Pequena nota
Todos os textos que o Amílcar Felício aqui tem apresentado são ricos em acontecimentos, realismo e autenticidade, demonstrando grande espírito de observação e capacidade para discernir.
Como factos tão simples podem significar conceitos de vida que se alicerçam em experiências ancestrais que eram transmitidas de geração em geração!
É preciso dizer que este nosso colaborador só viveu permanentemente na terra que o viu nascer até aos onze anos, a partir dos quais teve que abandonar para continuar os estudos.
Verdade que ia nas férias, mas em tal situação parece que devia ter um olhar mais leve sobre as coisas.
Os sentimentos são os mesmos, a maneira de os demonstrar é que é diferente mas isto... nem todos entendem.
É sempre difícil escolher o melhor texto quando são todos bons mas se fosse obrigado a fazê-lo, este conseguia ultrapassar o do António do Brejo.
Ainda que não tivéssemos nascido em Alcoutim reconhecemos o realismo que o texto encerra e a profundidade sagaz que as palavras transmitem.
Um abraço de parabéns, Amílcar. Grande texto.
JV
Escreve
Amílcar Felício
Havia quem lhes chamasse de mulheres/homens, certamente por falta de melhor designação na altura. Hoje provavelmente diríamos que eram mulheres emancipadas, pois há muito que exerciam competências, que os homens julgavam suas por direito natural.
Vestiam de escuro, saias largas e compridas muito abaixo dos joelhos ou até mesmo aos tornozelos, sapatos próprios para o campo cardados a maior parte vezes, com avental e lenço atado atrás da cabeça que não havia vento que conseguisse arrancar. Pareciam-se quase todas umas com as outras, talvez pela maneira de vestir muito semelhante. Levantavam-se às 4, às 5 ou o mais tardar às 6 horas da manhã para fazerem a lida da casa, tratar das galinhas, dos porcos, dos burros, dos cães ou dos gatos e para fazer as migas ou o "café preto" – conceito alcoutenejo do café simples sem leite – para o pessoal da casa, que tinha que sair ainda de madrugada para o campo e assim fugir ao trabalho nas horas tórridas de calor, que começava a apertar a partir do meio dia.
[A avó do autor do texto]
Estou a lembrar-me da Tia Libânia, da Tia Custódia Peres, da minha avó – a Tia Catarina das Portas – como era baptizada pela população, mas bem poderia referir tantas e tantas outras mulheres que possuíam a mesma estaleca do que elas.
Desculpem-me lá esta pequena memória que vos vou contar com todo o respeito, mas são imagens que pelo seu ineditismo e que por lhe descortinarmos um enorme sentido prático, nunca mais se apagariam das nossas memórias de infância. Eram mulheres desinibidas. Sem qualquer tipo de preconceitos ou de tabus algumas delas para urinar puxavam as saias para a frente, afastavam as pernas e mesmo em pé cá vai disto, conseguindo deste modo e em qualquer local, a reserva que o acto merece. Ultrapassavam assim a falta generalizada de infraestruturas sanitárias existentes à época.
Mulheres que nunca usaram baton nem nunca arrancaram um pelo da sobrancelha, apercebíamo-nos por vezes até de um bigodinho por aqui ou por ali. Pintar as unhas então ou usar rímel seria ridículo, pois as suas mãos grossas e calejadas quase que não se distinguiam das mãos de um homem. Eram elas o Chefe de Família e quem mandava lá em casa! Aliás, mandavam em quase tudo. Geriam a lida da casa e muitas delas até organizavam a vida no campo, a vida dos filhos e por vezes até a dos maridos. As feministas ou os defensores da emancipação da mulher teriam para aquelas bandas muito pouco pasto para as suas ideias libertadoras, pois elas socialmente já se tinham emancipado há muito!
E eram vidas de uma dureza tremenda, caramba! Desde peneirar, amassar e cozer o pão todas as quinzenas, à confecção do almoço e do jantar diários, à manutenção dos animais, às matanças dos porcos e do tratamento das carnes e das salgadeiras que conservavam a carne durante o ano inteiro, ao tratamento dos enchidos e dos respectivos fumeiros, das azeitonas britadas ou de água que confeccionavam e conservavam como ninguém e como nunca mais voltei a comer mais nenhumas, à escarapela do milho ou à descasca da amêndoa, à preparação dos tremoços para remolhar durante semanas na ribeira, à secagem dos figos etc., etc., etc., todas estas actividades aquelas mulheres geriam ao pormenor e de cabeça, sem qualquer tipo de plano. Na realidade nem o poderiam fazer, visto que na generalidade eram analfabetas! O trabalho tinha sido a sua única escola desde a mais tenra idade. Eram assim aquelas mulheres da primeira metade do século passado.
