“Há quanto tempo que não se via um calor dum
cabrão destes Senhor Zé (?)”, desabafavam os homens para o Senhor Zé Peres que
chegava entretanto à Vila. “Isto hoje está por demais porra, vejam lá que
estive no Pego Fundo há bocado para desligar o motor e ainda parecia que fazia
mais calma ao pé da água (!)”, responde ele. O Senhor Zé Peres apesar de
reformado de outras guerras tinha uma razoável Casa de Campo, mas como
acontecia com quase todas as outras Casas de Campo naqueles finais da década de
cinquenta do século passado, o núcleo económico/familiar que as sustentava já
estava bastante desfalcado, pois o Justino e o Manuel Peres há que tempos que
tinham dado de frosques. O único dos filhos que ainda estava com ele era o
António Peres por ser deficiente e que subia naquele preciso momento pelo
Caminho do Celeiro, atrás da manada de vacas leiteiras que estavam à sua
guarda.
O António Peres apesar dos seus
problemas, fazia a sua vida normal de trabalho. Tinha principalmente
dificuldade de comunicação e uma grande deficiência na fala, tornando-se quase
incompreensível para quem não estivesse habituado. Mas a verdade é que de um
modo geral quase toda a gente o respeitava e acarinhava para que ele não se
sentisse diminuído, inclusive a rapaziada mais nova que acamaradava com ele nos
bailes das redondezas para que se pudesse divertir um pouco nem que fosse só
para conviver com o pessoal ou beber um pirolito, pois não era fácil
arranjar-lhe um par para dançar. Mas numa noite de sorte nas Cortes Pereiras
conseguiu-se arranjar um par para o António Peres, que se iniciava assim nas
lides de dançarino. Quando a música acabou -- desculpem-me lá o desbocamento --
o António Peres radiante e deslumbrado com a descoberta de novas sensações,
dizia eufórico para a rapaziada: “óh moços (!), óh moços (!) ueu dança a
pichaueu fa ito (!)” e arrebitava o dedo indicador para cima.
Passa entretanto o Professor
Amaral que cumprimenta amavelmente os presentes com o seu característico
sotaque beirão, pois apesar do calor que estava ia todos os dias à Amarela, nem
que fosse só para controlar e orientar o trabalho do Ti Chico Barão. O Senhor
Luís Corvo é que já tinha passado há muito, mas esse tinha sempre algum criado
lá em casa que lhe tomava conta do serviço, para lá dos caseiros da Eira Branca
que se encarregavam das extensas várzeas e laranjais que iam quase desde a
Fonte Primeira passando pelo Pego do Calhau Branco até às Passadeiras das
Cortes. E de facto lá passava o afilhado Carlos Barão quase
Sr. Felício |
uma hora depois.
“Olha o Senhor Felício hoje vem com a Hortinha”, comentam os homens admirados
ao vê-los já para cá do Celeiro direitos à Vila e perguntam-me em surdina como
quem não quer a coisa: “então Amílcar e como é que tu te safaste hoje da rega
das nespereiras e das laranjeiras?” Explico-lhes a minha habilidade: “é fácil,
quando ele se esquece de me avisar a tempo, lancho mais cedo e piro-me de casa
antes que ele saia da Câmara às cinco e meia e ele nem me vê!”. “Boa técnica
rapaz dizem os homens, não és nada parvo não senhor!”.
Mal os homens tinham satisfeito a
sua curiosidade, passava o António da Teresa e o pai com uma pequena saca às
costas. “Então e o rabisco da amêndoa hoje deu alguma coisa (?)” perguntam-lhes
os homens. “Apanharam-se para aqui umas amêndoinhas mas coisa pouca, pois há
alguns cercados que nem vale a pena a gente andar a perder tempo. Isto este ano
está muito fraco”, diz o Ti Alfredo da Cadeia. O Senhor Brito de bengala na mão
e o Senhor Domingos Mariano de cajado passavam entretanto e já faziam o seu
passeio da tarde pela estrada acima direito ao Celeiro, sinal de que já tinham
jantado. O Cabo Barros acompanhava a Maria da Conceição que vinha do Pocinho
com uma infusa de água ao quadril. Depois deles passarem os homens cochichavam
entre dentes, “este também não lhe dá um palmo de distância, parece que anda
sempre desconfiado e nem deixa sair a moça de casa sozinha (!)”.
