terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Afonso Vicente foi um grande monte da freguesia de Alcoutim [5]

ACTIVIDADE DOS HABITANTES

AGRICULTURA

Não podia deixar de ter sido a actividade basilar das suas gentes, nomeadamente, a cultura cerealífera.

O trigo constituiu sempre a base da alimentação deste povo. Além dele, semeava-se o centeio, a cevada e a fava.

A arborização era quase nula, procurando-se transformar por enxertia os zambujeiros em oliveiras, pois o azeite era indispensável na sua alimentação. As árvores encontravam-se principalmente nas margens do Guadiana, onde a propriedade era muito dividida e altamente taxada pelo fisco.

Os amendoais apareceram muito depois.

Iremos, seguidamente, referir os principais trabalhos efectuados.

APANHA DA AMÊNDOA



No 3º quartel do século passado a amêndoa possibilitava aos já pouco trabalhadores agrícolas, principalmente para as mulheres, o vencer uns dias de jorna.

Quando os terrenos dos amendoais ficavam brandos através da humidade, o proprietário aproveitava para contratar mulheres para irem apanhar o “relvão” ou seja o mato novo, (esteva, xaragoaço (1) e outras plantas daninhas) que acabava de despontar, evitando assim a infestação dos terrenos.

O mês de Agosto era o destinado à apanha. As mulheres partiam em grupo ao raiar da manhã para os campos acompanhadas do proprietário que levava um ou dois animais de carga, conforme as circunstâncias.

Se algumas das amêndoas já se encontravam no chão, outras ainda se encontravam na árvore, pelo que tinham necessidade de serem varejadas, o que se fazia com uma cana.

Cada mulher levava uma cesta de cana para onde ia deitando as amêndoas que apanhava. Quando cheia era despejada para um saco feito de pano tecido num tear local e depois ia para sacas de linhagem que começaram a aparecer e que foram sendo substituídas por sacas de plástico normalmente originárias do transporte do adubo.

Quando havia carga suficiente para o animal, duas ou mais sacas, dependendo do seu tamanho e do animal que as irias transportar, o patrão ou o seu representante, quando este não podia fazer o trabalho, carregava o animal e lá ia a caminho do “monte” onde tinha o armazém.

Uma vez descarregada a carga voltava ao local da apanha onde se encontrava quase sempre amêndoas suficientes para um novo carrego.

Antes do almoço regressava todo o pessoal a casa para se alimentar e dormir a folga pela hora do calor. Depois desta dedicavam-se em casa do patrão a pelar as amêndoas que punham ao sol para ficarem bem secas. Depois eram novamente ensacadas e ficavam prontas para vender.

A venda dependia do mercado e sofria por vezes oscilações consideráveis. Nessa altura dizia-se que a amêndoa pagava bem a despesa dando ainda um lucro considerável.

Hoje nem dadas as querem apanhar! É a mudança dos tempos.

APANHA DA AZEITONA



Esta tarefa era realizada com fases semelhantes ao que acontecia com a amêndoa, ainda que haja, naturalmente, diferença, principalmente no que respeita à preparação da mesma, tendo por fim a feitura do azeite.

A época própria da apanha para o azeite realiza-se no mês de Novembro, havendo por vezes pequenas oscilações, tendo em conta o decorrer do ano, mais ou menos chuvoso, que influenciam a maturação do fruto.

A azeitona para conserva e para “britar” era a primeira a ser apanhada, sendo a maçanilha a preferida.

As apanhadeiras contratadas deslocavam-se com o patrão ou seu substituto nos mesmos moldes dos da amêndoa, com a diferença que devido à época saiam mais tarde, agasalhavam-se melhor e não vinham a casa almoçar o antigo “jantar”, quando havia ceia. A pouca duração dos dias a isso obrigava.


O varejar fazia-se igualmente com uma cana e debaixo da árvore colocavam-se panos (depois substituídos por redes de plástico apertadas) e que das cestas passavam para as sacas com as mesmas características das que transportavam as amêndoas.

Ao chegar a casa, a azeitona era deitada para grandes canastras e salgada a fim de se conservar. Após a safra, desenrolava-se a feitura do azeite.

Além das britadas, preparavam-se retalhadas, para água e as de sal, para as quais se escolhiam as azeitonas do tipo maçanilha roxa após amadurecerem.

APANHA DO FIGO



As figueiras hoje estão perdidas por falta de tratamento, mas em meados do século passado eram muito acarinhadas pelos alcoutenejos.

Depois de secos, os de melhor qualidade serviam para a alimentação das pessoas, principalmente, quando iam trabalhar para os campos e os piores destinavam-se ao alimento dos animais como bestas e porcos.

