Escreve
Daniel Teixeira
ALCARIA ALTA E OS
CIGANOS
Devo começar por confessar que faço parte de um sector
dentro da minha geração onde ser cigano tem o significado usual que tem
atravessado muitos anos da nossa história. Não vou, pois, neste texto,
«armar-me» em defensor acérrimo dessa etnia até porque eles disso não sentirão
seguramente falta e também não vou dizer que me coloco ao lado daqueles que a
não toleram de todo.
Vou contar uma história sem tirar nem por. Comecei cedo a criar esta convicção
quase neutra que tenho hoje sobre a etnia cigana. Sou um «produto» desta
sociedade em que vivemos e nada lhe acrescento neste plano nem nada lhe retiro.
A sua errância tem servido para alimentar inúmeros sonhos de liberdade e fuga
às regras sociais mais custosas sobretudo quando somos jovens, a sua capacidade
de viverem numa sociedade que os hostiliza e não os hostiliza conforme as
circunstâncias e as conveniências pontuais tem merecido algumas referências
também pontuais e o seu relacionamento com o conceito de autoridade, tanto
internamente na sua comunidade como externamente na sua relação com os «outros»
já foi inclusivamente objecto de teses académicas.
Trata-se de uma questão discutida e não discutida ao mesmo tempo, uma questão
neutra, se quisermos, tal como eu apresento aqui neste meu texto. Por curioso
que possa parecer a imagem que existe sobre os ciganos, em Portugal e um pouco
por todo o mundo é quase a mesma que existe em relação à negritude nos países
que preferem ignorar que possa existir um problema simplesmente não falando
nele.
Pois, e começando propriamente, a minha mãe, essa para mim extraordinária
contadora de histórias, contou-me talvez centenas delas e eu infelizmente só de
quando em vez arranjo princípio, meio e fim para as contar. A primeira que aqui
conto e que entra dentro deste contexto, foi logo quando o meu irmão mais novo
nasceu.
Todos nascemos no antigo Hospital da Misericórdia de Faro,
gerido por freiras, por razões que se prendem não tanto com a falta de ideia do
uso da parteira, mais utilizada na altura, mas porque as gravidezes da minha
mãe todas elas foram de risco, exceptuando a última, em que se tratou já do
assunto numa perspectiva preventiva.
Os cuidados pré-natais eram praticamente inexistentes e todos até ao mais novo
nascemos com peso excessivo. Este, o mais novo, já «beneficiou» de uma parte
desses cuidados e acabou por nascer com um peso a aproximar-se daquele que
agora é considerado normal para um parto normal.
E a primeira parte desta história nasceu logo quando ele nasceu. Encontrando-se
a minha mãe na enfermaria já com o meu irmão nascido, deu entrada uma cigana
que teve o seu rebento ao qual a minha mãe por vizinhança de camas assistiu.
Nascido o bebé trataram de o lavar, naquele tempo numa arcaica pia quase
semelhante em dimensão àquelas que temos hoje nas nossas casas de banho.
Pois o miúdo naquela natural aflição de ter nascido para o mundo e começar logo
por ser manipulado daquela forma naquela operação agarrou-se à torneira com a
força que tinha e não a largava, daí que uma Freira (religiosa e que em
princípio não deveria ter opinião) com humor um pouco infeliz saiu-se com esta:
«Olha lá o ciganito, mal nasceu já quer roubar a torneira!» Pois é, da
ancestral fama não se livrou, o pobre do miúdo que nem sequer sabia ainda que
era cigano nem o que era ser cigano.
E a história continua, com outros personagens, alguns anos antes. Contou-me a
minha mãe que havia amiúde ciganos que passavam com as suas trouxas pelos
montes e seus arredores, acampando aqui e ali, normalmente ao pé de cursos de
água ou de poços e entre os Montes que frequentavam na sua errância havia
Alcaria Alta.
Ora numa dessas passagens por Alcaria Alta terá desaparecido um porco de um
pocilgo e tendo os ciganos pernoitado por lá e já tendo partido de madrugada
logo lhes foi atribuída a autoria do roubo.
Embora a fonte desta informação seja credível (caramba, foi a minha mãe que me
contou!) eu ainda hoje me pergunto como é possível roubar-se um porco, de noite
que seja, sendo a sua gritaria (do porco) tão forte e estridente que é até
capaz de acordar um morto.
Mesmo que o tivessem morto, o ruído (o guinchar) do porco teria sido grande,
pelo que aqui só posso acreditar ter acontecido aquilo que normalmente é
atribuído também aos ciganos e sobretudo às ciganas, que é o conhecimento
mágico de alguma poção capaz de meter o animal a dormir a horas certas e
durante o tempo necessário para que a troupe alcançasse as redondezas.
Ora o montanheiro não nada em dinheiro e por natureza precisa do porco, é o seu
alimento de Inverno e para além do mais era seu, era do primo Custódio
(«Custóide» em Alcarialtês) num sítio onde todos são primos. Tinha-lhe custado
a criar para além do custo em bacorinho e havia mais um rol de argumentos
usados nestas ocasiões e noutras semelhantes.
Depressa a solidária revolta juntou alguns voluntários para
irem em caça dos ciganos e do porco. Movimentaram-se depressa estes, e só o
facto de o montanheiro ser também naturalmente um bom pisteiro permitiu que
eles fossem alcançados já perto de Martim Longo, por onde tinham seguido via
Ribeirão e proximidades de Santa Justa, Foupana acima depois.
Era já tarde, talvez pelas cinco da tarde e os ciganos sentindo-se seguros já
prepararam as trouxas para estacionar. E lá foi um dos mais novos a Martim
Longo chamar a Guarda tendo o resto do pessoal ficado de vigia. A patrulha
quando chegou era já noite e para desgosto de todos e sobretudo do primo
Custóide assistiram a toda a operação de desmembramento do animal, à sua
colocação nas brasas e pior ainda sentiram chegar aos estômagos há muito vazios
o cheirinho a carne assada.
Quando a guarda chegou pôs logo aquela malta toda em sentido. Naquele
tempo a guarda não gozava de um grande prestígio em relações públicas e
passou-se logo aos factos. Apesar das tradicionais negações depressa se chegou
a um forçado acordo: os ciganos pagavam o porco por um preço que foi
considerado justo e para o primo Custódio e os outros que o acompanhavam estava
tudo certo.
Mas a Guarda tinha ainda em carteira a sanção acessória: aquela tribo nunca
mais ia a Alcaria Alta e ficava com o encargo de dizer às outras tribos que não
podiam pernoitar nas imediações do Monte. E assim aconteceu, assegurou-me a
minha mãe: quando apareciam ciganos por lá nem era preciso ir lá dizer-lhes o
que quer que fosse; chegava ao entardecer arrumavam as trouxas e iam-se embora.
No meu tempo não cheguei a ver ciganos lá pelo Monte, mas - dizia-me a minha
mãe - se eles viessem havias de ver que agora, que são passados mais de trinta
anos, os ciganos não pernoitam nos arredores de Alcaria Alta.
Sinceramente acho que a minha mãe aqui na parte final me
enfiou um barrete, mas como criticá-la se a história está tão bem contada!?