Amílcar Felício
Armando e Faustino saíram da pensão em Valenciennes cerca
das 10 horas da manhã, agradecendo à Senhora pelo simpático acolhimento e lá
partiam uma vez mais à boleia em direcção à Bélgica, praticamente do mesmo
sítio do dia anterior. Mas desta vez tinham tomado a decisão de saírem a uns
três ou quatro quilómetros da malfadada ponte aonde tinham sido interceptados
pelos guardas belgas, para a contornarem a uma distância de segurança razoável.
Não receavam nem os preocupava atravessar aqueles campos de
gelo a perder de vista, tanto mais que eram especialistas no desenrascanço em zonas desconhecidas e
em sobreviver com quase nada. Vinham ainda por cima de uma duríssima e bárbara
recruta, que tinha provocado inclusive várias mortes entre camaradas da
Companhia numa das recentes recrutas. Na realidade a sua “especialidade”
militar tinha sido precisamente “reconhecimento e informação”, um género de
comandos que iam à frente batendo terreno na 2a. Guerra Mundial e que os tinha
endurecido e espevitado o sentido de orientação nas zonas mais agrestes e
extravagantes.
Assim apenas pelo cheiro, desviaram-se uns bons quilómetros
da referida ponte/fronteira, percorrendo seguramente quase dez quilómetros por
extensos campos de gelo próprios para praticantes de esqui, passando com
cuidado por alguns postos de vigia sem guarda, possivelmente por as autoridades
belgas julgarem impossível atravessar a fronteira naquelas condições ou talvez
por já estarem desactivados, até decidirem que já tinham chegado à Bélgica
quando encontraram uma estrada. E depressa veriam confirmadas as suas
suspeitas.
Efectivamente quando Armando e Faustino saíram da estrada e
desceram uma pequena ravina para se limparem da sujidade da travessia daqueles
campos de gelo sem fim, comemorando a chegada à Bélgica com meio “Flamenguito”
cada um e que era tudo o que lhes restava
– um pequeno Queijo Flamengo com
uns cinco centímetros de diâmetro que se fabricava na altura em Portugal --
parava na berma da estrada junto a eles um guarda, que se fazia
transportar numa velha bicicleta a pedal.
Pela farda que envergava tratava-se de um guarda belga sem
qualquer dúvida, mas que era estruturalmente diferente daqueles com quem se
tinham confrontado no dia anterior, pois não existia por ali qualquer pinta de
raça ariana. Moreno, de estatura mediana, na casa dos 50 anos e já embarrigado
possivelmente por muitos anos de cerveja, falava francês ao contrário dos
outros. Era um guarda belga mas da Valónia francófona certamente, um belga
valão seguramente. Pediu-lhes os documentos e naturalmente Armando e Faustino
mostraram-lhe os únicos documentos que possuíam: os Bilhetes de Identidade.
Armando e Faustino andariam ainda uns bons quilómetros até
chegarem à cidade belga de Tournai. Chegados à cidade encontraram um grande
café/restaurante aonde entraram. Confirmaram com o dono que o dinheiro que lhes
restava, chegava para um copo de leite e pão com manteiga. Negociaram também
com ele, ajuda-lo no serviço de mesa do restaurante durante os jantares e na
lavagem da louça na cozinha a troco da comida e da dormida, visto já ser
bastante tarde para prosseguirem viagem para Bruxelas. O dono aceitou o desafio
e fecharam negócio.
Saboreavam assim a sua primeira refeição do dia e a
satisfação de terem mais uma noite garantida com algum conforto, ao mesmo tempo
que iam fazendo planos para o dia seguinte, quando se aproximou deles um rapaz
da mesma idade perguntando-lhes em português: “já percebi que também são
portugueses, com certeza que são desertores pois passam por aqui alguns. Eu
também sou português e estou a estudar aqui, pois é a única cidade que possui
engenharia têxtil. Vou todos os anos a Portugal e sei que aquilo por lá está
mal e há muita gente a “dar o salto” e assim, se tiverem problemas posso
ajuda-los!”
Encontrar um português naquele fim-do-mundo parecia-lhes a
taluda da Sorte Grande, ainda por cima disposto a ajudar! Armando e Faustino
agradeceram a gentileza, mas ao mesmo tempo informaram-no do compromisso que já
tinham assumido com o dono do restaurante. O novo amigo retorquiu: “não se
preocupem que eu costumo parar por aqui, falo com ele e resolvo o problema e
vocês podem vir para minha casa, comer e dormir descansados e amanhã de manhã
comem qualquer coisa antes de sair e vão à vossa vida. Têm é que ter cuidado e
fechar bem a porta à saída, pois nós saímos cedo para a Universidade”!
E lá foram os 3 até à casa do novo amigo aonde viviam mais 2
ou 3 estudantes portugueses. Era a descoberta para Armando talvez do sentimento
mais nobre e belo que os homens foram adquirindo desde a alvorada da humanidade
e que julgava impossível existir de uma forma tão desenvolvida e concentrada no
mundo do individualismo exacerbado e do desenrasca que conhecia.
Tratava-se de facto de um profundo e genuíno sentimento de
solidariedade disseminado numa comunidade – possivelmente devido ao seu
isolamento num mundo estranho e adverso – como Armando viria a constatar vezes
sem conta e como nunca mais viria a experimentar noutros campeonatos da sua
vida. Parecia-lhe que vivia num outro mundo, aonde os homens se tinham tornado
pessoas!
