A MINHA TIA DIONÍSIA
A minha tia Dionísia foi uma personagem peculiar em muitos
sentidos: foi a primeira da irmandade a «debandar» de Alcaria Alta. Sempre a conheci
como sendo cozinheira como métier
principal, embora houvesse alguma polivalência sempre nestas coisas.
Ela tinha um dom mesmo no que se refere à cozinha: fazia o
tal arroz solto, daquele mesmo solto bago a bago e isto num tempo em que a
qualidade do arroz não era tão refinada como hoje. E doces nem se fala: arroz
doce era o meu preferido, embora houvessem outras coisas também mais
sofisticadas como ovos moles, nuvens (de claras de ovos) com canela por cima,
as empanadilhas com batata doce, gila ou abóbora, enfim... Para uma montanheira
criada a cozidos de couve e grão soube adaptar-se muito bem a novas realidades.
Empanadilhas |
No que se refere à cozinha era quase uma mãos largas,
gostava mesmo daquilo, de cozinhar, de ver as pessoas satisfeitas...mas era uma
sovina no resto.
Durante uns quantos anos dei mensalmente à minha Tia parte
do dinheiro que ganhava em Lisboa e para o recuperar quando me quis vir embora
foi um verdadeiro drama: tinha-o na Caixa a prazo, era meu não havia problemas,
mas só mo entregava quando acabasse o prazo (cinco anos salvo erro). Só mo deu
quando eu parti para França, «ao salto» e tive sério receio que ela ainda
quisesse ir discutir o preço da passagem com o clandestino passador.
A minha tia Dionísia era verdadeiramente especial em quase
tudo: por mais que eu me esforçasse, durante anos - devo ter começado a
ensinar-lhe aos meus 10 anos mais ou menos e dei-lhe a última lição já com 30 e
tal - nunca consegui fazê-la aprender a ler. Num dia estava encaminhada, no dia
seguinte tínhamos de partir do zero outra vez. No que se refere a contas odiava
as contas de diminuir. Somava lindamente, sabia os números dos autocarros e dos
Eléctricos em Lisboa, conjugava os percursos e derivações entre paragens de
cabeça, ensinou-me a Lisboa daquele tempo toda. Ensinou-me muito...e eu só
tentei ensiná-la a ler...e afinal ela nem precisou nunca.
Esteve em Angola como cozinheira numa empresa de informática
toda composta por pessoal ido do Continente. Esteve em França também sempre com
o afã de amealhar. Somar sempre, nunca diminuir.
Jantar de grão. Foto JV, 2011 |
Tinha no entanto uma peculiaridade verdadeiramente peculiar
a minha Tia : guardava tudo, desde agulhas de coser até carrinhos de linhas e
botões de camisa: passados uns anos após o falecimento dela estávamos em Alcaria Alta e eu
deixei cair o isqueiro para debaixo da cama.
Ficámos quase todos mais que espantados: debaixo das largas
camas de ferro, das duas, havia à vontade, devidamente alinhados como se
estivessem na tropa, uma centena ou mesmo mais de pares de sapatos dela. De
todas as cores e feitios, todos como novos. Tinha-os usado todos e tal como no
resto nunca os deitava fora e havia verdadeiras relíquias das diversas modas
(30 ou 40 anos de história sapatal).
A minha mãe que limpava a casa sabia disso, e sabia que muitas
das viagens que ela fazia ao Monte tinham quase como fito único levar material
para armazenar. E eu que achava estranho a minha mãe zangar-se com ela por não
deitar sapatos fora quando só lhe conhecia normalmente dois ou três pares a uso
ainda em bom estado...
O resto estava em caixas, caixinhas dentro de caixinhas,
sacos de papel, arcas...enfim, uma verdadeira antiquária passiva que se
escudava na sua intimidade para que a gente não lhe espreitasse os haveres.
Adoeceu com uma doença esquisita: diz-se que esta veio de
Africa e quando a ambulância a veio buscar para a levar para Lisboa todos
sabíamos que ela não ia viver para voltar: o Capitão Rosado, nosso vizinho, bem
tentou torcer o destino já com pouca fé: «Doenças sem febre é o Diabo, mas
nunca se sabe, vamos ver, vamos ver...».
Todos a vimos regressar passados poucos dias para ficar no
Cemitério que se chama da Esperança aqui em Faro.