terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A cana na vida alcouteneja

(PUBLICADO JORNAL DO BAIXO GUADIANA Nº 78 DE AGOSTO DE 2006)

[Canavial na Ribeira de Cadavais. Foto JV]

Quando há dias me foi pedido a feitura de um canudo de cana, objecto que tinha sido visto em utilização, por um amigo, numa visita rápida quando me encontrava na minha casa do monte, ao realizar o trabalho daquele e de mais dois para familiares, comecei a pensar na utilização da cana pelos alcoutenejos, aquilo que fui vendo e observando em mais de três décadas de contacto.

Dizia-me o meu amigo quando verificou a utilização do objecto:- Como de uma coisa tão simples se pode fazer um objecto tão útil e eficiente e que nunca tinha visto. Respondi-lhe que a mesma reacção e conclusão tinha passado por mim uns bons anos antes.

Só anos depois e procurando explicações para o que ia vendo e sentindo tirei as minhas conclusões.

A cana (arundo donax, L.) é uma planta rizomatosa cultivada e espontânea em Portugal, de colmo elevado, folhas lanceoladas e de inflorescência composta, de tipo panícula. O caule torna-se lenhoso, com entrenós ocos. (1)

Numa zona árida como a que ocupa o concelho de Alcoutim, onde a florestação era praticamente inexistente, com algumas azinheiras e poucos sobreiros, zambujeiros e pouco mais, só depois e nalgumas zonas, nomeadamente nas freguesia de Alcoutim e de Vaqueiros se começou a semear amêndoas nos pequenos sulcos com que os arados de madeira iam rasgando o terreno delgado de xisto, constituindo hoje os abandonados amendoais.

Só recentemente se tem procedido à florestação, predominantemente de pinheiros e azinheiras com resultados que não posso calcular.

Num concelho, quase isolado do Mundo até meados do século passado, com uma única
estrada que ligava a sede do concelho à aldeia de Pereiro, fazia as suas trocas comerciais através da auto-estrada aquática existente que constituía o Rio Guadiana, nomeadamente para a vila e zonas bordejantes.

Significa isto a grosso modo que as pessoas tinham que se governar com aquilo que possuíam, que a natureza lhes dava ou que conseguiam produzir.

Na margem do Guadiana existiam e existem grandes canaviais já que aí encontram condições para o seu desenvolvimento, com a indispensável presença da humidade. A sua existência era benéfica pois além do mais, defendia os terrenos adjacentes, fixando-os.

As ribeiras e barrancos são também locais do seu habitat e aí lutava com os loendreiros pela ocupação do espaço, quando não com o homem que pretendia aquele lugar mais fresco para poder desenvolver um pequeno hortejo onde não faltava uma ou outra oliveira, dois pés de parreira que transformava em parrões, uma figueira ou um albricoqueiro.

O alcoutenejo no decorrer dos séculos foi tirando partido da sua existência e assim procurando manter a espécie.

[Típico caniço. Foto JV]

Não tinham madeira para forrar as casas, como acontecia noutras regiões e estavam distantes as técnicas actuais usadas em toda a parte. O alcoutenejo pensou que usando as canas, relativamente fáceis de obter, podia tornar mais confortável a sua habitação, acabando por utilizá-las, bem encostadas umas às outras por intermédio de um laço próprio dado em corda de sisal, pregadas aos paus, tudo feito com uma técnica sui generis que começa a desaparecer por falta de aplicação. Não esquecer que as varas do loendro, um produto expontâneo local, são absolutamente indispensáveis nesta feitura.

Se uma casa feita de pedra não tem comparação à feita de tijolo, na nossa modesta opinião, em Alcoutim, além deste facto, se tiver caniço, que é como se chama ao forro das casas com canas, tem enormes vantagens no aspecto ambiental, a qualquer outro sistema, nomeadamente aos feitos com betão.

Aqui deixo o meu lamento ao facto de considerável número de alcoutenejos, augurarem-se em paladinos da sua terra, defenderem o caniço no “paleio” e quando chegam à prática, substituem-no pelo betão!

Quantos exemplos querem?

É que isto dá jeito dizer em determinadas circunstâncias, principalmente quando o nosso ganha pão está relacionado com estas coisas.

Continuando em casa iremos enumerar algumas das utilizações da cana.

[Caniço para queijos. Foto JV]

Além dos caniços dos telhados, indicaremos os caniços para secar os queijos, feitos de maneira semelhante e que se penduram para evitar outros contactos.

