Escreve
Amílcar Felício
O REGRESSO: PORTUGAL
TINHA MUDADO, ALCOUTIM ESTAVA DIFERENTE...
O 25 de Abril tinha aberto as portas do regresso a Armando e
a Faustino. Contudo, apesar dos indicadores positivos que chegavam de Portugal
sobre as movimentações militares e o apoio popular maciço, o que é facto é que
existia uma certa pedra no sapato numa grande parte da comunidade portuguesa
como referimos na última crónica e assim, algumas centenas de elementos mais
activos decidiram reunir-se na Universidade Livre de Bruxelas, para debater
colectivamente a situação e definir o que fazer.
Foi uma assembleia super-agitada e cheia de emoção. No meio
de intervenções entusiastas e exaltadas que reflectiam naturalmente o momento
de euforia que se vivia, lá aparecia uma ou outra voz mais ponderada tentando
trazer a assembleia à realidade. No final concluiriam ser necessário alguma
prudência até que a situação ganhasse maior clareza e consistência para
regressarem, pois poderia tratar-se eventualmente de uma simples mudança de
moscas. Constatava-se de facto que havia gente suspeita quer no Movimento, quer
sobretudo por detrás dele.
Nada que não tivesse já ocorrido no 28 de Maio de 1926,
aonde lá andavam também jovens tenentes radicais da esquerda do Partido Radical
Republicano a lutar contra os “racha-sindicalistas” do hegemónico e centrista
Partido Democrático de Afonso Costa, numa amálgama de interesses que seriam
empalmados pela direita, conduzindo Portugal a quase 50 anos de ditadura do Estado
Novo.
Os amigos mais chegados de Armando decidiriam contudo enviar
a Portugal uma “emissária” para se inteirar ao vivo e tomar o pé à situação,
junto de alguns amigos bem informados que estavam no país. Quando regressou,
dava a situação como praticamente irreversível aconselhando os amigos a
começarem a fazer as malas. Mas aqueles quase 5 anos em Bruxelas que agora se
aproximavam do fim, tinham-lhes parecido uma vida e tinham-lhes dado a medida
exacta do quanto gostavam de Portugal! Aquilo parecia um bichinho que estava
sempre a roer lá dentro!
Depois de algumas hesitações naturais, Armando e Faustino
embora de costas voltadas lá iam sabendo um do outro, até que lá se decidiram
regressar finalmente. Mas desta vez já não fizeram a viagem juntos. Regressariam
naturalmente separados no tempo e já com amigos diferentes. Contudo para não
variar, Armando ainda apanharia um valente susto em Paris, quando pediram pelo
altifalante a evacuação urgente do comboio Paris-Lisboa, pois havia um alerta
de bomba. Faria a viagem de regresso tão sobressaltado como há 5 anos atrás
quando tinha ido – parecia ser a sua sina – com um tampão nos ouvidos por causa
do eventual estrondo da bomba, que afinal de contas não detonaria visto ter-se
tratado apenas de um falso alarme.
Armando encontrou Portugal num frenesim, aonde não havia
sequer tempo para almoçar nem para jantar! Às vezes aquilo assemelhava-se a um
vulcão prestes a implodir. Havia cenas então que lhe lembravam os filmes do
Eisenstein ao contrário, pois parecia que eram as massas trabalhadoras que
tinham saltado do ecrã para a vida real em luta pelos seus interesses e
querendo tomar em mãos, as rédeas do seu próprio destino.
Por outro lado a sua família mais chegada tinha abandonado definitivamente Alcoutim, há já alguns anos. Assim, quando lá voltou já os cravos de Abril murchavam há muito. Armando faria apesar disso o caminho da memória ao “seu território sagrado” – guardião do seu pequeno mundo de afectos de infância e da juventude – cheio de emoção, levando na bagagem a lembrança dos belos tempos passados no meio daquela gente boa que ia novamente abraçar.
Mas verdade seja dita que também levava alguma curiosidade
nas algibeiras, pois tinha-lhe constado que os seus conterrâneos estavam
profundamente divididos ideologicamente, com listas negras de um lado e do
outro dizia-se à boca pequena. Armando não conseguia imaginar a sua gente
chegar a tais níveis de agressividade, numa região que lhe parecia uma “zona
branca” apesar de encostada à “zona vermelha” latifundiária alentejana de quem
sofria bastante influência cultural, sobretudo ao nível dos cantares, do vestir
e da comezaina. Mas era tudo...
De facto nunca tinha tido conhecimento de qualquer tipo de
conflitos sociais no Concelho ao longo de todo o século XX, naturalmente por se
tratar de uma região de pequena propriedade rural e de tentativas embrionárias
de pequenas indústrias que não passariam disso mesmo, aonde as classes estavam
pouco extremadas e os interesses sociais pouco divergiam, chegando-se no máximo
a uma pequena burguesia popular comercial e de serviços e a uma ou outra
família de classe média rural ou citadina, pouco convencidas do seu estatuto e
com tendência a cair pela escada abaixo.
Contudo, mal abraçava ao fim de tantos anos com a emoção do
regresso um dos velhos companheiros de tanta farra na juventude e já este o
avisava logo à chegada: “sabemos que és comunista, mas podes andar à vontade
pela Vila que ninguém te faz mal, pois sabemos que és um comunista bom”!
