Pequena nota
O nosso recente
colaborador inicia hoje a sua colaboração, passe a redundância, em prosa com um
texto de grande realismo que mostra aos jovens de hoje como era a vida na
altura e este ainda teve o privilégio de poder estudar o que estava vedado à
grande maioria dos jovens alcoutenejos.
J V
Escreve
José Rodrigues
ALGUNS DIAS DE
TRABALHO NO CAMPO
Em Balurcos, naqueles dias estivais do final dos anos 60,
inícios dos anos 70, do século passado, nada se passava de novo na passagem
lenta do tempo, como se esse tempo nunca mais tivesse fim.
Os meus avós “impunham-me” o adágio popular, que diz: “deitar
cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer”,
Costa |
O deitar era-lhes sempre difícil controlar, mas o toque de
alvorada era dado por volta das 6,00 da manhã, quando o meu avô batia com o
cajado no postigo da porta da casa (separada da deles) onde eu dormia. Não
havia hipótese de safa. O pequeno almoço, constituído alternadamente, por uma
torrada besuntada com toucinho cozido, sobra do jantar do dia anterior, ou uma costa, ou até um caldo de farinha
torrada, vezes havia em que marchava apenas o café e pão com “dentes”. A
primeira refeição seria no entanto rematada com os melhores figos, doces, frescos,
colhidos directamente da figueira ou por umas amêndoas esquecidas da safra
anterior, torradas pelo sol, em cima da árvore (as do chão faliam ou rançavam e por isso não eram comestíveis).
Depois do “café” tínhamos pouco tempo para albardar a burra
e zarpar ao destino onde, desejavelmente, devíamos chegar ao mesmo tempo do
clarear do dia, para a apanha das amêndoas ou das alfarrobas, cujo produto da
venda, num tempo em que ambas ainda valiam “alguma coisa” acrescentava
rendimento, para ajudar (mal) a subsistência da família. Para garantir o
sustento dos animais, nomeadamente da burra e do porco, apanhávamos também os
figos, que poderiam ser consumidos em “verde” ou em “passas”, depois de aturado
processo de secagem no almeixal. Os
dias de brandura aproveitavam-se para
apanhar e transportar para a eira os tremoços, fundamentais, depois de
adoçados, para misturar na travia do
porco. Os tremoços eram, geralmente, tão saborosos que até nós os comíamos,
salpicados de sal grosso.
Para garantir acumulação de energia potencial calorífica,
necessária à lareira no Inverno e ao aquecimento do forno do pão todo o ano,
acarretava-se com a burra, aparelhada de cangalhas, a lenha de esteva que fora
arrancada, junta em fascinas, e embarbada,
no Inverno anterior. Aos poucos e poucos, íamos ampliando o manturo, para regozijo da minha avó.
Caldeirão |
Outra actividade obrigatória era a rega da cerca, cuja água
era retirada do poço, conforme se podia, com um caldeirão suspenso por uma
corda na qual se davam, a espaços, alguns nós por forma a não escorregar pelas
mãos, mesmo assim, frequentemente, apareciam as desgraçadas “burrefas” que ao
rebentar causavam algum padecimento. Muitas vezes eu fazia uma “tácita
sociedade” com o meu avô, resultante da verificação insofismável dos seguintes
factos; ele ainda com força nos braços e as pernas já a fraquejar, eu já com o
vigor nas pernas, que ainda me faltava nos braços. Usávamos então a seguinte
táctica: ele sentava-se no gargalo do poço e tirava a água com o caldeirão, a
pulso, com uma facilidade que me impressionava, e depois despejava-a numa lata
(balde cilíndrico) de chapa de zinco, que levava dois caldeirões e que eu
transportava, num ápice, vertendo o seu conteúdo nas covas das plantas
(batatas, feijão, couves, etc.) e nas leiras (cebolas, alhos, coentros, etc.),
ou até nas árvores que careciam de rega (limoeiros, laranjeiras, etc.). Era uma
parceria perfeita, ele descansava enquanto eu transportava e ao invés folgava
eu, enquanto ele atestava a lata.
Pela razão manifestada na parágrafo anterior, o lugar “a
cavalo” na burra, era sempre do meu avô, quer na ida, quer na volta entre a
carga, sendo o limite de volume e peso dessa mesma carga, fixado de acordo com
a necessidade de ele ter que ir e vir sempre montado. O trabalho durava, normalmente,
até 10,30 / 11,00, hora a partir da qual era praticamente impossível trabalhar
no campo, por via do calor, vindo directamente do sol a pique, ou daquele que
era irradiado do solo, que entretanto tinha aquecido. Já tá uma calma dum cabrão, afirmava o meu avô, e eu corroborava
imediatamente, por motivos fáceis de adivinhar. Mas o melhor e mais
incomodativo sinal de que a jornada se esgotava tinha a ver, sobretudo, com o
canto estridente e repetitivo da cigarra, que é das coisas mais irritantes que
se podem ouvir no campo, por aquelas paragens. O mal-estar agravava-se com o leite das figueiras pegado aos braços ou
com os piolhos das amêndoas a percorrer
as nossas costas, causando tal comichão, que o coçar pouco amenizava, mesmo
recorrendo à ajuda do tronco de alguma amendoeira ou azinheira, uma solução a
que a burra também acedia frequentemente, quiçá com melhores resultados do que
nós. Outro problema residia na água potável de enfuzinha que, ou se esgotava
cedo ou, não se esgotando, ficava quente que nem um caldo de açorda. Levando
também em conta que a pouca água que se podia encontrar nos barrancos, por essa
altura do ano, já estava imprópria para consumo, imaginem o sofrimento!
A primeira sensação de alívio do dia experimentava-se quando
arreávamos a carga no monte, fazendo
depois recolher a burra à arramada ,
a segunda quando, com a ajuda de uma falha de sabão azul e brando e de uma
cápsula de champô com “sabor” a maçã , todos os produtos agarrados ao exterior
do corpo, acumulados pela transpiração, pelo pó, pelos já aludidos leite da figueira e piolhos das amêndoas
ou, certamente, por tudo isso à mesma vez!
Matava-se igualmente a sede com a água sempre fresca do
poço, devido à profundidade do seu nível. Ficava novo e fresco que nem uma
alface e de caminho para casa carregava ainda dois cântaros de água, de 25 litros cada, destinado
a beber, cozinhar e lavar, parcimoniosamente, a pouca louça que se sujava (a
água canalizada chegaria muitos anos depois).
"Mujo" |
Prontos para o almoço, que a minha avó preparava e onde
normalmente não havia grandes surpresas. Um gaspacho acompanhado de uma
sardinhita assada ou frita não era mau, mas um feijão careto de azeite e vinagre, com um ovinho cozido também não estava
mal, umas postas de peixe mujo com
uma saladinha de alface, também entravam, como entravam igualmente, uma sopas
de bacalhau, ou de presas com alhos areios.
Digamos que eu não era esquisito, comia bem e cumpria o ditado, que diz: barriga de moço, não tem osso. A dieta
podia não ser modelo de equilíbrio, mas não se passava fome e, se necessário,
recorria-se ao suplemento do pão com azeitonas, que nunca faltavam, e que tão
bem sabiam, às vezes!
Cumprido o dia de trabalho, tinha o resto do dia livre de
tarefas laborais, a não ser que surgisse algum imprevisto. Sabia então bem
dormir uma folga, cuja duração era inversamente proporcional à duração das
horas de sono da noite anterior.