Escreve
José Rodrigues
A CAMIONETA DAS 5
O acontecimento
de cada dia, mesmo aos domingos e feriados, era “a camioneta das 5” , como vulgarmente era
conhecida. A camioneta das 5, era o regresso da carreira diária, entre Vila
Real de Santo António e Beja, cujos horários fixados nos Balurcos de Baixo
eram: no sentido ascendente 10h e 30m, e no descendente às 17h e 30m. O seu
percurso desenrolava-se, em toda a extensão, pela estrada nº 122, sendo que no
Cruzamento, fazia o desvio pela 122-1 até Alcoutim, retornando ao ponto de início
do desvio, para retomar o percurso na 122 (tanto na ida, como na volta). Era,
na época, o único autocarro que fazia ligação à capital do país, com transbordo
em Beja, e era por esta via que as pessoas da zona se deslocavam de, e para a
Grande Lisboa, para onde o fluxo migratório tinha sido, e ainda era nessa
altura, bastante significativo. Ir à camioneta permitia saber as novidades,
conviver, e ver quem partia e quem chegava.
Nesse tempo
existiam no Balurco de Baixo, no entroncamento da Estrada Nacional nº122 com a
estrada municipal n º1057, que atravessa os Balurcos em toda a extensão, a venda
e mercearia da ti Catrina Botelha ao lado da qual se situava a paragem da
camioneta, e em frente, do outro lado da estrada municipal, a venda do ti Zé
Cavaco. A ti Botelha detinha a agência da Rodoviária e o ti Cavaco o Posto
Público de Telefone, tendo tido também, em tempos, a distribuição do correio.
Por cima da porta da Ti Botelha havia um letreiro, ainda visível apesar da remoção
do reboco em alto-relevo em que fora construído, onde se lia: JOSÉ DIONISIO
GONÇALVES – Negociante de Solas e Cabedais, este anúncio devia-se ao facto do
marido da Ti Botelha, sapateiro de profissão, ter tido, em tempos, negócio
nessa área.
O pátio em
frente da paragem da camioneta enchia-se de gente, onde era frequente sentir-se
um aroma intenso a uma mistura entre o “tabú” e “madeiras do oriente”; havia
quem viesse só pelo convívio, quem viesse esperar familiares ou amigos que
chegavam, os que partiam e os que os vinham acompanhar. As bagagens eram maioritariamente
compostas por cestos e canastas de cana com tampa do mesmo material ou cobertos
com pano-cru cosido nas respectivas bocas, cestas de vime ou de empreita, uma
ou outra mala de cartão castanha ou protegida por forra em tecido cinzento, sacos
de viagem em napa, castanha ou preta, numa imitação pobre de pele e,
imagine-se, até bicicletas “pasteleiras”, que normalmente eram usadas para
complementar a viagem dos respectivos proprietários, até à camioneta ou desta
até ao destino final ou, quem sabe, nas duas situações. Grandes rótulos, em
forma rectangular, de madeira ou em cartão grosso, amarrados à bagagem, com
corda de sisal, identificavam o titular, e o destino.
O destino dos
que partiam situava-se, na maior parte dos casos, entre Vila Real e Faro, ou
Lisboa para alguém que em vez de seguir de camioneta no dia seguinte, preferia
apanhar o comboio-correio em Vila Real e viajar a noite inteira até Lisboa. Incluíam-se
neste último caso os militares que, creio, já que tinham desconto nos
caminhos-de-ferro. Quanto aos que chegavam, provinham de Lisboa, de Mértola
onde muita gente que se deslocava para fazer compras, ou da Vila onde iam
tratar dos mais variados assuntos relacionados com as repartições próprias da
sede de um concelho.
No largo em
frente da venda do ti Cavaco jogava-se às malhas. Equipas aguerridas que gritavam,
quando “trucavam” ou “revidavam” e tiravam meças ao milímetro adivinhando-se,
mesmo à distância, que os jogos eram bem disputados e renhidos.
Pelas 17,30,
mais minuto menos minuto chegava finalmente a camioneta, agitavam-se os que
partiam, e assomavam-se os curiosos na ânsia de ver quem chegava, havia até
pausa no jogo das malhas para matar a curiosidade. Ao volante o experiente
Palminha e como cobrador o Russo (penso que se chamava Vargas), que só não marcavam
presença, no dia da sua folga semanal. O Russo, sempre com a malinha dos
bilhetes e do dinheiro a tiracolo, geralmente mal-humorado e cheio de pressa,
arreava a escada que dava acesso ao tejadilho da camioneta, (era lá que, nesse
tempo, era transportada toda a bagagem) e com algumas ajudas descarregava os
haveres dos que terminavam viagem, para a seguir içar os volumes dos que a
iniciavam, (as malas, os sacos, os cestos, as canastas, as bicicletas, as caixas,
etc.), posto isto, dirigia-se à venda onde inquiria a ti Botelha, a quem
tratava por madrinha, se havia algum despacho. Concluído o serviço e já com os
passageiros acomodados nos seus lugares, saltava ligeiro para dentro da
camioneta, pela porta de trás e, batendo com o alicate fura-bilhetes na coluna
metálica onde os viajantes se agarravam ao entrar, dava ordem de marcha ao
condutor. Era assim porque, segundo diziam as más-línguas, cobrador e condutor
não se falavam há anos, não havia comunicação verbal, só o alicate dava ordens
de arranque, ou de paragem se fosse esse o caso. Conta quem viu que um belo
dia, nas Quatro Estradas, o bom do Palminha confundiu o som do alicate com o
som do encalhar do relógio, ou de outra peça metálica da bagagem de mão, de
algum passageiro, e pôs-se em marcha com o Russo ainda em terra, só dando pela sua
falta na paragem de Santa Marta, uns 5 quilómetros à
frente. Não teve outro remédio senão dar a volta à camioneta e regressar ao Cruzamento
para retomar o 2º elemento da tripulação. Poder-se-ia pensar que haveria
discussão no reencontro mas as mesmas testemunhas afirmam que nem nessa
circunstância houve qualquer troca de recados. Tal era a zanga!
Com a abalada da
camioneta, rumo a Vila Real, começava também a debanda do pessoal, permanecendo
aqueles que estavam entretidos nas malhas, ou os que ficavam com a barriga
encostada ao balcão, numa ou noutra tasca onde, não raro, se assistia ao homicídio,
involuntário embora, do belo cante alentejano. Era já o vinho a “falar mais
alto”.
Íamos saindo, sem
pressas, já com o “cheiro” no jantar, (ou na ceia, como o meu avô teimava em
chamar-lhe), apesar de haver ainda “um pedaço de sol”.
Duas notas
breves:
A carreira entre
Vila Real e Beja ainda hoje existe mas não é todos os dias da semana e há muito
que deixou de ser “a camioneta das 5” .
Mesmo que haja quem ainda insista em chamá-la por esse nome, “a camioneta das 5” , marcou uma época e nunca
mais poderá ser a mesma.
Quero
solenemente afirmar, para que não fique qualquer dúvida, que os dois
profissionais referidos no texto sempre me mereceram o maior respeito e, do que
ficou escrito mais ou menos fantasiado, nunca se pôs em duvida a sua
competência e profissionalismo. Digo-o com legitimidade de quem muitas vezes
viajou, na camioneta das 5, até Vila Real, em trânsito para Faro onde estudava,
e pude comprovar a proficiência do seu trabalho.