quinta-feira, 9 de maio de 2013

Recordações das férias grandes de há 40 / 45 anos [3]





Escreve

José  Rodrigues



A “FEIRA DE CASTRO”

Quando há dias passei por Castro Verde, a caminho do Monte, lembrei-me da famosa “feira de Castro”. Não porque alguma vez tenha tido o prazer de a visitar, mas por ter ouvido falar dela desde que me conheço. O meu avô e o meu pai, descreviam as épicas viagens desde os Balurcos até à feira de Castro Verde, (Almodôvar, Garvão e Serpa, eram igualmente importantes), a uns setenta e tal quilómetros, atrás das vacas, ou montados em bestas. É claro que “a cavalo” a viagem era incomparavelmente mais rápida e menos cansativa. Atrás das vacas, animais por natureza pachorrentos, tinham que partir uma semana antes da abertura do evento. Os animais iam pelo caminho, comendo o que podiam apanhar, durante o dia, e descansavam durante a noite.

Eram autênticas romarias que chegavam ao destino, por todas os caminhos possíveis, em caravanas de animais de todas as espécies: cabras, ovelhas, vacas, machos, burros, bestas muares, cavalos, porcos, etc. Em todo o caso, do concelho de Alcoutim deslocavam-se basicamente vacas, bestas e algumas ovelhas. Como é natural, nesses verdadeiros ranchos que se juntavam na deslocação e, também no próprio recinto durante os dias de permanência, aconteciam “estórias” verdadeiramente hilariantes. Escolhi duas como base a esta crónica.

A primeira tem a ver com um compatrício que tinha muita vontade de conhecer a feira de Castro. Por um motivo ou por outro, os anos iam passando sem que essa vontade se concretizasse, até que um dia chegou a oportunidade. A necessidade de adquirir uma besta que fizesse parelha com o macho castanho que já possuía, levou-o a decidir-se. Na antevéspera da abertura, logo a seguir à merenda, montou-se no dito macho, com uma manta de homem na albardadura, e uns alforges novos em que transportava alguns mantimentos para ele e para o animal, iniciou o sonho de conhecer a famosa “feira de Castro”. Abalou sozinho do Monte mas não tardou a encontrar companhia, como lhe convinha. O itinerário tinha-lhe sido indicado por um tio, com vasta experiência nestas deslocações. Passou por: Pereiro, Velhas, Farelos, Ribeira do Vascão, S. Bartolomeu da Via Glória (onde pernoitou), Diogo Martins, Góis, Ribeira de Carreiras, Castanhos, Ribeira de Oeiras, Espragosa, Figueirinha, Alcaria do Coelho, Viseus, S. Pedro das Cabeças e finalmente Castro Verde, onde chegou ao pôr-do-sol do dia seguinte. Pelas muitas horas que passou escarrapachado no macho, quando dele se apeou não conseguia endireitar-se por mó das dores nas cadeiras e das partes completamente assadas. Nessa noite andou pouco, arranjou estalagem para ele e para o macho e depois de ambos comerem qualquer coisa, deitou-se até no outro dia. Dormiu pouco, por ter estranhado a cama, mas ergueu-se cedo, notou algumas melhoras nas dores das cruzes, e pioras nas assaduras que nem o deixavam caminhar de forma normal, deslocava-se meio curvado com as pernas ligeiramente afastadas, como se alguma parte do corpo lhe pesasse mais que a conta, valeu-lhe nesta circunstância o bordão que tinha colhido de véspera, na Ribeira do Vascão, e no qual se firmava com vigor, tanto que até lhe lascou a extremidade, afiada, que embatia sucessivamente, e com toda a força, no chão. Assim andou todo o dia deambulando pela feira sem grande entusiasmo, e tanto que ele tinha esperado por aquele dia, para apreciar todo aquele gado! Talvez pelo ânimo que lhe faltava, não encontrou nenhuma besta que lhe agradasse, tendo comprado apenas um tamoeiro, uns sefões em pele de cabra, duas cilhas e um chocalho para a vaca. Marcou para o dia seguinte o regresso a casa. Manhã cedo despediu-se e abalou rumo ao Balurco e, ainda com a feira à vista, decidiu dedicar ao evento que o acolheu, a seguinte quadra:

Adeus oh Feira de Castro,
Que já te fiqui conhecendo,
Levo o bico do pau gasto,
E as bordas do cu ardendo.

