sábado, 6 de abril de 2013

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim, Recordações - XLVII



  
Escreve

Daniel Teixeira




ALCARIA ALTA E OS CIGANOS

Devo começar por confessar que faço parte de um sector dentro da minha geração onde ser cigano tem o significado usual que tem atravessado muitos anos da nossa história. Não vou, pois, neste texto, «armar-me» em defensor acérrimo dessa etnia até porque eles disso não sentirão seguramente falta e também não vou dizer que me coloco ao lado daqueles que a não toleram de todo.

Vou contar uma história sem tirar nem por. Comecei cedo a criar esta convicção quase neutra que tenho hoje sobre a etnia cigana. Sou um «produto» desta sociedade em que vivemos e nada lhe acrescento neste plano nem nada lhe retiro.

A sua errância tem servido para alimentar inúmeros sonhos de liberdade e fuga às regras sociais mais custosas sobretudo quando somos jovens, a sua capacidade de viverem numa sociedade que os hostiliza e não os hostiliza conforme as circunstâncias e as conveniências pontuais tem merecido algumas referências também pontuais e o seu relacionamento com o conceito de autoridade, tanto internamente na sua comunidade como externamente na sua relação com os «outros» já foi inclusivamente objecto de teses académicas.

Trata-se de uma questão discutida e não discutida ao mesmo tempo, uma questão neutra, se quisermos, tal como eu apresento aqui neste meu texto. Por curioso que possa parecer a imagem que existe sobre os ciganos, em Portugal e um pouco por todo o mundo é quase a mesma que existe em relação à negritude nos países que preferem ignorar que possa existir um problema simplesmente não falando nele.

Pois, e começando propriamente, a minha mãe, essa para mim extraordinária contadora de histórias, contou-me talvez centenas delas e eu infelizmente só de quando em vez arranjo princípio, meio e fim para as contar. A primeira que aqui conto e que entra dentro deste contexto, foi logo quando o meu irmão mais novo nasceu.

Todos nascemos no antigo Hospital da Misericórdia de Faro, gerido por freiras, por razões que se prendem não tanto com a falta de ideia do uso da parteira, mais utilizada na altura, mas porque as gravidezes da minha mãe todas elas foram de risco, exceptuando a última, em que se tratou já do assunto numa perspectiva preventiva.

Os cuidados pré-natais eram praticamente inexistentes e todos até ao mais novo nascemos com peso excessivo. Este, o mais novo, já «beneficiou» de uma parte desses cuidados e acabou por nascer com um peso a aproximar-se daquele que agora é considerado normal para um parto normal.

E a primeira parte desta história nasceu logo quando ele nasceu. Encontrando-se a minha mãe na enfermaria já com o meu irmão nascido, deu entrada uma cigana que teve o seu rebento ao qual a minha mãe por vizinhança de camas assistiu. Nascido o bebé trataram de o lavar, naquele tempo numa arcaica pia quase semelhante em dimensão àquelas que temos hoje nas nossas casas de banho.

Pois o miúdo naquela natural aflição de ter nascido para o mundo e começar logo por ser manipulado daquela forma naquela operação agarrou-se à torneira com a força que tinha e não a largava, daí que uma Freira (religiosa e que em princípio não deveria ter opinião) com humor um pouco infeliz saiu-se com esta: «Olha lá o ciganito, mal nasceu já quer roubar a torneira!» Pois é, da ancestral fama não se livrou, o pobre do miúdo que nem sequer sabia ainda que era cigano nem o que era ser cigano.

E a história continua, com outros personagens, alguns anos antes. Contou-me a minha mãe que havia amiúde ciganos que passavam com as suas trouxas pelos montes e seus arredores, acampando aqui e ali, normalmente ao pé de cursos de água ou de poços e entre os Montes que frequentavam na sua errância havia Alcaria Alta.

Ora numa dessas passagens por Alcaria Alta terá desaparecido um porco de um pocilgo e tendo os ciganos pernoitado por lá e já tendo partido de madrugada logo lhes foi atribuída a autoria do roubo.

Embora a fonte desta informação seja credível (caramba, foi a minha mãe que me contou!) eu ainda hoje me pergunto como é possível roubar-se um porco, de noite que seja, sendo a sua gritaria (do porco) tão forte e estridente que é até capaz de acordar um morto.

Mesmo que o tivessem morto, o ruído (o guinchar) do porco teria sido grande, pelo que aqui só posso acreditar ter acontecido aquilo que normalmente é atribuído também aos ciganos e sobretudo às ciganas, que é o conhecimento mágico de alguma poção capaz de meter o animal a dormir a horas certas e durante o tempo necessário para que a troupe alcançasse as redondezas.

Ora o montanheiro não nada em dinheiro e por natureza precisa do porco, é o seu alimento de Inverno e para além do mais era seu, era do primo Custódio («Custóide» em Alcarialtês) num sítio onde todos são primos. Tinha-lhe custado a criar para além do custo em bacorinho e havia mais um rol de argumentos usados nestas ocasiões e noutras semelhantes.

Depressa a solidária revolta juntou alguns voluntários para irem em caça dos ciganos e do porco. Movimentaram-se depressa estes, e só o facto de o montanheiro ser também naturalmente um bom pisteiro permitiu que eles fossem alcançados já perto de Martim Longo, por onde tinham seguido via Ribeirão e proximidades de Santa Justa, Foupana acima depois.

Era já tarde, talvez pelas cinco da tarde e os ciganos sentindo-se seguros já prepararam as trouxas para estacionar. E lá foi um dos mais novos a Martim Longo chamar a Guarda tendo o resto do pessoal ficado de vigia. A patrulha quando chegou era já noite e para desgosto de todos e sobretudo do primo Custóide assistiram a toda a operação de desmembramento do animal, à sua colocação nas brasas e pior ainda sentiram chegar aos estômagos há muito vazios o cheirinho a carne assada.

Quando a guarda chegou pôs logo aquela malta toda em sentido. Naquele tempo a guarda não gozava de um grande prestígio em relações públicas e passou-se logo aos factos. Apesar das tradicionais negações depressa se chegou a um forçado acordo: os ciganos pagavam o porco por um preço que foi considerado justo e para o primo Custódio e os outros que o acompanhavam estava tudo certo.

Mas a Guarda tinha ainda em carteira a sanção acessória: aquela tribo nunca mais ia a Alcaria Alta e ficava com o encargo de dizer às outras tribos que não podiam pernoitar nas imediações do Monte. E assim aconteceu, assegurou-me a minha mãe: quando apareciam ciganos por lá nem era preciso ir lá dizer-lhes o que quer que fosse; chegava ao entardecer arrumavam as trouxas e iam-se embora.

No meu tempo não cheguei a ver ciganos lá pelo Monte, mas - dizia-me a minha mãe - se eles viessem havias de ver que agora, que são passados mais de trinta anos, os ciganos não pernoitam nos arredores de Alcaria Alta.

Sinceramente acho que a minha mãe aqui na parte final me enfiou um barrete, mas como criticá-la se a história está tão bem contada!?