HISTÓRIAS POSSÍVEIS
POUCO CONFIRMADAS
Como se sabe, Alcaria Alta não é uma povoação fronteiriça e
mesmo agora com as melhores estruturas rodoviárias não é fácil ir de Alcaria
Alta a Espanha, mas havia, curiosamente, muitas histórias que me eram contadas
relacionadas com Espanha.
Como já tenho dito o meu avô dedicou-se à actividade de contrabando em pequena e para mim inocente medida, mas no seu caso eu acho que ele sempre foi um andarilho, naquele sentido de procurar sempre coisas diferentes e para conseguir isso tinha de se deslocar a sítios diferentes.
Não se pode dizer que tenha corrido muito no sentido actual, até porque naquele tempo correr muito era andar para aí num raio de cinquenta ou setenta quilómetros: tinha uma série de profissões base, desde tosquiador a cardador, a pastor, a lavrador, a ceifeiro, a podador, a comerciante, a contrabandista, trabalhador braçal em estradas e caminhos de ferro, enfim, não devo esgotar aqui todas as artes que ele exerceu, mas dou uma ideia que qualquer uma delas, se excluirmos a semi – sedentária de tratar das suas terriolas, implicava deslocação.
Normalmente as herdades do Alentejo no caso da ceifa, os montes em redor para tosquiar e cardar, a serra de Tavira para o comércio das panelas de barro, a zona de Castro Marim a Alcoutim para trabalhar na estrada, e já mais no litoral para trabalhar nos caminhos de ferro, na instalação das linhas e todo o conjunto de coisas que isso implicava, desde trabalhar de picareta a carregar carris.
Sem que se possa tomar como exemplo este caso único é preciso acrescentar que o meu avô não era caso único. Normalmente deslocavam-se grupos para um lado e outro, para uma profissão ou outra no sentido de conseguirem complementar aquele pouco que a terra lhes dava, embora eu sempre tivesse a sensação que nunca faltava comida, coisa que parece ser comum ou normal em zonas rurais de todo o mundo, se excluirmos aquelas que sofrem efeitos constantes de secas.
Poderia não haver bifes mas havia pão, queijo, chouriça, morcelas, cozidos de couve, grão, nacos de presunto e toucinho, ovos, ervas aromáticas, ervilhas, favas, batatas, enfim...ainda sinto o cheiro dos cozidos de couve portuguesa a abobrarem à rés das brasas na panela o dia inteiro.
Talvez a zona nordeste algarvia estivesse, em termos da globalidade que atrás referi, numa zona limiar entre as zonas de seca e as zonas com chuvas regulares, e por vezes excessivamente abundantes, mas este tipo de alternância sazonal fomentava a migração de proximidade, o aproveitamento de algumas obras públicas que necessitavam de mão de obra não qualificada, o trabalho nas minas, enfim, se formos contar hoje por aquilo que sabemos raro é o filho da terra que por lá se ficou a seguir aos anos 60 o que singularmente quer dizer que as alternativas migratórias de proximidade existentes deixaram de produzir o efeito esperado.
Na região litoral do Algarve o mesmo se passou, e passa, quando a indústria começou a ser mais escassa e o turismo, como fonte alternativa de alimento não estava - e ainda não está nem nunca estará - implantado ao ponto de ser uma valência real de emprego duradouro e fixação populacional.
Lembro-me que ser empregado na hotelaria nos anos 60/70 era ter de percorrer todo o Algarve litoral, da ponta de Sagres a Vila Real de Sto António, por vezes por períodos escassos de três meses no Verão e regressar a penates para «passar o inverno» nalguns trabalhos ocasionais que fossem surgindo. Neste plano o fenómeno da migração não é exclusivamente serrano, ainda que se possam encontrar diferenças nas graduações.
Havia no entanto, nesta relativa pacatez serrana do período sedentário histórias que se contavam e para além das mouras encantadas, que requeriam um pouco de imaginação, havia histórias sobre as deslocações feitas, o trato dos patrões e contramestres e toda a envolvência que funcionava como um jornal ou enciclopédia oral servindo de informação e cautela nas deslocações futuras.
Mas, quase fora destes contextos, e ombreando em termos de desfasamento com o real do dia a dia num sector específico da memória colectiva havia as histórias sobre a guerra civil de Espanha. Para além da leitura conjunta do jornal à porta do avô da Odília Guerreiro chegavam entremeadas algumas notícias sobre fuzilamentos na raia envolvendo portugueses. Sei de cor duas, uma com um final mais ou menos feliz e uma outra que terá custado a vida ao incauto e inocente pastor da nossa nacionalidade.
Eram os chamados fuzilamentos por engano: as tropas ou as patrulhas franquistas chegavam a determinada povoação onde lhes teria constado por meio de informadores que havia por ali gente republicana e por aquilo que me diziam a escolha era feita de forma aleatória.
