há nada que lhe possa servir. Pelo contrário, dizia sempre e cumpria, vamos arranjar o seu almoço ou o seu jantar, conforme o caso. E não tinha nenhuma formação em hotelaria nem em marketing, mas apenas o seu sentido prático e era trabalhadora.

 A sua bondade e bom coração solidário estão bem presentes quando aceita em sua casa, a pedido dos filhos, o seu ex-marido de quem estava divorciada há mais de 20 anos. E muito mais se poderia dizer neste aspecto particular da sua personalidade.