sábado, 18 de fevereiro de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXI




Escreve


Daniel Teixeira




A ESPINGARDINHA

Durante o tempo em que andei por Alcaria Alta já naquilo a que chamo a segunda volta, com cerca de 25/30 anos, eu dava as minhas voltas, muitas mesmo, pelos campos munido de uma espingarda de pressão de ar. Raramente apanhava pássaros em número de jeito, mas gostava de andar por ali, esgueirando-me entre as folhagens nas hortas, perto dos poços no calor do meio dia do verão, ou deitado nas palhas das eiras, apontando e quase nunca acertando.

De acrescentar, só para que o meu ego não fique desde logo destruído, que tive uma média razoável a tiro na tropa e que em princípio se deve à agilidade dos pássaros, ao seu tamanho inflacionado pelas penas e ao vento e a outros factores naturais o facto de eu ter uma percentagem de falhanços elevada: uma vez um tio meu - residente na cidade havia muitos anos - foi-me «fiscalizar» na viagem aproveitando para dar ele também uma voltinha pelas hortas. Levei uma descasca de todo o tamanho nesse dia. Apanhei um pássaro perante vinte ou trinta em posição ao longo dos caminhos.

[Eu e a "espingardinha". Sentado no poial da casa.]

De reparar no ar quase impecável da caiadura e da pintura na porta. O chapéu é o mesmo de há 20 anos atrás. De referir que a parreira acima tinha uvas «coração de galo» (enormes) que eram protegidas das bicadas dos pássaros enfiando os cachos em meias.

Bem, mas o que interessa aqui é denotar uma coisa (não é para fugir à conversa sobre os falhanços como se irá notar): toda a gente, incluindo mulheres, achavam piada por eu andar com uma «espingardinha» e referiam-se á minha «máquina» com ar de gozo.

Na sua grande parte em casa deles e delas não havia espingarda de verdade (era muito cara e «desporto» de ricos) e nem sequer os seus filhos tiveram alguma vez uma pressão de ar como a minha pelo que era de supor que eu e a minha máquina fossemos respeitados pelo menos por estarmos um degrau que fosse acima das suas possibilidades. Nada disso...era a espingardinha e pronto!

Chegavam ao ponto de me dizer que os pássaros sentiam «o cheiro a pólvora» por isso debandavam quando me viam: ora a pressão de ar é mesmo isso, trabalha a pressão de ar e a pólvora ou outro produto explosivo emanando cheiro ou não estão ausentes no processo.

Claro que reconheço que não existe comparação possível entre o meu vestir e andar à desportista e os caçadores de facto que pela época enchiam o rossio de carros logo pelo final da noite. Nem sequer os víamos de manhã, víamos os carros e jipes estacionados e lá pelo meio dia o seu regresso em direcção aos carros com paragem na taberna da Ti Inácia.

Devidamente apetrechados de camuflados, cartucheiras pesadas e repletas, quando chovia vinham num pingo...mas era caça, era assim mesmo. Peças apanhadas quase sempre poucas mas regressavam repletos de histórias: o caçador tem uma afinidade grande com o pescador; não podendo efabular com os tamanhos das peças efabula sobre as quantidades. Mas ao contrário da minha sinceridade que esclareci acima (falhava mesmo eu, re-confesso) estes por princípio não falhavam: os animais é que passavam quase em fila indiana ou em rebanho fora do alcance do tiro...

Eu e outros ouvíamos estas histórias: por vezes aparecia gente conhecida de Faro e sabendo das praxes e dos gozos fui sabendo que a caça tem duas fases: uma a realidade e outra a parte imaginária com alargamento. Nesta última e na sua primeira fase o que conta é a credibilidade e possibilidade mesmo remota de coerência entre eles, caçadores. Trata-se da história imaginária sem descolamento aéreo pronunciado.

Quando a assistência se junta procede-se então ao despique pelo maior barrete que seja credível para quem está de fora do processo da caça passada no terreno ou que não sendo credível se torne de tal forma apoiada que nem pio de contestação seja de ouvir: fulano diz que viu e corrobora a história que beltrano contou e depois sicrano não viu nada mas acredita porque é gente honesta que fala nisso e ao apoiar (por o selo) quem somos nós (montanheiros) para contestar?

Por isso, em dias de caça no Monte, eu sentia-me de facto ainda mais deprimido pelo facto da minha «espingardinha» ser destronada no seu pequeno e merecido prestígio por uma série de aldrabices. Dói mesmo...



Para desanuviar temos a Manuela com a sobrinha, filha da sua irmã Fernanda, sentadas no poial de uma casa que me parece ser a da Ti Delerinda (é mesmo assim) que dava continuidade final ao renque que começava na casa do João Baltazar terminando o quarteirão.