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A NOSSA PISCINA
Falar em piscina em Alcaria Alta , pelo menos na altura em que andei
por lá jovem ou criança, seria introduzir um neologismo no vocabulário local e
depois do que vou escrever em seguida seguramente ainda hoje será considerado
exagerado o termo.
Numa primeira vista, esclareça-se, porque piscina advém de
peixes e muito pouco tem a ver com o actual sentido que lhe é dado
maioritariamente. Por isso eu dizer que tínhamos uma piscina (várias, até) em Alcaria Alta não é
totalmente um absurdo: não davam, na sua grande parte, para nadar (salvo alguns
pegos mais resistentes à seca do verão já na Ribeira da Foupana ou mesmo no
Ribeirão) mas até os poucos que sabiam nadar, nós, os da cidade, não tínhamos
assim uma tão grande apetência para a braçada.
Habituados à água salgada, mais «pesada» como dizíamos, era
uma trabalheira enorme para nos mantermos à tona da água doce (levezinha) pelo
que utilizando a sempre presente em qualquer idade lei do menor esforço
ficávamos pelo «molho» a meia altura com mergulhos só da cabeça para alisar o
penteado. Aliás ainda bem que não nos lembrámos de andar a saltar das rochas
porque os fundos eram bastante irregulares e surpreendentes.
Mas a nossa piscina, a piscina do dia a dia era um poço numa
horta: dava-nos a água aí pelos ombros, sensivelmente, era extraordinariamente
límpida antes da primeira entrada e descíamos e subíamos com a força dos
braços. Juntávamo-nos três e quatro num espaço que acabava por se tornar exíguo
e tínhamos direito a banho de lama de borla ao fim de dois minutos de termos
entrado.
Poço do monte. Foto JV |
Estava este poço situado numa horta que ficava a seguir ao
poço de baixo numa zona ainda sem denominação específica que me lembre mas que
ficava próximo das Almargens : era só descer mais vinte metros e estávamos lá,
na zona das Almargens que ficava perto do Almarginho, este seguramente com este
nome diminuído por relação de proximidade e de semelhança e continuidade.
Numa direcção oposta e distante, já no caminho que fazíamos
a butes para Martinlongo fora da estrada porque era mais muito mais curto o
percurso, e virado para o outro lado do Monte e a uma distância dali onde
estávamos de pelo menos um quilómetro ficava o Almarjão, onde cultivávamos uma
horta.
Nunca percebi muito bem a lógica destas denominações mas que
não era sempre por relação de proximidade me parece ser certo: talvez fosse
pela forma, pela localização em dado tipo de terreno, pelo contorno que os
cursos de água davam às hortas, pelo desenho que a erosão das elevações ia
plantando no sopé dos montes: deveria saber mais sobre isto e estudar um pouco
estas coisas, é um facto.
Havia um sítio que era merecidamente chamado da «Areia
fina», logo à saída do Monte, porque, por estranho que nos parecesse a areia
era mesmo fina, quase tipo praia: já teria havido ali um curso de água com
dimensão grande mas já não havia na altura e há centenas de anos provavelmente:
nunca ninguém, me falou em ter visto água ali a não ser a das enxurradas do Inverno
que desciam do bairro do Além.
O processo do nosso banho perto das Almargens era demorado
mesmo: bastava meia hora de banho para termos quinze minutos de segunda lavagem
a balde num outro poço e enxaguamento ao sol. Desincrustar a areia, a lama e
toda a sujeira natural que os bordos do poço iam debitando e que se colavam
sobretudo na parte mais visível, que era o cabelo, era a segunda fase
obrigatória no processo.
Poço tipo regional. Foto JV |
Mas era bom, fazia calor de rachar e tudo o que abrandasse a
sensação de estarmos a torrar era bem aceite. Os montanheiros adultos não
tomavam de facto muitos banhos porque não tinham as possibilidades que nós
crianças tínhamos. Aproveitávamos a hora de caçar (quase nada sempre) neste
poço de baixo, hora esta que era mais farta de possibilidades na força do calor
aproveitando a altura em que os pássaros iam beber nas pequenas poças de água
que se formavam à volta do poço.
De esclarecer que era o poço das bestas e que resto de balde
não bebido por um animal tinha de se deitar fora...e deitava-se logo ali, para
voltar a ser filtrado pelo terreno e regressar donde tinha vindo, pelo menos
assim se pensava. A sapiência dos povos é grande : uma besta, seja ela asinina,
muar ou cavalar, não bebe água já tocada pelos lábios (beiços) de um outro pelo
que não dá para dar o resto a outro e voltar a jogá-la para dentro do poço
também não dava, porque mesmo sendo um poço na altura exclusivamente para
animais, nunca se sabe o dia de amanhã.
Quando me lembro destas coisas, e regressando agora às
nossas piscinas, sei perfeitamente que era uma grande porcaria e que o poço só
mantinha a água limpa se lá não entrássemos: logo uma coisa implicava outra;
tomar banho (para nos limparmos por definição) implicava que nos sujássemos mas
nada impedia aquela agradável sensação de frescura em plena força do verão.
Estas pequenas coisas, desaparecidas agora, são coisas e
tempos que não voltam mesmo mais. Qualquer criança agora não fará nada disto,
nem sequer se aconselha que o faça e nem terá condições para fazer o mesmo.
Isso é que torna também as coisas de hoje por vezes tão urgentes e tão
prementes e tão necessárias para serem usadas ou feitas mesmo: muitas das
coisas que fazemos ou não fazemos hoje podemos nunca mais vir a fazê-las o que
faz com que cada um de nós tenha condições e momentos que são mesmo únicos no
sentido mais absoluto do termo. Não sabemos exactamente quais, é um facto e
nunca saberemos o último segundo de cada coisa.
E descontando esta parte desagradável da areia e do barro no
corpo e no cabelo quantos de nós sentimos alguma vez ao tomar hoje um
seguramente mais higiénico duche que provavelmente estaremos numa época de
viragem e que talvez não amanhã mas um dia destes aparecerá outra coisa
qualquer que faça com que esse nosso actual prazer de sentir correr a água pelo
corpo seja daqui a muitos anos objecto de saudosa recordação tal como eu fiz
agora?
Daí a aceitação neste plano, mas só neste plano e nos
aspectos com ele relacionados dentro dos mesmos princípios lógicos, da frase de
Virgílio na Eneida, carpe diem quam
minimum credula postero, «aproveita o dia, confiando o mínimo possível no
futuro». O mínimo possível do futuro não é todo o futuro, como é claro, é só o
mínimo...