E com isto tudo o relógio da
Igreja da Conceição já tinha batido as oito e meia da noite há um bom bocado e
a minha mãe chamava-me aflita como sempre, com um tom de voz carregando alguma
ameaça para disfarçar naturalmente o seu coração mole do costume: “Amíííílcar
(!)... Amíííílcar (!), anda já a jantar (!) olha que o teu pai já está à mesa
com a tua irmã (!)”. E lá vou eu a correr rua adiante, pois
o“velho” gostava muito de brincar com os outros mas a verdade é que a mim
não me dava lá muita confiança...
Ti Afonso Costa |
Passei pela Venda do Senhor
Simões que aviava mais um copo de três ao Ti Chapa de Aço, ao Mestre Carolino e
ao Mestre Pinto que pareciam que já estavam um pouco entornados. Sentados no
muro em frente da Venda estavam o Ti Lázaro, o Ti Pandareta e o Ti Eliseu que
depois de alguns anos fora tinham vindo passar uns dias à Vila e que conversavam
com o Ti António Emílio, o Ti Afonso Costa, o Ti Botelho e o Ti Chico Canelas.
Possivelmente falavam sobre a hipótese de irem também trabalhar para Lisboa
pois o Ti Eliseu estava a dizer que “a vida aqui já não presta, cada vez está
pior...”.
A Tia Georgina estava à janela e
falava para o outro lado da Rua com a Tia Ilda e o Ti Manel Francisco que já
viviam sozinhos pois a filha, o genro e os três netos há muito que tinham ido
viver para Faro. O Ti Guerreiro estava logo a seguir na janela do Talho,
possivelmente a fazer umas limpezas e para ver o seu rebanho que tinha passado há pouco. O Ti Justo e a Ti Ana também já estavam sentados ao fesco e faziam companhia à filha Maria que chuleava ainda as bainhas de umas calças, enquanto o marido estava lá dentro do quarto que fazia de Alelier de Costura durante o dia e parecia que ainda estava a cortar tecido
para um casaco. Ainda me meti com a Ti Ana que já comia uma "tijala" de sopas: então Ti Ana, hoje já não se faz mais nada? "Olha moço "tive" a fazer estas sopas de tomate, lavei os pratos e a caçoila e por hoje já tem àvonde", respondeu-me ela enquanto continuava a comer as suas sopas do jantar. A minha vizinha Gertrudes também já lá estava no poial da sua casa meia afogueada no meio daquelas suas banhas a queixar-se que não aguentava aquele calor.
Tia Ana da Costa |
Os filhos e os netos do Ti Carolino faziam uma" algraviada" dos diabos de casa para a Rua e da Rua para casa. Nem sei como cabia tanta gente lá em casa pois só tinha um quarto, a salinha da Barbearia e uma pequena cozinha. A Tia Maximina coitada via-se aflita para dar conta daquela fartura de filhos e netos. Só a Idalina e o marido o Ti Zé do Telhado, já tinham uns três ou quatro filhos. Se calhar aquela algazarra toda era porque o jantar não chegava para todos, sabe-se lá... A Tia Martinha vinha Rua adiante com um balde na mão que ia deitar nos estrazes da Ribeira e ia perguntando a quem passava se não tinham visto o seu Alfredo, ao que alguém lhe gritou de
Ti Martinha |
A minha vizinha Clotilde estava à
janela com a Chiquinha e esperavam como sempre pelo Senhor António do Rosário
para jantar, pois como era habitual depois de fechar a Forja ao fim do dia, ia
sempre dar corda ao relógio da Igreja da Nossa Senhora da Conceição. Mais
abaixo o Ti Ferrador, surdo que nem umas portas de cachimbo na mão, estava
sentado numa cadeira na Rua olhando para quem passava enquanto a Tia Chica
Botelho e a Custódia andavam numa fona de um lado para o outro, para acabar o
jantar para os hóspedes que nunca faltavam àquela hora. Na casa em frente a Dª
Clarisse e a irmã a Dª Conceição já estavam de janela também, pois o jantar
devia de ter sido rápido visto que o resto da família Cunha apesar de numerosa,
estava em Moçambique e só cá vinham de dois em dois anos.
