Escreve
Amílcar Felício
A Barbearia do Mestre João Ricardo na Praça da República,
era um dos pontos de encontro mais concorridos em Alcoutim, naquelas longas e
pachorrentas tardes de Verão dos anos sessenta do século passado. Quando não
havia parceiros para as cartas nem clientes o que era raro, o Mestre João
entretinha-se a tocar uma gaitada no seu pífaro como quase todos
chamavam ao clarinete ou no seu saxofone que dominava com mestria. Mas de um
modo geral era ali na Barbearia desaparecida há muito e encostada aos antigos
edifícios escolares que ainda lá existem, que os homens se juntavam e passavam
aquelas horas calorentas a jogar à sueca, à bisca ou aos três setes.
Havia também quem jogasse às damas ou ao dominó. A rapaziada mais nova andava
por ali entre o fresco da placa do Cais Novo e a Barbearia, a maior parte das
vezes mirando e remirando cada jogada e tentando aprender as melhores jogadas com
os que eram considerados craques. Até o Mestre João não resistia e entre uma
barba e um cabelo, também se juntava muitas vezes aos homens e fazia a sua
jogatana. E mesmo agarrado à tesoura ou à navalha não tirava os olhos das
cartas, para acompanhar cada jogada ao pormenor. Era um entusiasta do jogo!
Mas... já lá dizia o outro há quase 500 anos de
que “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... todo o mundo é composto
de mudança, tomando sempre novas qualidades” e naturalmente como em tudo
na vida, até os hábitos mais enraizados entre os homens vão mudando debaixo dos
nossos olhos quase sem darmos por isso, mesmo aqueles mais comezinhos como a
higiene. A noção de higiene aliás é na minha opinião sobretudo uma questão
cultural, pois se analisarmos historicamente o tema percebe-se facilmente que
tem mudado ao longo dos tempos, de acordo com os novos valores que se vão
afirmando. Basta referir o significado do banho na antiga Grécia ou
posteriormente no Império Romano, ou as enormes mudanças de comportamento
verificadas no que respeita à higiene desde a Idade Média até aos nossos dias,
para se perceber as diferenças.
Para reforçar esta ideia lembremos por exemplo de que Luís
XIV de França em pleno século XVII apenas tomou banho duas vezes na vida, isto
é, quando nasceu e quando se casou o que aos olhos de hoje seria pouco
abonatório para personagem tão ilustre mas, que se saiba ninguém lhe chamou o
Rei Porco, antes pelo contrário até lhe chamaram o Rei Sol imagine-se a
um porco daqueles, diria-mos nós hoje.
Mas regressemos à Barbearia do Mestre João Ricardo nos
meados daquela década de sessenta do século passado. Os hábitos estavam a mudar
aceleradamente. O Mestre João tinha introduzido na sua Barbearia um aparelho
inovador -- um escarrador -- que colocava estrategicamente ao lado da cadeira
de barbeiro aonde se sentavam os clientes. Queria assim evitar que os homens
cuspissem para o chão, hábito que hoje nos arrepia só de pensar, mas muito
arreigado aos usos e costumes naqueles tempos. Era um objecto raro naquela
época mas sem grandes complexidades. Tratava-se de um simples recipiente em
madeira cheio de areia, para aonde se cuspia e que evitava assim o degradante
espectáculo -- aos olhos de hoje claro – de ver as pessoas cuspir para o chão,
hábito muito entranhado na altura como referimos.
Certo dia entra na Barbearia do Mestre João um camponês que
tinha aproveitado a deslocação à Vila para cortar o cabelo. Enquanto o Mestre
João lhe cortava o cabelo o homem sentiu vontade de cuspir, cuspindo precisamente
para o lado contrário aonde estava o escarrador. O Mestre João discretamente
com o pé, desviou o escarrador naturalmente para o sítio para aonde o homem
estava a cuspir. Quando o homem lhe deu vontade de cuspir novamente, cuspiu
precisamente para o lado contrário para aonde o Mestre João tinha deslocado o
escarrador. O Mestre João mais uma vez discretamente para não ferir a
susceptibilidade do cliente, volta a empurrar novamente com o pé o escarrador
para o outro lado. O homem apercebendo-se do movimento não se conteve e já com
cara de poucos amigos, diz para o Mestre João: “você anda, anda... e ainda lhe
escarro dentro dessa merda!”
O Mestre João adorava contar esta estória. Ouvi-lha contar
algumas vezes...