Escreve
Gaspar Santos
A PENSÃO CHICA
BOTELHO
A vila de Alcoutim, nesse tempo, vivia sobretudo do Turismo
de Saúde. Dizemos isto porque muitas casas alugavam quartos a doentes que
procuravam o Dr. João Francisco Dias para se tratarem. E o comércio vendia
muitos produtos locais aos doentes e seus acompanhantes pelo que os efeitos
económicos também se sentiam no resto do concelho.
Havia com carácter legal duas pensões: A Pensão Madeira e a
Pensão Chica Botelho. Vamos referir hoje apenas a segunda.
O seu aspecto era peculiar por ter a cozinha e a sala de
jantar separados várias dezenas de metros dos outros cómodos, que eram vários,
onde os hóspedes eram alojados. Essa sala e a cozinha situavam-se na Rua da Misericórdia,
mesmo em frente da casa da família do Dr. Cunha (hoje Restaurante Vila Velha).
Os quartos eram sobretudo na Rua Pedro Nunes.
Os clientes desta pensão eram quase sempre funcionários
públicos solteiros, em princípio da carreira em Alcoutim e, em menor escala,
alguma pessoa das que vinham em procura de cura para os seus padecimentos.
Tinha fama de servir bem e a garanti-lo estava a fidelidade dos hóspedes que em
geral não mudavam para a outra.
Serviam peixe do rio ou do mar que aqui chegava com abundância
e era barato e bacalhau. A carne era de borrego e cabrito ou porco, coelho e
aves. Nos pratos predominaria como é natural o pão. Por isso alguns dos seus
hóspedes engordavam, pelo que os alcoutenejos comentavam ver nisso um sinal de
prosperidade que a pessoa anteriormente não possuiria. A tia Chica Botelho era uma senhora bem-disposta e
simpática, por sinal uma das duas que em Alcoutim fumava. Ela fumava de
cachimbo, nunca em público. De cima da parte poente do castelo vimo-la muitas
vezes fumar o seu cachimbo quando ia dar de comer à criação no vasto galinheiro
que tinha em baixo junto à parede do castelo. Esse cachimbo que não tinha
boquilha, só fornilho e pouco mais, ela o disfarçava na mão e só o levava à
boca para tirar uma fumaça, nos intervalos de chamar as galinhas:
pita…pita…pita, de maneira que nós os miúdos achávamos imensa graça.
A medieval rua da Misericórdia onde fun- cionou a cazinha e casa de janatar da Pensão Chica Botelho (primeiro edifício do lado esquerdo) Foto JV |
Era divorciada do Senhor Rosa, de quem tinha dois filhos:
Júlio Rosa que foi Presidente da Câmara Municipal de Alcoutim entre 1977 e
1979, e Virgílio Rosa Oficial de Marinha.
O Senhor Rosa seu ex-marido foi ferrador e cantoneiro das
estradas. Não sei qual foi primeiro, ou se em simultâneo. Mas sei que o seu
emprego como cantoneiro terminou bruscamente.
Quando frequentei a Escola Primária havia nas paredes uns
posters de propaganda. Um deles apresentava uma estrada antes e outra depois do
Estado Novo, que passei a recordar ao mesmo tempo que o episódio do casal
Rosa/Botelho que refiro.
Uma vez chegou a Alcoutim um homem bem vestido que se
hospedou na Pensão da tia Chica Botelho. Enquanto o hóspede jantava, o casal à
lareira estava muito intrigado sobre quem era. Ao servi-lo a tia Chica ainda
fez umas perguntas exploratórias, mas o homem nada disse de esclarecedor. No
dia seguinte de manhã, sem dizer nada, percorreu a pé a estrada até onde hoje
são as Quatro Estradas e que estava num estado deplorável.
Rua de Nª Sª da Conceição. Casa da esquerda onde funcionavam quartos. Foto JV, 1986 |
Voltou à pensão e inteirou-se que o cantoneiro era o Senhor
Rosa. Apresentou-se como inspector de estradas e imediatamente o demitiu.
O tenente Virgílio Rosa filho da tia Chica, que era oficial
de transmissões, tinha alguma superintendência sobre as antenas da Serra do
Monsanto onde se efectuaram as primeiras experiências da Radiotelevisão
Portuguesa.
No fim do ano lectivo de 1968/69, para os exames finais de
Probabilidades e Estatística no I.S.T. de que então eu era regente mobilizaram
para completar o júri o Eng. Lopes que era assistente de telecomunicações no
I.S.T. e quadro da RTP. Quando ele soube que eu era de Alcoutim perguntou-me
logo se conhecia o Tenente Virgílio Rosa e contou-me que ele não os largava
enquanto quadros da RTP. É que ele tinha-lhe facilitado a vida nos ensaios das
primeiras emissões de TV e agora queria um retransmissor para Alcoutim. E só os
largou quando o retransmissor lá foi colocado. Um benefício que a Vila de
Alcoutim teve mais cedo por influência desse seu filho a quem deve estar grata!
Esta pensão dava trabalho directo em Alcoutim a várias
pessoas, sobretudo jovens. Muitas delas seguiram os seus percursos depois que
dali saiam para outros empregos ou para casarem. Recordo a Custódia Mestra ali
empregada e com poucas letras e que estudou e empregou-se como regente escolar.
Era de Tacões, freguesia do Pereiro, onde depois de muitos anos sem a ver a fui
encontrar já aposentada e muito feliz pois tinha feito um curso de
aperfeiçoamento no magistério primário seguido de promoção. Estava aposentada
como Professora do Ensino Básico.
Rua Trindade e Lima onde funcionaram igualmente quartos. Foto JV, 2010. |
Quando surgia um possível comensal nunca dizia, não há nada
que lhe possa servir. Pelo contrário, dizia sempre e cumpria, vamos arranjar o
seu almoço ou o seu jantar, conforme o caso. E não tinha nenhuma formação em
hotelaria nem em marketing, mas apenas o seu sentido prático e era
trabalhadora.
A sua bondade e bom
coração solidário estão bem presentes quando aceita em sua casa, a pedido dos
filhos, o seu ex-marido de quem estava divorciada há mais de 20 anos. E muito
mais se poderia dizer neste aspecto particular da sua personalidade.