quinta-feira, 16 de maio de 2013

Talhos em Alcoutim a meio do século XX

Pequena nota
Este interessante e enriquecedor texto sobre os talhos da vila de Alcoutim acaba por dar seguimento ao que publicámos no Jornal Escrito, nº 61, de Março de 2004, encarte de O Algarve, nº 4785 e que teve por título “O corte de carnes verdes na Vila de Alcoutim”.
Na nossa rubrica Ecos da Imprensa publicámo-lo em 22 de Outubro de 2009.
Esta matéria dizia respeito às acções do século XIX, em especial ao legislado pelo Liberalismo.
O artigo agora apresentado relata o que se passava na vila em meados do século seguinte, ou seja, no século XX.
JV




Escreve

Gaspar  Santos



A vila de Alcoutim tinha vários talhos em meados do século XX. Abatiam e vendiam em geral caprinos e ovinos, mais raramente porco pois quase toda a gente engordava pelo menos um e portanto não comprava; e ainda mais rara a carne de vitela devido à dificuldade de a vender rapidamente quando não se dispunha de frigorífico para a conservar durante alguns dias. A galinha de campo e o peru, por vezes, um ou outro dos talhos os vendia.

Alguns talhos preparavam e vendiam pezinhos de borrego e, também, molhinhos feitos a partir do buxo (estômago) destes mesmos animais, enrolado sobre um ramo de hortelã. Hoje naturalmente estes subprodutos dos talhos devem ter caído em desuso em Alcoutim, mas não em outras terras e, até talvez mesmo sejam desconhecidos da generalidade dos alcoutenejos.

Cada um destes talhos era constituído por um balcão provido de balança do tipo romano ou do tipo pratos suspensos. Tinha na parede atrás do balcão um armário provido de porta de rede impeditiva da entrada das moscas, e nuns ganchos suspendiam as carcaças dos animais. Na parte de dentro do balcão havia um tronco grosso de árvore de que um dos topos de secção circular servia para cortar os ossos com um cutelo. Na parede atrás do balcão estavam penduradas as facas, serras e outros instrumentos de cortar a carne.

Ao homem do talho ou talhante também dávamos o nome de carniceiro. Açougueiro como dizem no Brasil deve ter caído em desuso, mas chamava-se açougue o local onde eram mortos os animais ou seja o matadouro.

Cada talho tinha o seu rebanho. Era o seu viveiro ou “armazém vivo”! Grande parte deles não tinha pastagens próprias. Este gado a aguardar a morte (algumas ovelhas também procriavam entretanto) pastava nos logradouros públicos: Serro da Eira, campo de futebol da Fonte Primeira, bermas dos caminhos públicos e, uma ou outra sortida pelos campos vizinhos. E, também, dentro da própria vila. Muito próximo da casa de meus pais, o largo junto da Igreja Matriz criava muita erva durante o inverno e servia muitas vezes para estes rebanhos pastarem.

Os Talhos localizavam-se na zona comercial de então:

Praça da República em 1969

-Talho do Joaquim do Rosário, na Praça da Republica, num edifício a seguir aos Paços do Concelho, que pertencera a Vicente Romana.

Rua da Misericórdia em 1969

-Talho da ti Ermelinda/ João Victor – na Rua da Misericórdia no lado direito na casa hoje de Anabela Fernandes.

Balança de Ti Pimenta
-Talho da ti Maria do Nascimento/Ti Pimenta no lado esquerdo da Rua da Misericórdia nas traseiras da casa de Ilda Afonso. Mais tarde mudaram o local do talho para as escadinhas da Rua da Aparada.

-Talho de Guerreiro, quase em frente donde hoje é a mercearia de Rosa Inácio.
No atendimento, os homens eram mais despachados: tanto o Rosário como o Guerreiro cortavam a carne atiravam-na para cima da balança e o peso parece que quase sempre estava certo ou pelo menos arredondavam as contas em escudos não estando com minudência de trocos.

Já as mulheres não eram assim. Colocavam a carne na balança, coçavam na cabeça se o peso se afastava para menos, ajeitavam os ponteiros para ver se o peso crescia e de má vontade lá iam buscar mais uma nesga de carne para completar. Se pelo contrário o peso era mais faziam as contas e o freguês pagava a diferença.

O alcoutenejo tanto comia o borrego ou o cabrito, como comia os animais mais velhos: ovelhas e carneiros, cabras e bodes, ao contrário de outros povos. No Portugal do Norte comem preferencialmente animais jovens, enquanto na nossa vizinha Andaluzia não comem os borregos e os cabritos porque, dizem, sabem a “leche”. Em Alcoutim não era muito vulgar comerem leitão por isso os talhos não o vendiam.

Hoje não há talhos. Apenas aos sábados estaciona junto ao mercado, no Bairro do Rossio, uma carrinha que vende carne, suponho que até nem tenha muita freguesia. O peixe do rio, a outra fonte alternativa de proteínas, também passou a ser menos abundante.

Embora a população residente fosse menor nesse tempo, o Hospital consumia e os doentes e acompanhantes que acorriam a consultar o Dr. Dias também representavam uma população não residente consumidora. E as pessoas estavam apenas sujeitas ao mercado local.

Havendo hoje maior população na vila, com maior poder de compra, hábitos de maior consumo, e tendo ainda uma série de restaurantes, por que dispensaram os talhos?