terça-feira, 23 de outubro de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXXVIII




Escreve

Daniel Teixeira

 
O CONCEITO DE VIZINHANÇA

Algumas vezes tenho dito para mim mesmo ou a outros que a vida na cidade precisava de uma injecção de montanheirismo para que se tornasse um pouco ou muito mais humana nos relacionamentos. Não é que as pessoas sejam profundamente más nas cidades, naquele sentido diabólico e isto visto no sentido geral, mas existe um elevado grau de indiferença entre as pessoas, muitas vezes escudada na ideia de que «se não quer meter na vida dos outros» ou mesmo mais egoisticamente que se têm já problemas suficientes que são nossos para estar a carregar também os problemas dos outros, e mais coisas assim deste género.

Certo que a vida, na cidade ou no campo, é complicada e complicou-se com aquilo a que se chama de evolução mas o campo tem essa grande vantagem de as pessoas se aproximarem mais, tal como nas antigas relações de vizinhança que havia nas cidades e que eu sempre atribui aos ainda latentes efeitos da transição campo / cidade: ou seja e na minha perspectiva, as relações de vizinhança tal como as conhecemos nas cidades são tanto mais próximas quanto mais próxima for a chegada do campo.

Daí que hoje se recorde com alguma saudade os velhos tempos em que nas noites de calor as pessoas se sentavam às suas portas e se juntavam em círculos, umas vezes indo para um grupo mais abaixo na rua outras vezes vindo para um grupo mais acima ou para o seu, quer dizer, para a frente da sua porta, numa permuta que permitia um conhecimento sempre em dia dos eventos, umas vezes simpáticos, outras vezes não, mas normalmente de pouca duração no seu remoer.

Todos eles, os bons e os maus acontecimentos eram tratados à flor da pele, a titulo informativo, com alguns resquícios de aprovação ou desaprovação, mas tudo ligeiro que eu me lembre. As cadeiras, leves e práticas, para esse efeito eram facilmente transportáveis e havia sempre assunto para conversar e os miúdos, assim como eu era na altura, brincavam ali na rua, pouco distantes na sua grande parte, ou dando voltas a quarteirões em corridas mas por pouco tempo sempre.
 
Poiais de Alcaria Alta. Foto JV
No campo as coisas não eram bem assim, até porque talvez não precisassem de ser: as pessoas tinham, em Alcaria Alta, por exemplo, laços de família, em primeiro, segundo ou terceiro grau em grandes percentagens sobre o contingente geral e praticamente não havia informação para cruzar até porque o meio era pequeno e tudo se sabia em poucos minutos. Esta pequena diferença, que junta duas formas de estar, uma a informação imediata outra a informação mediata, era já uma característica do campo e da cidade e pré-anunciava já aquilo que se vive hoje em grandes parcelas das cidades.

Embora pudesse ser um resquício da mentalidade campesina, o tal juntar de cadeiras que aqui serve só de exemplo, era já ao mesmo tempo o meio possível, um meio intermédio, uma adaptação...por outras palavras, a prática existia mas o espírito afastava-se cada vez mais. Hoje sabemos o que se passa nas cidades, eu mesmo morei num edifício com oito inquilinos onde levei talvez cinco anos para os conhecer todos. Podemos dizer que a culpa era da situação e não exclusivamente minha: não posso tomar conhecimento com quem não se dá a conhecer e vice-versa.

Portanto e resumindo, por aquilo que sei as pessoas nos campos também se afastam entre si muito mais do que se uniam antes. Talvez a «partidarite» tenha irrompido também em terreno relativamente virgem e tenha também contribuído mas a própria relação mesclada «campo - cidade» não conserva os fortes alicerces mais tradicionais. Assim, e mais havia para dizer (muito mais) este problema acaba para mim por ser um problema global com o qual temos que tentar viver.

Ainda recentemente participei em iniciativas destinadas a contribuir para o renascimento e reavivar pelo menos basilar do espírito de vizinhança nos bairros urbanos e embora se possa dizer que não foi um «fiasco» esteve muito longe nos serus resultados daquele mínimo de adesão que seria expectável. Será triste ter de dizer isto mas mais do que procurar soluções utópicas que só nos desgastam emocionalmente, o melhor mesmo é tentar aligeirar os efeitos deste problema que contrariamente àquilo que cultivei durante anos, não é uma questão que se possa dividir entre montanheiros e citadinos. Trata-se de um problema humano, mundial, pelo que vou lendo noutros quadrantes geográficos.

Nós é que temos que nos adaptar à chamada evolução e saber bem que o crescimento tem custos misteriosos e incalculados.