Consta que nem mais quis ouvir falar da “Feira de Castro”!

A segunda estória tem muito mais probabilidades de ser verdadeira, e passou-se, supostamente, com uma pessoa que ainda conheci muito bem e pelo qual nutri grande simpatia. Pelo respeito que me merece a sua memória, não vou citar o seu nome. Para facilitar a redacção vou chamar-lhe, apenas, ti Manel.

O ti Manel possuía uma burra, já com alguma idade, que era as “suas pernas”, mas a velhice não perdoa nem aos animais, e resolveu que nesse ano iria à feira de Castro para a vender e adquirir uma outra, tanto quanto possível com as mesmas características mas bem mais jovem, como era compreensível. Tinha que ser, mesmo tendo pena da burrinha, que tratava com todos os cuidados e que mantinha gorda e lustrosa, apesar de nesse ano nem a ter mandado tosquiar, uma vez que seria dinheiro desperdiçado. O novo dono que tratasse desse assunto, pensou.

Aspecto parcial da antiga Feira de Castro.
Muitos negócios faziam-se logo a caminho da feira e foi o que aconteceu com o ti Manel. Abordado por uma família cigana, não aceitou a sua primeira “oferta”, apesar de ela não andar muito longe do valor que tinha cogitado para a venda do animal. Recusou à primeira, mas em nova abordagem, uns quilómetros mais à frente, aceitou nova proposta, tendo recebido o dinheiro combinado na negociação e entregue a burrinha com grande desgosto, mas a vida não se compadece com sentimentalismos. A albarda e o cabresto não entraram no negócio e foram carregados, bem como os alforges, na mula de um camarada de viagem, que ia vaga.

No dia seguinte começou cedo a procura da substituta, que até podia ser um burro, desde que cumprisse os requisitos traçados, sendo condição que, nesse caso, fosse capado. Numa ou noutra circunstância, o essencial é que fosse jovem, até uns 6/7 anos estava bem. O que não faltava naquelas feiras eram burros, a dificuldade era escolher, mas encontrou, finalmente, um animal que lhe preencheu as expectativas: a mesma estatura da anterior, mas um pouco mais escura na pelagem, com umas ancas que denotavam bom tratamento do antigo proprietário, pêlo bem aparado, com desenhos artísticos nas duas ancas e no rabo, “calçada” de novo, tanto nas “mãos” como nas patas e sobretudo mansa que nem um cão, embora “viva”. Os dentes não lhos conseguiu ver muito bem, mas pôde comprovar que, pelo menos, luziam de brancura. Não se preocupou muito com os dentes até porque nunca fora grande especialista em avaliar a idade dos animais por essa vertente, nem se calhar por qualquer outra, acrescento eu! Fez negócio! Entregou aos ciganos três vezes o valor pelo qual tinha vendido a sua, e tomou conta da nova aquisição com toda a satisfação do mundo. Nada mais o prendia à feira, até porque já tinha adquirido meia dúzia de utensílios que a mulher lhe tinha encomendado, e combinou o regresso com alguns camaradas que também já tinham comprado “as feiras”.

Verificando a idade
Ao chegar ao Monte poisou a arreata no chão, como era seu há-bito, enquan-to descarre-gava os have-res. Eis senão quando,a bur-ra apanhou o passo e, sem hesitações, dirigiu-se à arramada, para surpresa do ti Manel que incrédulo exclamou: - mas como é que o raio da bur-ra, sem nunca cá ter estado, sabe o caminho da malhada? Pouco tempo demorou a perceber, com a ajuda de alguns vizinhos que acudiram a seu pedido, que afinal a “nova” e a “velha” burra, eram a mesma criatura.

Durante a noite os ciganos tinham tosquiado a jumenta, deram-lhe uma coloração mais escura com um qualquer pigmento diluído em azeite, para tornar o pêlo mais sedoso, lavaram-lhe os dentes com uma zaragatoa embebida numa “pasta” feita à base de ervas e ferraram-na de novo nas quatro patas. Ficou assim montada a armadilha em que o ti Manel se deixou “apanhar”, embora acreditemos que não de propósito. Certamente que os ciganos que negociaram a compra, não eram os mesmos que negociaram a venda ou, quem sabe, até eram!

Parece que quem não se ralou mesmo nada, e tampouco se sentiu minimamente prejudicada com o negócio, foi a burra!