quinta-feira, 4 de abril de 2013

Um fim de tarde em Alcoutim: Sonho ou realidade? [4]




Escreve

Amílcar Felício




 “Há quanto tempo que não se via um calor dum cabrão destes Senhor Zé (?)”, desabafavam os homens para o Senhor Zé Peres que chegava entretanto à Vila. “Isto hoje está por demais porra, vejam lá que estive no Pego Fundo há bocado para desligar o motor e ainda parecia que fazia mais calma ao pé da água (!)”, responde ele. O Senhor Zé Peres apesar de reformado de outras guerras tinha uma razoável Casa de Campo, mas como acontecia com quase todas as outras Casas de Campo naqueles finais da década de cinquenta do século passado, o núcleo económico/familiar que as sustentava já estava bastante desfalcado, pois o Justino e o Manuel Peres há que tempos que tinham dado de frosques. O único dos filhos que ainda estava com ele era o António Peres por ser deficiente e que subia naquele preciso momento pelo Caminho do Celeiro, atrás da manada de vacas leiteiras que estavam à sua guarda.

 
Pego Fundo, anos 70. Foto JV.

O António Peres apesar dos seus problemas, fazia a sua vida normal de trabalho. Tinha principalmente dificuldade de comunicação e uma grande deficiência na fala, tornando-se quase incompreensível para quem não estivesse habituado. Mas a verdade é que de um modo geral quase toda a gente o respeitava e acarinhava para que ele não se sentisse diminuído, inclusive a rapaziada mais nova que acamaradava com ele nos bailes das redondezas para que se pudesse divertir um pouco nem que fosse só para conviver com o pessoal ou beber um pirolito, pois não era fácil arranjar-lhe um par para dançar. Mas numa noite de sorte nas Cortes Pereiras conseguiu-se arranjar um par para o António Peres, que se iniciava assim nas lides de dançarino. Quando a música acabou -- desculpem-me lá o desbocamento -- o António Peres radiante e deslumbrado com a descoberta de novas sensações, dizia eufórico para a rapaziada: “óh moços (!), óh moços (!) ueu dança a pichaueu fa ito (!)” e arrebitava o dedo indicador para cima.

Passa entretanto o Professor Amaral que cumprimenta amavelmente os presentes com o seu característico sotaque beirão, pois apesar do calor que estava ia todos os dias à Amarela, nem que fosse só para controlar e orientar o trabalho do Ti Chico Barão. O Senhor Luís Corvo é que já tinha passado há muito, mas esse tinha sempre algum criado lá em casa que lhe tomava conta do serviço, para lá dos caseiros da Eira Branca que se encarregavam das extensas várzeas e laranjais que iam quase desde a Fonte Primeira passando pelo Pego do Calhau Branco até às Passadeiras das Cortes. E de facto lá passava o afilhado Carlos Barão quase
Sr. Felício
uma hora depois. “Olha o Senhor Felício hoje vem com a Hortinha”, comentam os homens admirados ao vê-los já para cá do Celeiro direitos à Vila e perguntam-me em surdina como quem não quer a coisa: “então Amílcar e como é que tu te safaste hoje da rega das nespereiras e das laranjeiras?” Explico-lhes a minha habilidade: “é fácil, quando ele se esquece de me avisar a tempo, lancho mais cedo e piro-me de casa antes que ele saia da Câmara às cinco e meia e ele nem me vê!”. “Boa técnica rapaz dizem os homens, não és nada parvo não senhor!”.

Mal os homens tinham satisfeito a sua curiosidade, passava o António da Teresa e o pai com uma pequena saca às costas. “Então e o rabisco da amêndoa hoje deu alguma coisa (?)” perguntam-lhes os homens. “Apanharam-se para aqui umas amêndoinhas mas coisa pouca, pois há alguns cercados que nem vale a pena a gente andar a perder tempo. Isto este ano está muito fraco”, diz o Ti Alfredo da Cadeia. O Senhor Brito de bengala na mão e o Senhor Domingos Mariano de cajado passavam entretanto e já faziam o seu passeio da tarde pela estrada acima direito ao Celeiro, sinal de que já tinham jantado. O Cabo Barros acompanhava a Maria da Conceição que vinha do Pocinho com uma infusa de água ao quadril. Depois deles passarem os homens cochichavam entre dentes, “este também não lhe dá um palmo de distância, parece que anda sempre desconfiado e nem deixa sair a moça de casa sozinha (!)”.