Sairiam da casa do novo amigo a meio da manhã do dia
seguinte com a precaução de deixar tudo em ordem, partindo de Tournai à boleia
para Bruxelas. Chegaram a casa do contacto que possuíam em Bruxelas já ao fim
da tarde, quase a horas de jantar. Era uma casa de um estudante de Cinema, que
recebia na altura a visita de uma jovem irmã enfermeira para matar saudades e
que trabalhava à noite como taxista para sobreviver e de um nacionalista
angolano branco -- o Manel -- que era empregado de hotel.
Cidade belga de Tournai |
O Manel era uma figura castiça e um homem solidário. Filho
de mãe negra, cabelos ruivos e lábios grossos de africano, não recusava fora
das horas de trabalho qualquer tipo de biscates que se possa imaginar desde
modelo para escultores a figurante de teatro, limpeza de escritórios e tudo o
mais que lhe aparecesse, para sobreviver e apoiar economicamente o movimento.
Acabaria por desistir da vida já na 2ª metade dos anos setenta, possivelmente
desiludido com os amigos angolanos de então e com o caminho que os diversos movimentos
trilhavam.
Na realidade os compatriotas que o acompanhavam na altura
eram homens com muita prosápia e calculismo. Negros, alguns deles
universitários formados em Ciência Política certamente para acautelar o futuro,
participariam desde logo nos Acordos de Alvor para marcar terreno
possivelmente. Mudariam de “cor” como o camaleão ainda antes daqueles Acordos,
adaptando-se posteriormente à carruagem do poder como uma luva, vindo a ocupar
lugares de destaque no panorama político angolano. O Manel era diferente.
Embora universitário também, pertencia à nata de idealistas da geração de
sessenta, àqueles que queriam de facto mudar o mundo em troca de nada.
Mas aquela casa era sobretudo um local de convívio de
portugueses e de angolanos que ali se juntavam para falar de Portugal e de
Angola. Uma verdadeira República de Ideias aonde se juntava gente interessante
com as mais variadas experiências políticas que vinha da Holanda, de Paris e
até de passagem de Portugal. Era também o ponto de encontro para muitos dos
milhares de portugueses residentes em Bruxelas.
Palma Inácio |
Alguns dos antigos amigos de Palma Inácio contavam as suas
aventuras rocambolescas, tais como a fuga a pé com a GNR no seu encalço depois
de uma operação fracassada, desde a Covilhã até ao Alentejo de aonde um ou
outro era natural. Ou a entrada de um “Comando” em Portugal para determinada
acção, em que um dos elementos com setenta e tal anos e que estava exilado há
já 2 ou 3 décadas, fazia questão em participar nem que fosse em última análise
para ir morrer na luta em
Portugal. O “Comando” com a sua mentalidade “naíf” e
bonacheirona não conseguiria resistir a tão sentido e nobre apelo e aceitaria a
sua participação. Simplesmente não contavam com a bronquite que o Senhor tinha
e que às 2 ou 3 da manhã no silêncio da noite com aquele seu
ruuuhhh....ruuuhhh....ruuuhhh! sinalizaria a sua presença à distância,
colocando em risco a própria missão!
Armando e Faustino mal tinham chegado ao seu porto de abrigo
de Bruxelas, já o Manel convidava Armando para ir ao Supermercado comprar um
frango para o jantar, para começar a aprender a mexer-se na cidade. Durante o
jantar falaram dos seus “planos suecos”, mas combinaram que teriam que ficar
por ali uma ou duas semanas para carregar baterias e ganhar algum dinheiro para
os outros 2000
quilómetros que ainda faltavam palmilhar, pois estavam
precisamente a meio caminho do objectivo. “Fiquem o tempo que quiserem”
disseram-lhe os donos da casa, pondo-os completamente à vontade.
Os frequentadores da casa começariam a aparecer pouco
depois, pois a notícia de novos recém-chegados espalhava-se depressa. Uns
vinham para conversar um pouco e saber novidades outros até para jantar, o que
era uma prática normal. Os angolanos estavam mais interessados em conhecer
eventuais novas estratégias militares e como era vista a situação angolana, do
ponto de vista do inimigo. Da parte dos portugueses era a curiosidade em saber
e trocar notícias sobre Portugal que lhes interessava, pois a saudade
saltava-lhes dos olhos de quase todos, uma vez que andavam por ali há já alguns
anos. Naturalmente que a cavaqueira se prolongaria pela noite dentro. Todos se
prontificariam amavelmente a ajudar os novos “residentes”.
Bruxelas |
Quanto a trabalho informaram não ser difícil arranjar
trabalho de imediato e até poderiam começar a trabalhar já a partir do dia
seguinte, pois bastava ir à Universidade de Bruxelas que existia lá um departamento
que tinha sempre uma lista considerável de trabalhos para os estudantes que
precisassem. Por outro lado, se porventura decidissem ficar em Bruxelas,
ficariam desde já a saber que só o poderiam fazer como refugiados da ONU como
todos eles aliás, pois a emigração portuguesa estava proibida há já alguns
anos, visto que a Bélgica já tinha ultrapassado o défice em homens que a 2ª
Guerra Mundial lhe tinha causado.
Dos presentes era o Mário quem tinha maior disponibilidade
para os acompanhar à Universidade no dia seguinte. Armando e Faustino começavam
a simpatizar com aquela gente e estavam a gostar das primeiras impressões e
daquele ambiente. Parecia-lhes gente interessante que não tinham deitado a
toalha ao chão e que davam um sentido positivo à vida. E por ali ficaram no seu
porto de abrigo de Bruxelas, dormindo com algum conforto mais uma noite
descansados e preparando-se para começar a trabalhar no dia seguinte.
(CONTINUA)