quinta-feira, 18 de abril de 2013

Recordações das férias grandes de há 40 / 45 anos [1]


Pequena nota
O nosso recente colaborador inicia hoje a sua colaboração, passe a redundância, em prosa com um texto de grande realismo que mostra aos jovens de hoje como era a vida na altura e este ainda teve o privilégio de poder estudar o que estava vedado à grande maioria dos jovens alcoutenejos.
J V

 



Escreve

José Rodrigues



ALGUNS DIAS DE TRABALHO NO CAMPO

Em Balurcos, naqueles dias estivais do final dos anos 60, inícios dos anos 70, do século passado, nada se passava de novo na passagem lenta do tempo, como se esse tempo nunca mais tivesse fim.

Os meus avós “impunham-me” o adágio popular, que diz: “deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer”,

Costa
O deitar era-lhes sempre difícil controlar, mas o toque de alvorada era dado por volta das 6,00 da manhã, quando o meu avô batia com o cajado no postigo da porta da casa (separada da deles) onde eu dormia. Não havia hipótese de safa. O pequeno almoço, constituído alternadamente, por uma torrada besuntada com toucinho cozido, sobra do jantar do dia anterior, ou uma costa, ou até um caldo de farinha torrada, vezes havia em que marchava apenas o café e pão com “dentes”. A primeira refeição seria no entanto rematada com os melhores figos, doces, frescos, colhidos directamente da figueira ou por umas amêndoas esquecidas da safra anterior, torradas pelo sol, em cima da árvore (as do chão faliam ou rançavam e por isso não eram comestíveis).

Depois do “café” tínhamos pouco tempo para albardar a burra e zarpar ao destino onde, desejavelmente, devíamos chegar ao mesmo tempo do clarear do dia, para a apanha das amêndoas ou das alfarrobas, cujo produto da venda, num tempo em que ambas ainda valiam “alguma coisa” acrescentava rendimento, para ajudar (mal) a subsistência da família. Para garantir o sustento dos animais, nomeadamente da burra e do porco, apanhávamos também os figos, que poderiam ser consumidos em “verde” ou em “passas”, depois de aturado processo de secagem no almeixal. Os dias de brandura aproveitavam-se para apanhar e transportar para a eira os tremoços, fundamentais, depois de adoçados, para misturar na travia do porco. Os tremoços eram, geralmente, tão saborosos que até nós os comíamos, salpicados de sal grosso.

Para garantir acumulação de energia potencial calorífica, necessária à lareira no Inverno e ao aquecimento do forno do pão todo o ano, acarretava-se com a burra, aparelhada de cangalhas, a lenha de esteva que fora arrancada, junta em fascinas, e embarbada, no Inverno anterior. Aos poucos e poucos, íamos ampliando o manturo, para regozijo da minha avó.

Caldeirão
Outra actividade obrigatória era a rega da cerca, cuja água era retirada do poço, conforme se podia, com um caldeirão suspenso por uma corda na qual se davam, a espaços, alguns nós por forma a não escorregar pelas mãos, mesmo assim, frequentemente, apareciam as desgraçadas “burrefas” que ao rebentar causavam algum padecimento. Muitas vezes eu fazia uma “tácita sociedade” com o meu avô, resultante da verificação insofismável dos seguintes factos; ele ainda com força nos braços e as pernas já a fraquejar, eu já com o vigor nas pernas, que ainda me faltava nos braços. Usávamos então a seguinte táctica: ele sentava-se no gargalo do poço e tirava a água com o caldeirão, a pulso, com uma facilidade que me impressionava, e depois despejava-a numa lata (balde cilíndrico) de chapa de zinco, que levava dois caldeirões e que eu transportava, num ápice, vertendo o seu conteúdo nas covas das plantas (batatas, feijão, couves, etc.) e nas leiras (cebolas, alhos, coentros, etc.), ou até nas árvores que careciam de rega (limoeiros, laranjeiras, etc.). Era uma parceria perfeita, ele descansava enquanto eu transportava e ao invés folgava eu, enquanto ele atestava a lata.

Pela razão manifestada na parágrafo anterior, o lugar “a cavalo” na burra, era sempre do meu avô, quer na ida, quer na volta entre a carga, sendo o limite de volume e peso dessa mesma carga, fixado de acordo com a necessidade de ele ter que ir e vir sempre montado. O trabalho durava, normalmente, até 10,30 / 11,00, hora a partir da qual era praticamente impossível trabalhar no campo, por via do calor, vindo directamente do sol a pique, ou daquele que era irradiado do solo, que entretanto tinha aquecido. Já tá uma calma dum cabrão, afirmava o meu avô, e eu corroborava imediatamente, por motivos fáceis de adivinhar. Mas o melhor e mais incomodativo sinal de que a jornada se esgotava tinha a ver, sobretudo, com o canto estridente e repetitivo da cigarra, que é das coisas mais irritantes que se podem ouvir no campo, por aquelas paragens. O mal-estar agravava-se com o leite das figueiras pegado aos braços ou com os piolhos das amêndoas  a percorrer as nossas costas, causando tal comichão, que o coçar pouco amenizava, mesmo recorrendo à ajuda do tronco de alguma amendoeira ou azinheira, uma solução a que a burra também acedia frequentemente, quiçá com melhores resultados do que nós. Outro problema residia na água potável de enfuzinha que, ou se esgotava cedo ou, não se esgotando, ficava quente que nem um caldo de açorda. Levando também em conta que a pouca água que se podia encontrar nos barrancos, por essa altura do ano, já estava imprópria para consumo, imaginem o sofrimento!
Burra albardada
A primeira sensação de alívio do dia experimentava-se quando arreávamos a carga no monte, fazendo depois recolher a burra à arramada , a segunda quando, com a ajuda de uma falha de sabão azul e brando e de uma cápsula de champô com “sabor” a maçã , todos os produtos agarrados ao exterior do corpo, acumulados pela transpiração, pelo pó, pelos já aludidos leite da figueira e piolhos das amêndoas ou, certamente, por tudo isso à mesma vez!

Matava-se igualmente a sede com a água sempre fresca do poço, devido à profundidade do seu nível. Ficava novo e fresco que nem uma alface e de caminho para casa carregava ainda dois cântaros de água, de 25 litros cada, destinado a beber, cozinhar e lavar, parcimoniosamente, a pouca louça que se sujava (a água canalizada chegaria muitos anos depois).

"Mujo"
Prontos para o almoço, que a minha avó preparava e onde normalmente não havia grandes surpresas. Um gaspacho acompanhado de uma sardinhita assada ou frita não era mau, mas um feijão careto de azeite e vinagre, com um ovinho cozido também não estava mal, umas postas de peixe mujo com uma saladinha de alface, também entravam, como entravam igualmente, uma sopas de bacalhau, ou de presas com alhos areios. Digamos que eu não era esquisito, comia bem e cumpria o ditado, que diz: barriga de moço, não tem osso. A dieta podia não ser modelo de equilíbrio, mas não se passava fome e, se necessário, recorria-se ao suplemento do pão com azeitonas, que nunca faltavam, e que tão bem sabiam, às vezes!

Cumprido o dia de trabalho, tinha o resto do dia livre de tarefas laborais, a não ser que surgisse algum imprevisto. Sabia então bem dormir uma folga, cuja duração era inversamente proporcional à duração das horas de sono da noite anterior.