E com isto tudo o relógio da Igreja da Conceição já tinha batido as oito e meia da noite há um bom bocado e a minha mãe chamava-me aflita como sempre, com um tom de voz carregando alguma ameaça para disfarçar naturalmente o seu coração mole do costume: “Amíííílcar (!)... Amíííílcar (!), anda já a jantar (!) olha que o teu pai já está à mesa com a tua irmã (!)”. E lá vou eu a correr rua adiante, pois o“velho” gostava muito de brincar com os outros mas a verdade é que a mim não me dava lá muita confiança...

Ti Afonso Costa
Passei pela Venda do Senhor Simões que aviava mais um copo de três ao Ti Chapa de Aço, ao Mestre Carolino e ao Mestre Pinto que pareciam que já estavam um pouco entornados. Sentados no muro em frente da Venda estavam o Ti Lázaro, o Ti Pandareta e o Ti Eliseu que depois de alguns anos fora tinham vindo passar uns dias à Vila e que conversavam com o Ti António Emílio, o Ti Afonso Costa, o Ti Botelho e o Ti Chico Canelas. Possivelmente falavam sobre a hipótese de irem também trabalhar para Lisboa pois o Ti Eliseu estava a dizer que “a vida aqui já não presta, cada vez está pior...”.

A Tia Georgina estava à janela e falava para o outro lado da Rua com a Tia Ilda e o Ti Manel Francisco que já viviam sozinhos pois a filha, o genro e os três netos há muito que tinham ido viver para Faro. O Ti Guerreiro estava logo a seguir na janela do Talho, possivelmente a fazer umas limpezas e para ver o seu rebanho que tinha passado há pouco. O Ti Justo e a Ti Ana também já estavam sentados ao fesco e faziam companhia à filha Maria que chuleava ainda as bainhas de umas calças, enquanto o marido estava lá dentro do quarto que fazia de Alelier de Costura durante o dia e parecia que ainda estava a cortar tecido
Tia Ana da Costa
para um casaco. Ainda me meti com a Ti Ana que já comia uma "tijala" de sopas: então Ti Ana, hoje já não se faz mais nada? "Olha moço "tive" a fazer estas sopas de tomate, lavei os pratos e a caçoila e por hoje já tem àvonde", respondeu-me ela enquanto continuava a comer as suas sopas do jantar. A minha vizinha Gertrudes também já lá estava no poial da sua casa meia afogueada no meio daquelas suas banhas a queixar-se que não aguentava aquele calor.

Os filhos e os netos do Ti Carolino faziam uma" algraviada" dos diabos de casa para a Rua e da Rua para casa. Nem sei como cabia tanta gente lá em casa pois só tinha um quarto, a salinha da Barbearia e uma pequena cozinha. A Tia Maximina coitada via-se aflita para dar conta daquela fartura de filhos e netos. Só a Idalina e o marido o Ti Zé do Telhado, já tinham uns três ou quatro filhos. Se calhar aquela algazarra toda era porque o jantar não chegava para todos, sabe-se lá... A Tia Martinha vinha Rua adiante com um balde na mão que ia deitar nos estrazes da Ribeira e ia perguntando a quem passava se não tinham visto o seu Alfredo, ao que alguém lhe gritou de
Ti Martinha
que “ainda há bocado estava lá em baixo no Rio a limpar a lancha (!)”. Parou à do Ti Zé Emídio na Latoaria e virou-se para trás a gritar “óh Bia (!)... óh Bia (!)... vai lá a chamar o teu pai ao Rio que está a limpar a lancha, para vir a jantar (!)”.