Ti António Joaquim |
Na Venda do Ti António Joaquim o
Ti Marciano, o Ti Nameaçes, o Ti Manel Melão e o Ti Gonçalves petiscavam umas
sardinhas estivadas e umas cavalas em conserva. Tinham
também umas tiras de muchama que algum deles tinha trazido de Vila Real
certamente. Estavam a fazer os planos para a pesca dessa noite. Pareceu-me que
estavam a combinar também o dia para tapar a Boca da Ribeira, pois a baixa-mar
calhava a uma boa hora da manhã daí a uma semana e o Ti Marciano estava-lhes a
dizer que “no Domingo depois de almoço combinamos tudo à do Ti Sabino, pois a
baixa-mar dá lá para as oito horas.”
E lá vou eu a correr para a
cozinha e jantar à pressa, pois o serão na Venda do Ti António Joaquim começava
às 9,5h ou 10h o mais tardar e eu não podia perder pitada...
Nota Final:
A aguarela deste Alcoutim simples e trabalhador de que demos umas leves
pinceladas nestas quatro últimas crónicas, existiu de facto quem havia de dizer
e representa uma simples homenagem aos homens e às mulheres que dele fizeram
parte, com quem mais convivi e com quem comecei a aprender as coisas da vida.
Foi também o recordar nostálgico de uma linguagem, petiscos e utensílios caídos
em desuso e arquivados há muito nas profundezas das nossas memórias como
almareado, àvonde, magana, calma enzorrada, brandura, geada, estrazes, dar de
vaia, ir à do Ti Chico e à do Ti Sabino, Venda, andar numa fona, rabisco,
agourar, trangomango, salipanta, pirolito, sardinhas estivadas, muchama,
cavalas em conserva, laranjas picadas da mosca, pelengana, “tijala”, caçoila,
trempe, gorpelha, alforge, onça Duque e de Três Vintes, cigarros Provisórios e
Definitivos etc., etc., etc... Há quantos anos que eu não pronunciava a maioria
destas palavras caramba, mas os sabores de alguns pitéus e a sensação
indescritível das belas noites estreladas de Verão dormidas ao relento na Eira
do Cerro do Celeiro, garanto-vos que ainda cá moram! Não se tratou portanto de
uma simples ficção. De mais de uma centena de nomes de pessoas referidos ou
induzidos nestas crónicas, ainda andaremos por cá uma boa dúzia deles para
recordar estas estórias ou talvez estas “histórias” romanceadas. “Histórias” e
linguagem de outros tempos, mas que a magana da borracha do tempo sempre
pragmática e insensível se encarrega de ir apagando. Às vezes até apetece
fechar os olhos para não ver o tempo passar...
Pequena nota
Ainda que esteja tudo dito, não posso deixar de escrever duas linhas
sobre “Um fim de tarde em Alcoutim: sonho ou realidade?” com que o nosso
colaborador e Amigo nos presenteou e aqui englobamos todos sem excepção: -os que
conheceram e viveram todo este ambiente, os filhos da terra que vêem retratados
com fidelidade e graça alguns dos seus antepassados que não conheceram e por
último o leitor que nunca foi a Alcoutim que vive em qualquer parte do Mundo e
que por esta leitura fica conhecendo toda a vivência de uma pequena vila rural
em meados do século XX, ao sul de Portugal, junto do Guadiana e numa das
extremidades da Serra Algarvia.
De pinceladas de pulso firme e cores ajustadas, Amílcar Felício deixa
aos vindouros este magnífico quadro. Poucas teriam sido as pessoas que fugiram
ao seu olhar atento.
Pela minha parte, o meu OBRIGADO.
JV