Era junto ao rio que existiam as melhores figueiras e na época da apanha (meados de Agosto e meados de Setembro) os proprietários com os familiares dirigiam-se para as várzeas do rio onde as figueiras eram mais abundantes e de maior porte. Levavam os porcos consigo para poderem aproveitar aqueles de pior qualidade e que iam ficando pelo chão.

Era tempo de calor. Comiam-se gaspachos e dormia-se numa cabana quando não ao relento.

Os figos eram varejados com uma cana e postos a secar num caniço ou passeira (palha de centeio ou junco).

Depois de secos eram transportados em sacos no dorso dos animais para o monte e a seguir serem escaldados e colocados às camadas em canastras, quando não se dispunha de arcas de castanho, o melhor sítio para os conservar juntando-se-lhe ervas doces e funcho.

Só depois da apanha dos figos e da sua secagem, a família regressava a casa onde alguém tinha ficado para tratar dos animais que ficarm e para cozer a amassadura semanal que ia alimentando toda a família.

N.B. – A cultura cerealífera já foi abordada neste espaço e em tema próprio pelo que nos escusamos de a repetir.

NAS VÁRZEAS



As várzeas do Guadiana são os terrenos mais ubérrimos do concelho de Alcoutim e como tal muito disputados e repartidos. A proximidade da água e os terrenos de aluvião, aqui designados por “fango” proporcionavam boas culturas.

As melhores oliveiras, muitas centenárias, encontravam-se por aqui, tal como as vinhas, as figueiras e mesmo na margem os marmeleiros e as romãzeiras que com o seu raizame suportavam as terras.

O milho, o feijão e outras leguminosas eram aqui semeadas, as abóboras (frades) desenvolviam-se com facilidade e atingiam grandes dimensões.

Mesmo distantes, não deixavam de ser convenientemente trabalhadas pelos seus proprietários, que assim faziam face a algumas das suas necessidades.

HORTEJOS



Situavam-se mais próximo das residências, junto a um barranco cuja margem era desbravada com o abate dos loendreiros, o aproveitamento da pouca terra existente que para seu suporte construíam paredes de pedra solta pretendendo, assim, defendê-los das barrancadas, como chamam à força das águas que trazem as chuvadas invernosas.

Construíam sempre um pequeno poço para poder efectuar a rega, muito doseada aos poucos produtos hortícolas que lá semeavam.

Batatas, alfaces, uma ou outra couve, uma leirinha de alhos, meia dúzia de tomateiras, como cá dizem, um ou outro pimenteiro e os indispensáveis coentros.

Quando a canícula apertava, ao cair da tarde, lá iam as moças com o caldeiro no braço regar as primícias, já que era trabalho que lhe estava destinado. Aproveitavam para trazer para casa algo que necessitavam e estivesse capaz de colher.

Os terrenos junto aos montes eram destinados a ferragiais indispensáveis para prender os animais que iam pastando.

Aqui tinha que se produzir, pois além de não haver dinheiro para comprar, não havia quem vendesse.

PASTORÍCIA



Esta actividade andou sempre ligada à cerealicultura, complementando-a ora como principal, ora como subsidiária, contudo, estranhamente, não encontrámos nos Registos de Arrolamento de Gados da Câmara Municipal, no século XVII, ninguém de Afonso Vicente, o que não é fácil de perceber, já que em todos os “montes” das proximidades houve vários manifestos.

Enquanto uns se dedicavam às cabras, outros faziam-no em relação aos ovinos e ainda outros ao gado vacum.

Em 1891 um natural e morador em Afonso Vicente, umas vezes designado por Francisco Afonso e outras Francisco Lourenço, é encarregado pelo então Administrador do Concelho de ir vender à Feira de Aljustrel gado constituído por mais de uma dezena de cabeças de gado vacum.(2)

De uma maneira geral todos tinham as suas cabeças, já que além do leite e da carne vendiam sempre exemplares, principalmente borregos, o que lhes possibilitava obter dinheiro para despesas indispensáveis. Algum café ou açúcar, os infalíveis impostos, as botas, caçoilas, tigelas e pelanganas, alguma sardinha e pouco mais. Alguns destes produtos, nomeadamente, as sardinhas e a louça de barro, eram trocados por ovos e trigo, isto até ao primeiro quartel do século passado.


Ainda são visíveis, espalhados pelos terrenos circunvizinhos, vários currais em pedra solta onde o gado era recolhido.

As transacções dos animais tinham lugar normalmente nas feiras de Garvão, Almodôvar ou Aljustrel. Que eram os melhores mercados da região e a distância vencida a pé.

Ainda hoje o “monte” possui um rebanho de cerca de uma centena de cabeças de gado ovino.