Para atear o fogo, o típico canudo com que iniciámos este escrito. Furado interiormente nos nós, é tapado numa das extremidades com cortiça que se fura com um pequeno ferro em brasa. Na parte oposta, arredonda-se a cana para melhor se assoprar e a concentração do ar se poder fazer com eficiência, o canudo deve de ter um cumprimento adequado.

Quando se mata (ou matava) o porquito e se faziam as chouriças, era numa cana, suportada por arames, que se dependuravam no fumeiro, para curarem.

A cestaria de cana tinha no concelho grande expressão, não a nível de exportação, mas para consumo local. Ainda que existissem profissionais desta arte e alguns eu conheci, o alcoutenejo, pelo menos até aos princípios do século passado, para se poder classificar como um homem completo e capaz de constituir família, tinha de saber pegar na rabiça do arado, saber fazer uma cadeira e um cesto! O lavrar para produzir o pão, a cadeira para se sentarem e os cestos para recolher e transportar os mais variados produtos!

Canastras de variadíssimos tamanhos, cestas, cestos, condessas e cabazes constituíam as designações mais vulgares, mas a arte e a imaginação do artista podia dar origem a peças fora do comum e em consonância com as necessidades de cada um.

As canastras, caracterizadas por terem duas asas no rebordo, usavam-se nas mais variadas situações, desde o transporte do estrume (localmente esturme) à recolha da amêndoa passando pelo transporte de roupa suja ao rio, barranco ou pego, a fim de ser lavada, isto entre muitas das utilizações. Também era a cestaria de cana que caracterizava os tejadilhos das camionetas de transportes públicos que chegavam à capital do País – aquelas camionetas vinham do Algarve, ninguém tinha dúvidas. Depois era o regresso ... canastras vazias.

Não existe uma diferença bem marcada entre cesta e cesto, ainda que a primeira tenha de ter sempre uma asa arredondada e suficientemente grande para meter num braço, enquanto o cesto normalmente não a tem.

O cesto é mais pequeno e quanto tem tampo, também tem asa. Quando assim é, chamam-lhe condessa. Empregava-se muito para transporte de ovos e coisas mais melindrosas, daí a tampa para protecção.

Cestos baixos e ovalados destinavam-se à roupa depois de passada a ferro.

Para recolha de papéis, todas as repartições públicas possuíam cestos de cana de pé e receptáculo, há muito substituídos por de plástico e outros materiais, por vezes oriundos do Oriente.

As costuras eram pequenas e achatadas cestas das alcoutenejas que recolhiam linhas, agulhas, dedal, elástico, nastro, tesoura e ovo de madeira para coser as peúgas, na altura um luxo pois o tradicional era utilizar um seixo liso e arredondado

Mas não acabava aqui o uso da cana!

Se nos virarmos para a pesca, vamos encontrar a cana nos covos, nos cabos das fisgas e rodiscas. (2) e nas antigas canas de pescar.

Na vida do campo vamos encontrar as canas para varejo de frutos, principalmente a azeitona, a amêndoa e a alfarroba e na utilização de rocas destinadas não ao varejo mas a apanha cuidada de frutos, como os figos.

Para evitar a acção do dente roedor do gado, protegem-se os enxertos com canastras, especificamente feitas para o efeito.

As árvores novas e as parreiras têm na cana um bom suporte depois de devidamente seguras.

Os ceifeiros usavam-nas para proteger os dedos de eventuais golpes da foice, constituindo dedeiras ou galapos.

Para se conhecer a direcção do vento fazem-se moinhos de cana de vários formatos e tamanhos chegando a produzir sinais sonoros, tudo dependendo da habilidade e disposição do artista. (3)

Tenho visto gaiolas feitas de cana.

Os mais ligados à música faziam pífaros de cana, obtendo os buracos com um ferro em brasa.

Até para estender a roupa, para secar, se usa uma cana para levantar o arame ou corda a fim de suportar o peso.

Depois de utilizadas e meio podres, mesmo assim são excelentes para acender o fogo.

Certamente que muitas aplicações nos escaparam e outras não as conheceremos.

Não terá sido a cana um valioso auxiliar do alcoutenejo, ao longo dos tempos? Pensamos que sim.


NOTAS
(1)– Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa – Verbo, 2001.
(2) – Arco circundado de rede, em tipo de funil e com um cabo, normalmente de cana, in Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio (subsídios para uma monografia), José Varzeano, 1985, pág. 83.
(3) – O Sr. José Pereira, das Cortes Pereiras, é um habilidoso nesta arte.