O que salvaria os portugueses seria o facto de não serem espanhóis, mas esse factor pelos vistos não contava em toda a sua medida e para além do mais os documentos na altura não eram de porte obrigatório e em muitos casos nem sequer os havia.
Provar que se era português e sujeitar-se à sanção por ter atravessado a fronteira sem autorização era difícil, pelo que se tomava (tomavam eles) o método de inquirir o informador se fulano era ou não era, o que é um método bastante falível, tanto mais que em caso de ser afirmado o desconhecimento da parte do informador isso valia como factor de certeza alternativa. Ou seja, fulano não sabe se beltrano é português ou espanhol logo beltrano é espanhol.
Dos dois casos que ouvi falar um baqueou mesmo nas costas de um muro e o outro foi salvo no último minuto pela providencial chegada de um outro informador mais informado: o homem era português, estava daquele lado porque envolvido no pastoreio nem se apercebera que estava do lado de lá e como precisava de comprar algumas coisas no lugarejo estava ali e ia-se já embora.
Claro que as pessoas estavam do lado de lá, nem outra coisa seria pensável (ou seria dificilmente pensável) por razões de conflitos fronteiriços, mas nunca ninguém fará essas contas, como é claro. Para além daqueles portugueses que foram combater dos dois lados (porque os houve nas hostes franquistas e nas hostes republicanas) terão morrido neste sumário sistema de abate bastantes pacíficos camponeses.
A guerra civil de Espanha foi de alguma forma intensamente vivida pelas populações raianas, isso sabe-se e ainda há dias foi publicado neste jornal um artigo sobre oTenente Seixas a sobre a sua intervenção em Barrancos e à recolha que fiz quando escrevi aqui um artigo sobre o contrabando na raia posso agora acrescentar mais isto: «Eurico Mestre, 70 anos - Corte Gafo de Baixo - «Por vezes vinham para aqui espanholas fugidas da guerra, cansadinhas, cheias de piolhos, comiam saramagos amargos. Uma rapariga espanhola contou-me que eram dezoite e as outras ficaram na fronteira, não conseguiram passar, com tanta fome lá ficaram caídas, ela teve mais força!». - «Memórias do Contrabando em Santana de Cambas – Um contributo para o seu estudo», pág. 52
Esta guerra foi intensamente vivida, de facto, agora saber porque foi criada e sobreviveu esta transmissão memorial sobre os fuzilamentos «por engano» num Monte cuja relação geográfica é distante com os locais dos eventos é matéria complexa, que na minha opinião só pode dever a sua perenidade à grande força da reprovação social.
Como já tenho dito o meu avô dedicou-se à actividade de contrabando em pequena e para mim inocente medida, mas no seu caso eu acho que ele sempre foi um andarilho, naquele sentido de procurar sempre coisas diferentes e para conseguir isso tinha de se deslocar a sítios diferentes.
Não se pode dizer que tenha corrido muito no sentido actual, até porque naquele tempo correr muito era andar para aí num raio de cinquenta ou setenta quilómetros: tinha uma série de profissões base, desde tosquiador a cardador, a pastor, a lavrador, a ceifeiro, a podador, a comerciante, a contrabandista, trabalhador braçal em estradas e caminhos de ferro, enfim, não devo esgotar aqui todas as artes que ele exerceu, mas dou uma ideia que qualquer uma delas, se excluirmos a semi – sedentária de tratar das suas terriolas, implicava deslocação.
Normalmente as herdades do Alentejo no caso da ceifa, os montes em redor para tosquiar e cardar, a serra de Tavira para o comércio das panelas de barro, a zona de Castro Marim a Alcoutim para trabalhar na estrada, e já mais no litoral para trabalhar nos caminhos de ferro, na instalação das linhas e todo o conjunto de coisas que isso implicava, desde trabalhar de picareta a carregar carris.
Sem que se possa tomar como exemplo este caso único é preciso acrescentar que o meu avô não era caso único. Normalmente deslocavam-se grupos para um lado e outro, para uma profissão ou outra no sentido de conseguirem complementar aquele pouco que a terra lhes dava, embora eu sempre tivesse a sensação que nunca faltava comida, coisa que parece ser comum ou normal em zonas rurais de todo o mundo, se excluirmos aquelas que sofrem efeitos constantes de secas.
Poderia não haver bifes mas havia pão, queijo, chouriça, morcelas, cozidos de couve, grão, nacos de presunto e toucinho, ovos, ervas aromáticas, ervilhas, favas, batatas, enfim...ainda sinto o cheiro dos cozidos de couve portuguesa a abobrarem à rés das brasas na panela o dia inteiro.