Quase todos criavam o seu porquito que engordavam com produtos que colhiam e onde não falta o figo de tuna que, segundo dizem, dava à carne um gosto especial.

Hoje no monte, já não há ninguém que mate porco! Já são poucos os pocilgos existentes.

Os mais abastados, os chamados “lavradores”, matavam mais do que um exemplar, pois as necessidades eram maiores.

N.B.A relação entre o pastor e o patrão, os proventos e obrigações irá ser publicada em tema próprio e de carácter geral em relação ao concelho.

COMÉRCIO


O dado mais antigo que conhecemos de uma actividade comercial, ainda que ela não fosse exercida no”monte” mas sim na vila, é o facto de Manuel Madeira ter arrematado na vila o corte de carnes verdes dependente de cinco cláusulas que aceitou e onde era fixado o número de cortes semanais e os preços que variáveis em diferentes épocas do ano. E isto teve lugar em 1844. (3)

Os seus habitantes nunca estiveram virados para esta actividade.

Existiram, no “monte”, duas vendas (tabernas), a mais antiga pertencente a José Dias, a outra propriedade de Diogo Mestre. Esta vendia também riscados e cabedais, pois na altura trabalhavam no “monte” dois sapateiros.

No primeiro quartel do século XX, era vulgar as mães mandarem as filhas à venda com dois ovos para trocar por petróleo. (4)

Havia também um vendedor ambulante de loja às costas. Vendia o que podia (riscados, linhas) aceitando muitas vezes ovos como moeda de troca. Igualmente um alfaiate exercia a sua profissão trabalhando, principalmente, aos dias em casa de quem solicitava a sua actividade.

Estas duas vendas extinguiram-se em meados do século passado.

Mais tarde apareceu outra do sr. Diamantino Afonso, igualmente sapateiro, que fechou em meados dos anos 70 do século passado, pois mudou residência para o concelho de Beja, onde ainda se encontra.

É muito velha esta quadra que se cantava com frequência nas vendas e que tem sido transmitida de geração em geração.

Viva o Venâncio da Palma,
José Dias, sapateiro
Manuel José de Marrocos, (5)
António da Costa, solteiro.

ARTESANATO



Além dos já indicados sapateiros, no século XIX exercia a actividade um albardeiro.

Como era tradicional, algumas tecedeiras, igualmente, exerciam a esta profissão subsidiária, sendo lembrada como a última, Maria Custódia Dias, que ainda conhecemos. Faziam coisas simples, como mantas de trapos, sacos e toalhas.

Fazer cestos e canastras era apanágio de quase todos os homens, tal como cadeiras de loendro e tecer os seus fundos com junça ou tabua. Fazia parte da cultura dos homens da região.

CONTRABANDO

Ainda que seja uma actividade ilegal não a queremos deixar de referir, já que foi própria de toda a zona raiana, onde Alcoutim se insere.

Se o concelho de Alcoutim, durante a existência de um século da Guarda Fiscal deu grande contributo no seu recrutamento e se é verdade que alguns afonso-vicentinos fizeram parte deste Corpo de Fiscalização, também não o deixa de ser no campo oposto e por vezes da mesma família.

Contrabandistas existiam em todos os “montes” da freguesia de Alcoutim e em muitos do seu concelho, onde nos locais mais afastados existiam “armazéns”.

Contrabandistas não eram só os que faziam o transporte das mercadorias, pois tinham por trás alguém com algum capital que era o investidor.

Documentado temos o caso do levantamento de um auto pelo Administrador do Concelho pelo crime de contrabando e fuga praticado do J.L. e outro de Afonso Vicente.

O auto foi remetido ao Delegado do Procurador Régio na Comarca de Tavira pelo ofício nº 95 de 30 de Setembro de 1874.

Um amigo de Afonso Vicente, não há muitos anos falecido, contou-nos algumas das peripécias de que passou por causa do contrabando, isto realizado no segundo quartel do século passado.

Muitas “estórias” de contrabando ainda se vão contando sobre homens desta povoação, algumas com recortes pouco ou mal definidos como aconteceu com Constâncio Costa desaparecido de maneira enigmática, o que deve de ter acontecido por circunstâncias políticas e não por contrabando como é vulgar ouvir.
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NOTAS
(1) – Xaragoaço, de xara (esteva), do árabe xa ´ara.
(2) - Ofícios nºs 95 e 97 de 7 e 15 de Julho do Administrador do Concelho de Alcoutim.
(3) - Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 25 de Maio de 1844
(4) - Contado por minha tia Maria Catarina Costa que executou essa tarefa bastantes vezes.
(5) – Bisavô de meu filho.

(CONTINUA)