Pequena Nota
Já o tenho escrito
várias vezes, foi o primeiro texto que organizei a nível individual sobre o
concelho de Alcoutim, mais propriamente compilando pequenos textos que foram
publicados na imprensa regional e diária.
Também este escrito
foi englobado com mais palavra, menos palavra, no meu trabalho, “Alcoutim,
Capital do Nordeste Algarvio (subsídios para uma monografia)” publicado em
1985.
Parece que foi ontem, mas já se passaram 39 anos!
Depois disso já se tem
escrito mais aqui e ali que vem enriquecer o conhecimento sobre esta grande
figura.
Entretanto, fui
recolhendo aquilo que me tem sido possível e que se encontra em fichas
dispersas, mas que pretendo um dia, se tiver saúde para isso, vir a publicar
noutro texto onde se aproveitará, naturalmente, aquilo que aqui escrevi e
noutro artigo igualmente publicado no Jornal do Algarve e que já incluí neste espaço
na rubrica Ecos da Imprensa.
Como sempre acontece,
é transcrito integral.
JV
(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 10 DE MARÇO DE
1973)
Não conheci pessoalmente o Dr. João Francisco Dias, mas
retenho na memória que a primeira indicação que tive da vila de Alcoutim,
foi-me dada a trezentos e tal quilómetros de distância e da seguinte maneira:
“Olhe, teve um médico-cirurgião excepcional, depois do seu falecimento, aquilo
morreu”.
A minha curiosidade ficou espicaçada e logo que tomei
contacto com esta abandonada vila, que hoje podia ser considerada uma “princesa
do Guadiana” se para ela se voltassem os olhos dos “fabricantes de turismo”
servindo de complemento (tubo de escape) ao superlotado turismo do litoral
algarvio, tentei confirmar aquela primeira e única informação. Sem dúvida que
as palavras do meu informador correspondiam à realidade. Tomei assim uma
admiração especial pelo ilustre clínico e procurei organizar uma pequena
“biografia”, alicerçada em recortes de jornais e em informações colhidas junto
deste povo que o recorda com tanta saudade.
Lembrá-lo, na passagem do 18º aniversário do seu
falecimento, representa uma singela homenagem de quem, não o tendo conhecido pessoalmente,
mantém pelo seu nome grande admiração.
Monte da Corte Velha, freguesia de Odeleite, concelho de Casto Matim. Foto de JV, 1974 |
Nasceu no dia 22 de Novembro de 1898, em Corte Velha , freguesia
de Odeleite, concelho de Castro Marim. Fez os preparativos no Liceu de Faro,
onde foi brilhante aluno. Formou-se em medicina, na Universidade de Coimbra em
1927. Convidado para assistente naquela Faculdade, preferiu dedicar-se à vida
dura e pouco rendosa da medicina rural e instalou-se em Alcoutim. (1) Por deliberação da Câmara Municipal de 27
de Setembro de 1934, tomou posse do lugar de médico municipal do 1º partido,
com sede nesta vila. Aceite como irmão da Santa Casa da Misericórdia, é
escolhido para Provedor, funções que exerceu durante vinte e três anos, até ao
seu falecimento.
Médico-cirurgião muito sabedor e hábil, dotado de grandes
qualidades de trabalho e de um bondosíssimo coração, o seu nome logo conquistou
nomeada que se estendeu por todo o Baixo-Alentejo e pelo Algarve, atraindo
doentes de vários pontos do País e transformando a pequena vila das margens do
Guadiana, num centro médico-cirúrgico de considerável importância. (2)
Alcoutim, tornou-se a vila-hospital , sendo ele médico e
cirurgião único. (3)
Antigo Hospital da Misericórdia. Foto JV |
Trabalhava de dia e de noite, minorando o sofrimento dos
seus semelhantes. Durante os meses de Verão, em volta da sua clínica, pairava
um arraial de gente de todos os recantos de Portugal, à espera da sua vez. Não
eram iludidos ou explorados – aos pobres, dava-lhes roupas, medicamentos e
algumas vezes importâncias em dinheiro para atenuar as prementes dificuldades
da sua situação. Sua esposa, secundava-o nesta obra de caridade. Fez de
Alcoutim uma terra conhecida. . (4)
Este médico fazia da sua vida um verdadeiro apostolado. Não
cuidava de saber quem eram os doentes, seus meios de fortuna, se podiam ou não,
quando ou como podiam pagar. Eram sempre tratados quaisquer que fossem as suas
condições sociais ou económicas. (5) Sem meios materiais
convenientes, conseguiu fazer do seu hospital, que fundou, um centro conhecido
de cirurgia em que operava, anestesiava e ajudava, isto é, por vezes via-se na
necessidade de fazer todo o trabalho de uma equipa de cirurgiões. (6)
Operou aqui ao estômago, coisa que ainda não se tinha feito
em qualquer ponto do Algarve. (7) Obteve sólida reputação, a ponto
de virem consultá-lo muitos enfermos de terras distantes. (8)
Era vulgar, sempre que havia alguém doente e quase
desenganado dos médicos e da medicina, perguntar-se: “Já consultou o médico de
Alcoutim?” Se o infeliz que o procurava não tinha recursos também se ouvia logo
a habitual sentença: “não faz mal, vá a Alcoutim que o médico é bom e aos
pobres nada leva. (9)
Foi um médico de grande nomeada, que podia ter alargado a
sua fama ao País inteiro, se a modéstia e o amor às terras do Algarve o não
prendessem até à sua última morada. (10) Oitenta por cento da vila
vivia do seu nome. (11) Ele ficará sempre ligado a este concelho,
que tanto amou e tornou conhecido. Variadíssimos convites e influências
tentaram arrancá-lo daqui, mas nunca desejou sair da terra que, não lhe sendo
berço, considerou sua.
