quarta-feira, 23 de junho de 2010

Manuel Serafim, um comerciante de sucesso






Escreve

Gaspar Santos




[Manuel Serafim. Notar a parecença com o filho]
Quando estou em Alcoutim e desço a Rua 25 de Abril e vejo o café em frente, recordo a loja do senhor Manuel Serafim. Este edifício, sede dos seus negócios, na Praça da República passou alguns anos depois da sua morte para a posse de João Baltazar Guerreiro. A exploração do negócio, entretanto reformulado, está hoje a cargo do Caldeira.
A estatura física do senhor Serafim e o seu volume de negócios não tinham comparação no concelho.

Este espaço comercial que sempre designávamos como a loja do Senhor Serafim, mantém a fachada e o essencial da sua compartimentação. Onde hoje é o restaurante havia um balcão. Aí, à esquerda de quem entrava, vendiam-se panos, lãs e todos os artigos para vestuário e calçado, à direita ficava a mercearia. O actual café era a venda ou taberna, onde se vendiam vinhos e seus derivados, para usar a nomenclatura da então Junta Nacional dos Vinhos. Bastava aos caixeiros atravessar uma porta atrás do balcão para a direita e, ficavam a atender na taberna no balcão que continuava na mesma direcção.

Na parte baixa da vila meia dúzia de armazéns especializados estavam ao seu serviço. Neles vendia farinha, sal, cal e cimento, carvão, adubos, cerâmica desde telhas, cântaros e outros vasilhames para as cozinhas. Também comprava amêndoas, figos e alfarrobas para revenda/exportação.

Tinha uma exploração agro-pecuária onde se destacavam a produção de cereais e o laranjal. Tinha algumas vacas leiteiras que abasteciam em parte o consumo de leite da vila.

Era um grande empregador nas vertentes em que actuava. Pela sua loja passaram várias pessoas, muitas de sua família. Desde o seu pai já reformado da Guarda-fiscal que se ocupava da parte dos vinhos, até aos seus primos Francisco Serafim Nunes, Manuel Serafim, José Serafim e por último o Joaquim Rita e o Manuel Bento.

Além da actividade comercial foi, profissionalmente, proposto da Tesouraria de Finanças, escriturário e mais tarde ajudante do Cartório Notarial e do Registo Civil. Nestes registos era escriturária uma sua cunhada de nome Dinora Madeira.
Ocupou vários cargos políticos: Administrador do Concelho, Vice-presidente da Câmara, Presidente da Câmara Interino (na ausência do Presidente). Foi correspondente de entidades bancárias e teve na sua loja o Telefone Público Nº 2 de Alcoutim, de início o único telefone público fora do edifício dos CTT.

Tendo lugares políticos colaborou com o Estado Novo. Não conheço quem tenha sido prejudicado com isso. Ele já era importante quando o Estado Novo chegou. Foi o Estado Novo quem precisou dele e não ele que necessitou do Estado Novo. Por isso sempre manteve um certo distanciamento dessa política, tendo inclusivamente como seus amigos mais chegados gente anti-fascista. Até frequentava a “Sacristia” – casa anexa à fábrica de foices onde com os amigos petiscava e conversava.
Este homem com Francisco do Rosário, Dr. João Francisco Dias, Professor José Mendes Amaral e Luís Jesus Brito constituíam então as pessoas mais marcantes e influentes da Vila de Alcoutim, para não dizer do concelho.

[Manuel Serafim em 1941 na primeira tomada de posse de J.M.Mendes Amaral, como Predidente da Comissão administrativa da Câmara Municipal]

Era um homem bom, sério e honesto e por isso respeitado e estimado. Ele e também o seu cunhado, marido da D. Dinora, eram as pessoas a quem muitos recorriam para um conselho amigo sobre negócios, questões administrativas ou fiscais. Manuel Serafim era um pouco lento no deslocar do seu físico majestoso. Era uma pessoa eficiente, ponderada, previsível, serena e calma como a música que ele executava em viola.

Digo isto pois muitas vezes tive oportunidade de o ouvir a acompanhar à viola outros instrumentos, nas noites quentes de verão, à porta da Sociedade Recreativa na Rua 1º de Maio.