Talvez a zona nordeste algarvia estivesse, em termos da globalidade que atrás referi, numa zona limiar entre as zonas de seca e as zonas com chuvas regulares, e por vezes excessivamente abundantes, mas este tipo de alternância sazonal fomentava a migração de proximidade, o aproveitamento de algumas obras públicas que necessitavam de mão de obra não qualificada, o trabalho nas minas, enfim, se formos contar hoje por aquilo que sabemos raro é o filho da terra que por lá se ficou a seguir aos anos 60 o que singularmente quer dizer que as alternativas migratórias de proximidade existentes deixaram de produzir o efeito esperado.
Na região litoral do Algarve o mesmo se passou, e passa, quando a indústria começou a ser mais escassa e o turismo, como fonte alternativa de alimento não estava - e ainda não está nem nunca estará - implantado ao ponto de ser uma valência real de emprego duradouro e fixação populacional.
Lembro-me que ser empregado na hotelaria nos anos 60/70 era ter de percorrer todo o Algarve litoral, da ponta de Sagres a Vila Real de Sto António, por vezes por períodos escassos de três meses no Verão e regressar a penates para «passar o inverno» nalguns trabalhos ocasionais que fossem surgindo. Neste plano o fenómeno da migração não é exclusivamente serrano, ainda que se possam encontrar diferenças nas graduações.
Havia no entanto, nesta relativa pacatez serrana do período sedentário histórias que se contavam e para além das mouras encantadas, que requeriam um pouco de imaginação, havia histórias sobre as deslocações feitas, o trato dos patrões e contramestres e toda a envolvência que funcionava como um jornal ou enciclopédia oral servindo de informação e cautela nas deslocações futuras.
Mas, quase fora destes contextos, e ombreando em termos de desfasamento com o real do dia a dia num sector específico da memória colectiva havia as histórias sobre a guerra civil de Espanha. Para além da leitura conjunta do jornal à porta do avô da Odília Guerreiro chegavam entremeadas algumas notícias sobre fuzilamentos na raia envolvendo portugueses. Sei de cor duas, uma com um final mais ou menos feliz e uma outra que terá custado a vida ao incauto e inocente pastor da nossa nacionalidade.
Eram os chamados fuzilamentos por engano: as tropas ou as patrulhas franquistas chegavam a determinada povoação onde lhes teria constado por meio de informadores que havia por ali gente republicana e por aquilo que me diziam a escolha era feita de forma aleatória.
O que salvaria os portugueses seria o facto de não serem espanhóis, mas esse factor pelos vistos não contava em toda a sua medida e para além do mais os documentos na altura não eram de porte obrigatório e em muitos casos nem sequer os havia.
Provar que se era português e sujeitar-se à sanção por ter atravessado a fronteira sem autorização era difícil, pelo que se tomava (tomavam eles) o método de inquirir o informador se fulano era ou não era, o que é um método bastante falível, tanto mais que em caso de ser afirmado o desconhecimento da parte do informador isso valia como factor de certeza alternativa. Ou seja, fulano não sabe se beltrano é português ou espanhol logo beltrano é espanhol.
Dos dois casos que ouvi falar um baqueou mesmo nas costas de um muro e o outro foi salvo no último minuto pela providencial chegada de um outro informador mais informado: o homem era português, estava daquele lado porque envolvido no pastoreio nem se apercebera que estava do lado de lá e como precisava de comprar algumas coisas no lugarejo estava ali e ia-se já embora.
Claro que as pessoas estavam do lado de lá, nem outra coisa seria pensável (ou seria dificilmente pensável) por razões de conflitos fronteiriços, mas nunca ninguém fará essas contas, como é claro. Para além daqueles portugueses que foram combater dos dois lados (porque os houve nas hostes franquistas e nas hostes republicanas) terão morrido neste sumário sistema de abate bastantes pacíficos camponeses.
A guerra civil de Espanha foi de alguma forma intensamente vivida pelas populações raianas, isso sabe-se e ainda há dias foi publicado neste jornal um artigo sobre oTenente Seixas a sobre a sua intervenção em Barrancos e à recolha que fiz quando escrevi aqui um artigo sobre o contrabando na raia posso agora acrescentar mais isto: «Eurico Mestre, 70 anos - Corte Gafo de Baixo - «Por vezes vinham para aqui espanholas fugidas da guerra, cansadinhas, cheias de piolhos, comiam saramagos amargos. Uma rapariga espanhola contou-me que eram dezoite e as outras ficaram na fronteira, não conseguiram passar, com tanta fome lá ficaram caídas, ela teve mais força!». - «Memórias do Contrabando em Santana de Cambas – Um contributo para o seu estudo», pág. 52
Esta guerra foi intensamente vivida, de facto, agora saber porque foi criada e sobreviveu esta transmissão memorial sobre os fuzilamentos «por engano» num Monte cuja relação geográfica é distante com os locais dos eventos é matéria complexa, que na minha opinião só pode dever a sua perenidade à grande força da reprovação social.