Casa onde viveu e faleceu o Dr. João Francisco Dias. Foto JV |
De uma vez, tendo sido contactado no sentido de ir
desempenhar funções para determinado lugar, nessa altura muito próspero e oferecendo-lhe
verba avultada, limitou-se a responder: “ Se eu quisesse ganhava o dobro disso
em Alcoutim”. Efectivamente assim era. O que acontecia é que o seu coração
bondoso, a uma simples lamúria, dizia:”Por falta de dinheiro não se deixa de
operar” E alguns, aproveitando a sua bondade, de abastados lavradores
alentejanos, faziam-se passar por pobretanas.
Doentes do concelho, não saíam daqui e com isso o município
beneficiou bastante. O livro municipal de saída de doentes, no seu tempo, quase
não teve movimento.
Por portaria publicada no Diário do Governo – II Série, de
11 de Setembro de 1940, subscrita pelo Ministro do Interior, foi louvado “pelo
seu devotado esforço profissional e por suas iniciativas de benemerência tão
bem conduzidas que já lhe permitiram exclusivamente por contribuição própria e
pela das forças locais, conseguir para a população desse concelho tão afastada
dos centros, possibilidades notáveis de auxílio aos doentes e inválidos”. (12)
Ainda em sua vida, o povo do concelho prestou-lhe homenagem, testemunhada por
uma lápide colocada na fachada principal do hospital.
Além de médico municipal e Subdelegado de Saúde, foi
presidente da Comissão Concelhia da União Nacional e mesmo da respectiva
comissão distrital, tendo o seu nome sido por mais de uma vez indigitado para a
chefia do Distrito. (13) As
actuais Festas da Vila, foram também uma criação sua, a que dedicou muito
carinho. No seu tempo tiveram grande esplendor.
Faleceu às primeiras horas da manhã de 8 de Março de 1955.
Para prestar-lhe os primeiros socorros, acorreram durante a noite, vários
colegas. (14) Vítima de congestão cerebral (15), na
véspera do dia em que morreu, ainda fez três operações e deu consultas a
quarenta doentes, ficando os restantes aguardando que depois do jantar,
continuasse até altas horas da noite, a sua obra benfazeja, como costumava nos
dias de maior afluência.
O funeral, após missa de corpo presente a que assistiram,
além de muitas autoridades, o governador civil, presidente da Câmara, delegado
de Saúde e muitos colegas (16) constituiu uma das mais imponentes manifestações
de pesar que no Algarve se tinham realizado, ali se tendo deslocado em cerca de
duas centenas de automóveis, alguns milhares de pessoas de todos os pontos do
Baixo-Alentejo, da raia de Espanha e do Algarve. (17)
No cemitério local foi proferida uma sentida e vibrante
oração, por um amigo íntimo e velho companheiro.
A população da vizinha Sanlúcar veio postar-se na praça,
junto ao rio, e ao longo das ruas, durante o cortejo fúnebre. De lá, estiveram
presente o pároco e o médico. (18)
Alcoutim, além de perder, com o seu desaparecimento, a
pessoa de maior destaque, perdeu para sempre o seu “grande” movimento, pois
todos os dias acorriam a esta vila, dezenas de pessoas dos pontos mais
longínquos, em busca de cura para os seus males e poucos eram os que deixavam a
vila sem irem curados ou na esperança de se curarem. (19)
Organizou-se uma comissão para erigir um busto que
perpetuasse a sua memória. De princípio a ideia circunscrevia-se apenas ao
concelho, mas em virtude das ofertas que chegaram de todos os pontos do País,
por onde a sua fama se espalhou, resolveu-se torná-la extensiva a todos os que
quisessem compartilhar do reconhecimento ao “médico dos pobres”, onde quer que
se encontrassem. (20)
Em 10 de Março de 1957, com a presença de numerosas
individualidades e muito povo, a grande massa anónima do concelho e das terras
vizinhas, que, com os olhos marejados de lágrimas, bem demonstrou a sua grande
emoção e a sua saudade por aquele que em vida foi o seu maior amigo
(21), foi descerrado o busto à memória do grande benemérito e médico alcoutinense.
Na sessão solene que se realizou, usaram da palavra vários
oradores que puseram em destaque as notáveis qualidades do homenageado. (22)
NOTAS
1.
A Voz de Loulé, de 16 de Março de 1955.
2.
Correio do Sul, 17 de Março de 1955
3.
Gazeta do Sul de 24 de Abril de 1955
4.
Diário do Alentejo, 24 de Março de 1955
5.
Jornal do Barreiro, 17 de Março de 1955
6.
A Voz de Loulé, 16 de Março de 1955
7.
Comércio do Poro, 16 de Julho de 1940
8.
Notícias do Algarve, 13 de Março de 1955
9. Diário de Lisboa de 8 de Abril de 1955
10.
Idem
11.
Idem
12.
Comércio do Porto, de 16 de Julho de 1940
13.
Correio do Sul, de 17 de Maio de 1955
14.
Idem
15.
Gazeta do Sul de 24 de Abril de 1955
16.
Folha de Domingo, 13 de Março de 1955
17.
Correio do Sul de 17 de Março de 1955
18.
Folha de Domingo de 13 de Março de 1955
19. Notícias do Algarve de 11 de Maio de 1956
20.
Diário de Lisboa de 28 de Janeiro de 1956
21. Diário de Lisboa de 11 de Março de 1957
´´
22.
O Século de 11 de Março de 1957