[Rua Portas de Mértola.Burro preparado para ir buscar água ao poço]
Devo confessar-vos que sempre cultivei por aquela geração um respeito e um carinho e uma ternura muito especiais apesar da sua rudeza, característica que era fruto dos tempos adversos que tiveram que enfrentar e que sem lamentos nem reivindicarem o que quer que fosse para si, viravam o mundo do avesso com as suas delicadas mãos quase vazias. Foi talvez a última geração de grandes produtores do século XX. Hoje convenhamos, que apesar da crise e dos tempos difíceis que atravessamos, é mais bolos...
Se nos nossos dias brincamos quando encontramos uma mulher mais decidida e lhe chamamos jocosamente de Generala, naturalmente com um pouco de machismo à mistura fruto da sociedade em que por enquanto ainda continuamos a viver, aquelas mulheres bem poderiam ser consideradas verdadeiras Generalas no mais profundo sentido da palavra. Autênticas líderes, tinham uma voz de comando tão treinada, que não deixavam qualquer dúvida quando davam uma ordem. Existia em cada uma, uma verdadeira Padeira de Aljubarrota que arregimentava a sua tribo para a luta do dia-a-dia!
No caso da minha avó, note-se que até a própria casa tinha o seu nome: não era a casa do Ti Alfredo, era a casa da Tia Catarina das Portas e diga-se que essa notoriedade não lhe advinha pelo facto de andar na tagarelice por aqui ou por ali, não só por ser pessoa de poucas conversas mas sobretudo, porque não lhe sobrava tempo para esses devaneios. Mas a sua força e personalidade impunham-se à distância. Assim como poderíamos referir também o Esteiro da Tia Libânia e não do Ti Vidal ou do Ti Marreiros seu segundo marido. Elas é que davam a paternidade às coisas!
Esta minha avó Catarina arrogava-se o direito de decidir sobre tudo, até sobre o casamento dos filhos. O casamento da minha mãe não foi do seu agrado, pois o meu pai para lá de mais velho uns bons anitos e um bocado malandreco e boémio para os tempos, tinha a sua vida mais ligada ao comércio e assim, como a riqueza naqueles tempos se media em terra, nada feito. Consequentemente como líder incontestada do clã rapidamente se decidiu, sentenciando a minha jovem mãe na altura com 18 ou 19 anos e num meio tão pequeno como Alcoutim: se queres ficar cá em casa não há casamento e se queres casamento rua! E assim aconteceu. Feridas que os anos haveriam de reparar aos poucos até cicatrizarem felizmente, ficando apenas eu e a minha irmã nesse interlúdio, como as pessoas que faziam a ponte entre os dois lados da barricada.
[Alcoutim. Década de 50. Rua Escorregadiça (Rua Dr. João Dias)]
E como eu explorava tão bem aquelas contradições entre as duas partes! Contava-me a minha mãe de que ainda um pirralho talabita e tatebitate com 2 ou 3 anos apenas, quando se zangava comigo eu a ameaçava: «se a mãe me bater eu fujo p’rá da avó Atina e a mãe não vai lá»! Os miúdos apercebem-se e exploram tão cedo as contradições entre os adultos!
Eram pessoas rudes e duras moldadas por tempos difíceis e agrestes, mas aonde os afectos apesar de tudo continuavam a existir, ainda que exteriorizados por vezes nas formas mais simples deste mundo. Lembro-me de que com 5 ou 6 anos de idade vir da ribeira ao fim do dia pelo caminho do Pocinho e quando passava na estrada junto ao muro da sua casa, vê-la debruçada lá no alto fazendo um pequeno descanso para ver quem passava e chamar-me afectuosamente: “anda cá à avó, que a avó faz-te umas boletas assadas”! Sem chocolatinhos, sem beijinhos nem colinhos ou outras mariquices do género, era a sua maneira de expressar o seu carinho. Aliás poucos mimos mais haveria naqueles tempos para dar aos netos, talvez mais um figo de tuna ou um figuinho seco, uns tremocinhos que já tinham sido remolhados na ribeira ou uma costa ou uma popia da última cozedura da quinzena quanto muito. Mas o que contava de facto era o gesto e este dizia tudo...
Às vezes quando vou a Alcoutim ainda me sento ao fim das tardes, nas pequenas passadeiras já um pouco deslocadas que ainda por lá existem no Barranco do Poço das Figueiras junto ao Caminho da Amarela, tal como fazia quando era miúdo à espera de ver aquela gente passar. Mas eles já não passam por ali...
É quase como que uma recusa em aceitar de que aquele “nosso Alcoutim” já lá vai.