segunda-feira, 29 de abril de 2013

Recordações das férias grandes de há 40/45 anos [2]




Escreve

José Rodrigues





A CAMIONETA DAS 5


O acontecimento de cada dia, mesmo aos domingos e feriados, era “a camioneta das 5”, como vulgarmente era conhecida. A camioneta das 5, era o regresso da carreira diária, entre Vila Real de Santo António e Beja, cujos horários fixados nos Balurcos de Baixo eram: no sentido ascendente 10h e 30m, e no descendente às 17h e 30m. O seu percurso desenrolava-se, em toda a extensão, pela estrada nº 122, sendo que no Cruzamento, fazia o desvio pela 122-1 até Alcoutim, retornando ao ponto de início do desvio, para retomar o percurso na 122 (tanto na ida, como na volta). Era, na época, o único autocarro que fazia ligação à capital do país, com transbordo em Beja, e era por esta via que as pessoas da zona se deslocavam de, e para a Grande Lisboa, para onde o fluxo migratório tinha sido, e ainda era nessa altura, bastante significativo. Ir à camioneta permitia saber as novidades, conviver, e ver quem partia e quem chegava.

Nesse tempo existiam no Balurco de Baixo, no entroncamento da Estrada Nacional nº122 com a estrada municipal n º1057, que atravessa os Balurcos em toda a extensão, a venda e mercearia da ti Catrina Botelha ao lado da qual se situava a paragem da camioneta, e em frente, do outro lado da estrada municipal, a venda do ti Zé Cavaco. A ti Botelha detinha a agência da Rodoviária e o ti Cavaco o Posto Público de Telefone, tendo tido também, em tempos, a distribuição do correio. Por cima da porta da Ti Botelha havia um letreiro, ainda visível apesar da remoção do reboco em alto-relevo em que fora construído, onde se lia: JOSÉ DIONISIO GONÇALVES – Negociante de Solas e Cabedais, este anúncio devia-se ao facto do marido da Ti Botelha, sapateiro de profissão, ter tido, em tempos, negócio nessa área.

O pátio em frente da paragem da camioneta enchia-se de gente, onde era frequente sentir-se um aroma intenso a uma mistura entre o “tabú” e “madeiras do oriente”; havia quem viesse só pelo convívio, quem viesse esperar familiares ou amigos que chegavam, os que partiam e os que os vinham acompanhar. As bagagens eram maioritariamente compostas por cestos e canastas de cana com tampa do mesmo material ou cobertos com pano-cru cosido nas respectivas bocas, cestas de vime ou de empreita, uma ou outra mala de cartão castanha ou protegida por forra em tecido cinzento, sacos de viagem em napa, castanha ou preta, numa imitação pobre de pele e, imagine-se, até bicicletas “pasteleiras”, que normalmente eram usadas para complementar a viagem dos respectivos proprietários, até à camioneta ou desta até ao destino final ou, quem sabe, nas duas situações. Grandes rótulos, em forma rectangular, de madeira ou em cartão grosso, amarrados à bagagem, com corda de sisal, identificavam o titular, e o destino.

O destino dos que partiam situava-se, na maior parte dos casos, entre Vila Real e Faro, ou Lisboa para alguém que em vez de seguir de camioneta no dia seguinte, preferia apanhar o comboio-correio em Vila Real e viajar a noite inteira até Lisboa. Incluíam-se neste último caso os militares que, creio, já que tinham desconto nos caminhos-de-ferro. Quanto aos que chegavam, provinham de Lisboa, de Mértola onde muita gente que se deslocava para fazer compras, ou da Vila onde iam tratar dos mais variados assuntos relacionados com as repartições próprias da sede de um concelho.

Actual pátio da Ti Botelha. Foto JDR

No largo em frente da venda do ti Cavaco jogava-se às malhas. Equipas aguerridas que gritavam, quando “trucavam” ou “revidavam” e tiravam meças ao milímetro adivinhando-se, mesmo à distância, que os jogos eram bem disputados e renhidos.

Pelas 17,30, mais minuto menos minuto chegava finalmente a camioneta, agitavam-se os que partiam, e assomavam-se os curiosos na ânsia de ver quem chegava, havia até pausa no jogo das malhas para matar a curiosidade. Ao volante o experiente Palminha e como cobrador o Russo (penso que se chamava Vargas), que só não marcavam presença, no dia da sua folga semanal. O Russo, sempre com a malinha dos bilhetes e do dinheiro a tiracolo, geralmente mal-humorado e cheio de pressa, arreava a escada que dava acesso ao tejadilho da camioneta, (era lá que, nesse tempo, era transportada toda a bagagem) e com algumas ajudas descarregava os haveres dos que terminavam viagem, para a seguir içar os volumes dos que a iniciavam, (as malas, os sacos, os cestos, as canastas, as bicicletas, as caixas, etc.), posto isto, dirigia-se à venda onde inquiria a ti Botelha, a quem tratava por madrinha, se havia algum despacho. Concluído o serviço e já com os passageiros acomodados nos seus lugares, saltava ligeiro para dentro da camioneta, pela porta de trás e, batendo com o alicate fura-bilhetes na coluna metálica onde os viajantes se agarravam ao entrar, dava ordem de marcha ao condutor. Era assim porque, segundo diziam as más-línguas, cobrador e condutor não se falavam há anos, não havia comunicação verbal, só o alicate dava ordens de arranque, ou de paragem se fosse esse o caso. Conta quem viu que um belo dia, nas Quatro Estradas, o bom do Palminha confundiu o som do alicate com o som do encalhar do relógio, ou de outra peça metálica da bagagem de mão, de algum passageiro, e pôs-se em marcha com o Russo ainda em terra, só dando pela sua falta na paragem de Santa Marta, uns 5 quilómetros à frente. Não teve outro remédio senão dar a volta à camioneta e regressar ao Cruzamento para retomar o 2º elemento da tripulação. Poder-se-ia pensar que haveria discussão no reencontro mas as mesmas testemunhas afirmam que nem nessa circunstância houve qualquer troca de recados. Tal era a zanga!

Com a abalada da camioneta, rumo a Vila Real, começava também a debanda do pessoal, permanecendo aqueles que estavam entretidos nas malhas, ou os que ficavam com a barriga encostada ao balcão, numa ou noutra tasca onde, não raro, se assistia ao homicídio, involuntário embora, do belo cante alentejano. Era já o vinho a “falar mais alto”.

Íamos saindo, sem pressas, já com o “cheiro” no jantar, (ou na ceia, como o meu avô teimava em chamar-lhe), apesar de haver ainda “um pedaço de sol”.


Duas notas breves:

A carreira entre Vila Real e Beja ainda hoje existe mas não é todos os dias da semana e há muito que deixou de ser “a camioneta das 5”. Mesmo que haja quem ainda insista em chamá-la por esse nome, “a camioneta das 5”, marcou uma época e nunca mais poderá ser a mesma.

Quero solenemente afirmar, para que não fique qualquer dúvida, que os dois profissionais referidos no texto sempre me mereceram o maior respeito e, do que ficou escrito mais ou menos fantasiado, nunca se pôs em duvida a sua competência e profissionalismo. Digo-o com legitimidade de quem muitas vezes viajou, na camioneta das 5, até Vila Real, em trânsito para Faro onde estudava, e pude comprovar a proficiência do seu trabalho.