Mas nas noites mais frias, o convívio e a distensão do Senhor Manuel Serafim e de mais pessoas eram de outra ordem. Antes da hora da sua loja encerrar, estabelecia-se um convívio que hoje se diria uma tertúlia, num tempo em que não havia televisão e, mesmo a rádio, já existente, não preenchia. Além de Manuel Serafim lá estava o Dr. João Francisco Dias e outras personalidades da vila e as noites eram animadas. Tudo que se podia discutir, ali se discutia. Os acontecimentos mundiais e nacionais bem como do âmbito da Saúde Pública e até uma ou outra anedota. O Dr. Dias que era Subdelegado de Saúde falava, umas vezes espontaneamente, outras vezes como resposta a pergunta de algum dos presentes, sobre uma doença, uma vacina e muitas vezes sobre tema cultural ou cientifico ou de saúde pública. A ouvir estas conversas informais, fiz por aprender e, sobretudo, espevitaram a minha curiosidade e o desejo de aprender mais.

Presenciei este episódio da sua serenidade e bom senso no meio de completa borrasca. Assistíamos com muitas mais pessoas ao futebol no campo da Fonte Primeira. Sentados na rocha fronteira, o Senhor Manuel Serafim, um empregado das Finanças de nome Filinto, meu pai e eu que era garoto. O jogo a dada altura converteu-se numa batalha campal – era pancadaria por todos os lados. O senhor Filinto que era um sujeito forte disse ao senhor Serafim. “ O senhor como Administrador do concelho tem que ir pôr cobro a isto, já que Alcoutim não tem G.N.R”. Ele respondeu: “ Eu não saio daqui”. Então dê-me o seu cajado que eu vou já tratar disto”. Resposta: ” não dou nada o cajado”. “Então eu vou mesmo sem o seu cajado” e foi…. Esta aparente indiferença revelou-se afinal sensatez, pois reconhecia naturalmente que não tinha meios de impor a autoridade de que estava investido.

Nasceu em Alcoutim em 19 de Abril de 1903, filho de José Serafim e de Mariana Felizarda da Conceição Serafim.

Veio a casar com D. Francisca Madeira de quem teve uma filha de nome Maria do Carmo e um filho o nosso amigo José Serafim. Tem nesta data duas netas e um neto. A sua viúva ainda felizmente viva, tem hoje 104 anos, e por intervenção do filho facultou-nos estas fotografias pertencentes às suas recordações.

Faleceu ainda novo, com 50 anos a 22 de Outubro de 1953. O seu comércio veio a ressentir-se fortemente com a sua perda. A viúva coadjuvada pelo seu irmão o Sargento-ajudante André Madeira e seu cunhado Arnaldo Rodrigues ainda lhe deram continuidade durante mais algum tempo, mas depois fizeram a liquidação da existência e o edifício foi vendido a João Baltazar Guerreiro.

O Senhor Serafim, sendo uma pessoa respeitada e que consideramos eficiente, também cometeu lapsos como toda a gente. Sei de duas pessoas cujos registos de nascimento deviam ter sido assinados por ele e não foram. Deu-se pela falta da assinatura mais de 50 anos depois, quando as certidões passaram a ser extraídas directamente do livro de registos por fotocópia. Isso veio a levantar problemas burocráticos a essas pessoas.

[Manuel Serafim a descansar no "Pau da Censura"]

Como todo o alcoutenejo gostava de peixe. Tinha mesmo uma certa vaidade por saber comer sável ou saboga (que desovam no Guadiana em Abril/Maio). Em geral o sável é frito em postas muito finas ou, se grelhado, leva uns cortes no lombo para reduzir o tamanho das espinhas. Para ele, o peixe só com sal era grelhado inteiro, temperado com azeite, vinagre e alho. A sua técnica consistia em tirar com o garfo pequenos pedaços, da cabeça para o rabo, como quem “penteia” as espinhas, que ficavam naturalmente agarradas à espinha dorsal.

De vez em quando recebia a visita de um tio de nome Francisco Serafim, que ganhou notoriedade em actividade algo quixotesca de “arqueólogo” que fazia escavações, não de carácter histórico-cientifico mas à procura de moedas de ouro, nos locais onde, enquanto dormia, os sonhos lhe sugeriam.

O mundo é pequeno. No mesmo piso onde moro, mas do lado direito, vive uma família do concelho de Aljustrel primos em segundo grau do Senhor Manuel Serafim, com quem mantemos muito boas relações de vizinhança.

Desta maneira recordamos e prestamos a nossa homenagem a uma figura de alcoutenejo ilustre, e de grande sucesso empresarial que admiramos e de quem se gostava. Temos pena que não sejam hoje mais frequentes estas iniciativas e estes êxitos empresariais no concelho.

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N.B. A pedido do autor, após a postagem foram feitas duas pequenas rectificações:o dia do falecimento e a separação de sexo nos netos. JV