A minha vizinha Clotilde estava à janela com a Chiquinha e esperavam como sempre pelo Senhor António do Rosário para jantar, pois como era habitual depois de fechar a Forja ao fim do dia, ia sempre dar corda ao relógio da Igreja da Nossa Senhora da Conceição. Mais abaixo o Ti Ferrador, surdo que nem umas portas de cachimbo na mão, estava sentado numa cadeira na Rua olhando para quem passava enquanto a Tia Chica Botelho e a Custódia andavam numa fona de um lado para o outro, para acabar o jantar para os hóspedes que nunca faltavam àquela hora. Na casa em frente a Dª Clarisse e a irmã a Dª Conceição já estavam de janela também, pois o jantar devia de ter sido rápido visto que o resto da família Cunha apesar de numerosa, estava em Moçambique e só cá vinham de dois em dois anos.

Ti António Joaquim
Na Venda do Ti António Joaquim o Ti Marciano, o Ti Nameaçes, o Ti Manel Melão e o Ti Gonçalves petiscavam umas sardinhas estivadas e umas cavalas em conserva. Tinham também umas tiras de muchama que algum deles tinha trazido de Vila Real certamente. Estavam a fazer os planos para a pesca dessa noite. Pareceu-me que estavam a combinar também o dia para tapar a Boca da Ribeira, pois a baixa-mar calhava a uma boa hora da manhã daí a uma semana e o Ti Marciano estava-lhes a dizer que “no Domingo depois de almoço combinamos tudo à do Ti Sabino, pois a baixa-mar dá lá para as oito horas.”

E lá vou eu a correr para a cozinha e jantar à pressa, pois o serão na Venda do Ti António Joaquim começava às 9,5h ou 10h o mais tardar e eu não podia perder pitada...


Nota Final:
A aguarela deste Alcoutim simples e trabalhador de que demos umas leves pinceladas nestas quatro últimas crónicas, existiu de facto quem havia de dizer e representa uma simples homenagem aos homens e às mulheres que dele fizeram parte, com quem mais convivi e com quem comecei a aprender as coisas da vida. Foi também o recordar nostálgico de uma linguagem, petiscos e utensílios caídos em desuso e arquivados há muito nas profundezas das nossas memórias como almareado, àvonde, magana, calma enzorrada, brandura, geada, estrazes, dar de vaia, ir à do Ti Chico e à do Ti Sabino, Venda, andar numa fona, rabisco, agourar, trangomango, salipanta, pirolito, sardinhas estivadas, muchama, cavalas em conserva, laranjas picadas da mosca, pelengana, “tijala”, caçoila, trempe, gorpelha, alforge, onça Duque e de Três Vintes, cigarros Provisórios e Definitivos etc., etc., etc... Há quantos anos que eu não pronunciava a maioria destas palavras caramba, mas os sabores de alguns pitéus e a sensação indescritível das belas noites estreladas de Verão dormidas ao relento na Eira do Cerro do Celeiro, garanto-vos que ainda cá moram! Não se tratou portanto de uma simples ficção. De mais de uma centena de nomes de pessoas referidos ou induzidos nestas crónicas, ainda andaremos por cá uma boa dúzia deles para recordar estas estórias ou talvez estas “histórias” romanceadas. “Histórias” e linguagem de outros tempos, mas que a magana da borracha do tempo sempre pragmática e insensível se encarrega de ir apagando. Às vezes até apetece fechar os olhos para não ver o tempo passar... 


Pequena nota

Ainda que esteja tudo dito, não posso deixar de escrever duas linhas sobre “Um fim de tarde em Alcoutim: sonho ou realidade?” com que o nosso colaborador e Amigo nos presenteou e aqui englobamos todos sem excepção: -os que conheceram e viveram todo este ambiente, os filhos da terra que vêem retratados com fidelidade e graça alguns dos seus antepassados que não conheceram e por último o leitor que nunca foi a Alcoutim que vive em qualquer parte do Mundo e que por esta leitura fica conhecendo toda a vivência de uma pequena vila rural em meados do século XX, ao sul de Portugal, junto do Guadiana e numa das extremidades da Serra Algarvia.
De pinceladas de pulso firme e cores ajustadas, Amílcar Felício deixa aos vindouros este magnífico quadro. Poucas teriam sido as pessoas que fugiram ao seu olhar atento.
Pela minha parte, o meu OBRIGADO.
JV