domingo, 5 de fevereiro de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XX




Escreve


Daniel Teixeira



O RELEVO DAS PESSOAS EM ALCARIA ALTA



Este tema pelo seu título pode prestar-se a alguma consideração prévia menos apropriada mas no fundo o que eu pretendo é descrever aquelas pessoas que conheci e que, por uma razão ou outra, por vezes não muito, se fizeram realçar num Monte onde de uma forma geral os níveis de sociabilidade eram parelhos.

Ser rico, e a riqueza é bem relativa aqui, ou ser pobre, e a pobreza é também bem relativa aqui, não tinha uma divisão por estratos acentuada: as pessoas respeitavam-se entre si na sua aparente riqueza ou na sua aparente pobreza e mesmo os então serviçais que ainda conheci eram considerados de uma forma geral como família e protegidos na sua medida quando eram «poucochinhos» (quer dizer eram excessivamente ingénuos ao ponto de aflorarem a oligofrenia moderada).

As excepções, quer dizer, os destaques da normalidade, serão assim vistas em dois planos: o destacado é aquele que da lei da morte se liberta nem sempre por obras valorosas e algumas vezes destaca-se precisamente por não ter feito de facto obra, naquele sentido construtivo e produtivo a que a sociedade moderna nos habituou.

Temos uma colaboradora nossa, Arlete Deretti Fernandes, que é de Florianópolis, Estado de Santa Catarina, Brasil que ainda recentemente apresentou uma história de mendigo vagabundo bastante considerado pelas populações residentes nos sítios por onde parava cujo epitáfio verbal terá sido dito da seguinte forma: «Fulano, faleceu sem nada ter feito nem de bem nem de mal ao longo da vida.» Convenhamos que é difícil conseguir este equilíbrio comportamental ao longo de uma vida e ser notado, precisamente por não se ter feito notar.

Em Alcaria Alta havia muitas pessoas que numa outra medida que não a da vagabundagem entrariam dentro desta definição: nunca fizeram nada de mal e o bem que fizeram foi terem vivido na sua medida. Em certo sentido passaram pela vida mais do que a vida passou por elas. Sem menosprezo para ninguém, é claro, governaram a sua vida sem se fazerem notar. Plantaram aquilo que colheram e mesmo que episodicamente precisassem de ajuda dos seus vizinhos nomeadamente em ração para os animais isso era tomado como absolutamente normal na medida em que mais tarde ou mais cedo o vizinho ajudante acabaria por necessitar de uma ajuda também.

Ora um escritor de época relataria o que escrevo como sendo um bucolismo onde só falta o cantar dos passarinhos e o marulhar das fontes e riachos. Não é bem assim: embora sempre os citadinos tenham achado estranho que os serrenhos não trabalhassem à hora do calor (desde as 11 horas às 3/4 da tarde sensivelmente) nunca terão pensado provavelmente em perguntar qual o resto do horário de trabalho. A manhã era de 4/5 horas e a tarde prolongava-se até ao anoitecer (9 -10 horas no verão).

Pois bem, esta relativa pobreza do pouco comum dava um realce maior ao incomum: é tudo uma questão do diferencial existente nas plataformas de actuação e do acesso a elas. Por outro lado, e no prolongamento deste princípio, poderemos também ver a inversa, ou seja, havendo uma plataforma baixa comum muito do que poderia ter sido mais elevado no incomum pode ter sido absorvido precisamente pela ausência de resposta à altura pelo comum. Acho que é razoável pensar-se assim...

Já aqui falei do Chico Artur e da sua durante anos isolada produção de porcos brancos e do alegado cruzamento entre porcos e javalis (que continuo a considerar barrete). Não devo ter falado ainda do Ti Zé Pereira, um competente organizador de sistemas de rega por alcatruzes, frustrado pela escassez de profundidade da água no poço. Tinha uma instalação completa numa horta, com corredores de água em telha invertida, um alcatruz de manivela, terreno bem cuidado e bastamente plantado, mas não tinha água que bastasse para utilização do sistema. Todos os anos, pelo menos durante 3/4 anos ouvíamos os estouros da dinamite numa de «ou vai ou racha».

O João Baltazar é, em certo sentido, um caso com algumas semelhanças neste plano da falta de resposta neste caso não da natureza mas da «sociedade comum». Era um engenhocas, com se costuma dizer: criou a primeira e única destilaria em Alcaria Alta para produção de aguardente de figo mas teve de fechar a «loja» por falta de clientela. O pessoal bem ia ali assistir ao processo de destilação, fazer a prova, dar uns dedos de conversa, mas comprar deve ter sido caso esporádico: deve dizer-se que o álcool não fazia parte dos hábitos de consumo local nem a aguardente de figo do consumo geral, acrescente-se: a aguardente de figo ainda hoje (30 anos depois pelo menos) está longe de se implantar no mercado.

O vinho caseiro, por mim mais conhecido como sendo sumo de uva engarrafado com vestígios de fermentação (quando a garrafa começava a querer fazer saltar a rolha estava bom e era vinho) era de uso por quem produzia, de castas claramente desconhecidas e a esmo: sobrava uva fazia-se «vinho». Era uso beberem-se pequenas quantidades para não subir à cabeça: por mim, e por aquilo que fui aprendendo depois, podia-se à vontade beber um garrafão de 5 litros que o resultado seria igual. Mas era da praxe dizer-se que «dava porrada» numa gentileza para com o produtor.

[Velho alambique de JB Guerreiro. Retirado com a devida vénia de http://alcariaalta.blogspot.com]

E era assim, tudo era assim, sempre foi que eu me lembre, e penso (é lógico) que não terá sido só em Alcaria Alta: houve realmente muita coisa que faltou, não sei exactamente o quê, que suprisse a escassez e a depreciação das produções de cereais e fornecesse alternativas e isto em devido tempo, antes de deixar que o processo de pauperização progressiva se instalasse: quanto menos independente o meio maior a evolução da dependência.

Um dia alguém pensará nisto com conta peso e medida...