quarta-feira, 16 de junho de 2010

Afinal havia vida no cemitério!

Pequena nota
Numa” postagem” recente dizíamos que o Alcoutim Livre só possuía um poeta, mas era bom! Afinal, como estava engano!
Possivelmente para "desmentir" essa minha afirmação, aparece-nos agora o nosso colaborador Amigo, Amílcar Felício que nos surpreende com toda a sua verve a demonstrar-nos, o que muito agradecemos, a outra face da sua escrita e que desconhecíamos completamente, ainda que o estilo de dizer coisas profundas com graça lhe transpareça tanto na prosa como na poesia. Venham mais.

JV








Escreve

Amílcar Felício



[Alcoutim visto do cemitério. Foto JV, 2009]

Como é bom voltar aos sítios que nos viram menino...

À procura das nossas memórias que tantas vezes já só encontramos numa casa derrubada, num velho caminho resistente às estevas ou numa cara já enrugada.
Mas sabe sempre tão bem voltar caramba!

Não tenho por hábito fazer o culto dos mortos. Gosto de os recordar para sempre como eram em vida. Odeio Cemitérios! Possivelmente será a minha vingança contra a morte. Mas naquele 1º de Novembro de 2003 não resisti e fui ao Cemitério de Alcoutim.

Sabia que os ia encontrar lá. E eram tantos os amigos de outros tempos, no meio de tantos outros que já nos tinham deixado! Que alegria apesar de tudo! Mas também sabia que íamos recuar 50 anos no tempo e encher aquele Cemitério de vida. Era fatal...

[Velho portão do cemitério de Alcoutim]
O que não sabia – ironia do destino – é que quando saísse, tinha à minha espera cá fora a sensação do vazio, do nada... ou do quase nada do que eu conheci.

Alcoutim tem mais encantos e está mais belo do que nunca, mas sinto-o triste sempre que nos encontramos. Falta-lhe aquilo que lhe dava alegria... as pessoas.

É esta viagem ao passado que fiz naquele 1º de Novembro, que quero partilhar com os leitores do Alcoutim Livre, sem qualquer pretensão poética como os entendidos perceberão. Saiu “esta” como reverso da medalha de uma manhã de emoções fortes!

E esperando que não fiquem deprimidos. Viva a vida, nem que seja dentro de um Cemitério!


O DIÁRIO QUE NÃO FIZ...

Ai se eu escrevesse um Diário
daquilo que me vai na alma,
nem sei bem o que faria!
Talvez uma prosa tristonha,
ou uma sofrida poesia,
talvez começasse assim:
Era uma vez...
Ou tão somente: Alcoutim,
Um de Novembro de Dois Mil e Três.

Eu vi esta casa cheia
dos gritos da minha avó,
e esta chaminé pejada
de chouriços nos varais,
e o fumo da esteva queimada
a subir pelos beirais,
mas já não existe nada...












A casa da minha avó está fria, vazia,
e a lida do dia-a-dia acabou.
A lareira já não arde como ardia,
está apagada.
As galinhas, os cães e os gatos,
os burros, os porcos e os patos,
partiram em debandada.
Procuro refúgio na rua
à espera de quem vai e vem,
procuro o calor da gente,
que trago na minha mente,
mas não encontro ninguém!
Fecho os olhos lentamente
e revejo-os caminhando,
com um olhar sorridente...


Vou até à beira-rio
mas já lá ninguém habita,
não há caras conhecidas,
não há Guarda nem Guarita
e os barcos são de turistas!
E cada pedra da calçada
martela a minha memória,
como tudo é tão efémero
tanta vida, tanta estória,
que já não se repetirá,
até parece que a vida
são férias que a morte nos dá...















E em cheia de águas passadas
sem um cais para atracar,
navegante solitário
levado nesta enxurrada,
nem sinto o tempo a passar!
Vou para casa descansar
que isto não leva a nada,
mas antes vou arrancar
a folha do Calendário,
e dar-me por satisfeito
por nunca fazer Diário!!!