quinta-feira, 2 de maio de 2013

Você anda, anda... e ainda lhe escarro dentro dessa merda!





Escreve

Amílcar Felício



A Barbearia do Mestre João Ricardo na Praça da República, era um dos pontos de encontro mais concorridos em Alcoutim, naquelas longas e pachorrentas tardes de Verão dos anos sessenta do século passado. Quando não havia parceiros para as cartas nem clientes o que era raro, o Mestre João entretinha-se a tocar uma gaitada no seu pífaro como quase todos chamavam ao clarinete ou no seu saxofone que dominava com mestria. Mas de um modo geral era ali na Barbearia desaparecida há muito e encostada aos antigos edifícios escolares que ainda lá existem, que os homens se juntavam e passavam aquelas horas calorentas a jogar à sueca,  à bisca ou aos três setes. Havia também quem jogasse às damas ou ao dominó. A rapaziada mais nova andava por ali entre o fresco da placa do Cais Novo e a Barbearia, a maior parte das vezes mirando e remirando cada jogada e tentando aprender as melhores jogadas com os que eram considerados craques. Até o Mestre João não resistia e entre uma barba e um cabelo, também se juntava muitas vezes aos homens e fazia a sua jogatana. E mesmo agarrado à tesoura ou à navalha não tirava os olhos das cartas, para acompanhar cada jogada ao pormenor. Era um entusiasta do jogo!


Local próximo da localização da barbearia

Mas... já lá dizia o outro há quase 500 anos de que “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades” e naturalmente como em tudo na vida, até os hábitos mais enraizados entre os homens vão mudando debaixo dos nossos olhos quase sem darmos por isso, mesmo aqueles mais comezinhos como a higiene. A noção de higiene aliás é na minha opinião sobretudo uma questão cultural, pois se analisarmos historicamente o tema percebe-se facilmente que tem mudado ao longo dos tempos, de acordo com os novos valores que se vão afirmando. Basta referir o significado do banho na antiga Grécia ou posteriormente no Império Romano, ou as enormes mudanças de comportamento verificadas no que respeita à higiene desde a Idade Média até aos nossos dias, para se perceber as diferenças.

Para reforçar esta ideia lembremos por exemplo de que Luís XIV de França em pleno século XVII apenas tomou banho duas vezes na vida, isto é, quando nasceu e quando se casou o que aos olhos de hoje seria pouco abonatório para personagem tão ilustre mas, que se saiba ninguém lhe chamou o Rei Porco, antes pelo contrário até lhe chamaram o Rei Sol imagine-se a um porco daqueles, diria-mos nós hoje.

Mas regressemos à Barbearia do Mestre João Ricardo nos meados daquela década de sessenta do século passado. Os hábitos estavam a mudar aceleradamente. O Mestre João tinha introduzido na sua Barbearia um aparelho inovador -- um escarrador -- que colocava estrategicamente ao lado da cadeira de barbeiro aonde se sentavam os clientes. Queria assim evitar que os homens cuspissem para o chão, hábito que hoje nos arrepia só de pensar, mas muito arreigado aos usos e costumes naqueles tempos. Era um objecto raro naquela época mas sem grandes complexidades. Tratava-se de um simples recipiente em madeira cheio de areia, para aonde se cuspia e que evitava assim o degradante espectáculo -- aos olhos de hoje claro – de ver as pessoas cuspir para o chão, hábito muito entranhado na altura como referimos.

Certo dia entra na Barbearia do Mestre João um camponês que tinha aproveitado a deslocação à Vila para cortar o cabelo. Enquanto o Mestre João lhe cortava o cabelo o homem sentiu vontade de cuspir, cuspindo precisamente para o lado contrário aonde estava o escarrador. O Mestre João discretamente com o pé, desviou o escarrador naturalmente para o sítio para aonde o homem estava a cuspir. Quando o homem lhe deu vontade de cuspir novamente, cuspiu precisamente para o lado contrário para aonde o Mestre João tinha deslocado o escarrador. O Mestre João mais uma vez discretamente para não ferir a susceptibilidade do cliente, volta a empurrar novamente com o pé o escarrador para o outro lado. O homem apercebendo-se do movimento não se conteve e já com cara de poucos amigos, diz para o Mestre João: “você anda, anda... e ainda lhe escarro dentro dessa merda!”

O Mestre João adorava contar esta estória. Ouvi-lha contar algumas vezes...