Armando lembrando os tempos passados e o seu Alcoutim de antigamente ficou
petrificado, pois estava longe de imaginar uma recepção daquelas. Mas do mal ao
menos, afinal de contas era considerado um “comunista bom” o que já não deveria
ser nada mau pela tolerância que demonstrava! Mas dava para perceber a divisão
que existia realmente entre os seus conterrâneos!
Ainda que não soubesse lá muito bem o que é que era aquilo
de ser um “comunista bom”, o facto é que a magana da frase intrigava-o e
vinha-lhe martelar a cabeça vezes sem conta: o que será que eles querem dizer
com aquilo de ser um “comunista bom”, será que eles pensam que uns são-no pela
razão e por amor e outros apenas por ódio, inveja e vingança, por desconhecerem
a revolta contida naqueles para quem a vida foi madrasta, calcando-os e
espezinhando-os sem dó nem piedade como uns farrapos?
Mas Armando lá ia percorrendo os cantos à Vila em busca das
suas memórias, escondidas numa casa derrubada mais aqui ou numa cara já
enrugada mais adiante, sem dar grande importância àqueles “conselhos”, falando
com todos e a todos respeitando naturalmente. Curiosamente sentia também o
respeito de todos, apesar do rótulo que lhe tinham colado sem saber bem porquê,
pois nunca tinha mexido uma palha no seu “quintal” alcoutenejo. Mas o mais interessante
era que vinham desabafar com ele, fazendo-lhe queixas uns dos outros. Armando
tentava arranjar uma explicação para tanto ódio acumulado naquela gente tão
pacata e colocava a hipótese da existência de algum radicalismo inicial ou de
contradições mal resolvidas entre eles, pois tinha-lhe constado à distância ter
existido um ou outro saneamento durante o PREC!
Vinha-lhe à memória as estórias trágicas das matanças que
tinha ouvido em criança sobre a Guerra Civil em Sanlúcar e era-lhe fácil
perceber a linha tão ténue que separa a lucidez da loucura, a vida pacata e
normal da tragédia. Ficava arrepiado só de pensar naquelas coisas! Era difícil
ser padre naquela freguesia. Armando sentia-se profundamente triste por ver os
seus conterrâneos chegar àquele patamar de ódio, quando nada justificava aquela
separação dada a similitude dos seus interesses e o seu inimigo ser basicamente
o mesmo.
A força que as ideologias têm caramba (!) – pensava ele para
os seus botões-- e ainda andam para ai uns quantos “teóricos” da treta a
proclamar e a escrever livros sobre “o fim das ideologias” (!). Mas a verdade é
que já não se reconhecia nem se sentia confortado naquele seu Alcoutim! Era-lhe
penoso conviver naquele ambiente de cortar à faca e na verdade regressou a Lisboa
um pouco desiludido e tristonho.
Em Lisboa Armando e Faustino embora não se falassem,
continuavam a ter notícias um do outro. Faustino tinha prosseguido e
“aprofundado” o seu percurso iniciado em Bruxelas e tinha-se deixado encantar
em toda a linha pelos Cantos de Sereia da Sociedade de Consumo, naquilo que ela
tem de mais perverso e mais degradante para a dignidade humana que se possa
imaginar. Um dia foi a casa da mãe visitá-la. Pediu-lhe para ir à rua
comprar-lhe um maço de cigarros. Quando a mãe voltou encontrou-o enforcado.
Possivelmente foi a maneira mais simples que Faustino
engendrou para regressar de novo ao útero materno e recomeçar uma nova vida a
partir dali. Um caso que dá que pensar. Um “case-study” para psicólogos dirão
outros mais eruditos. Era mais uma vida desestruturada, que tinha sido desviada
do seu curso normal e que Salazar ceifava ao retardador, entre tantas outras.
Alcoutim visto do Cerro da Castanha. Foto JV, 1973 |
Aliás, na sua cabeça já o tinha desenhado há muito:
trabalhador, pois as coisas deixariam de cair do céu aos trambolhões para
alguns e com a dignificação que o trabalho – verdadeiro responsável da transformação
do macaco em homem – merece, solidário que olhasse o mundo para além do seu
próprio umbigo, livre de qualquer amarra económica ou social e até do medo de
si próprio, a pensar pela sua própria cabeça libertando toda a sua imaginação
criadora e sem a espinha e a razão dobradas perante nada nem ninguém,
consciente de que com as suas mãos e a sua inteligência era o bem mais precioso
e extraordinário deste mundo e era a ele que tudo produz, a quem competia
organizar as coisas da sociedade à sua maneira.
Mas apesar dos seus sonhos e ideais Armando não se
considerava um idealista na verdadeira acepção da palavra, nem um filósofo como
o pai lhe chamava na juventude, pois tinha fortes convicções materialistas
partindo do princípio de que uma boa terra bem trabalhada e adubada, produzirá
sempre boas e grandes colheitas. E afinal de contas não será sempre o homem –
mais coisa menos coisa – um produto do meio e das suas raízes e circunstâncias?
Contudo, não seria apenas a agricultura tradicional a ser
abandonada depois do 25 de Abril. Também a “agricultura moderna” que começou a
ser cultivada na altura por aqui e por ali, seria posta de lado aos poucos e
poucos havendo cada vez menos “agricultores” a pratica-la. Daí que as “colheitas”
sejam cada vez mais miseráveis. Mas ficaria sempre amigo daquele homem
“primitivo e pré-histórico” com quem conviveu anos de sonho e em sonho. Possivelmente
com os outros que andam por aí também não se entenderia lá muito bem e talvez
não conseguisse ser feliz, sabe-se lá...
Duas Notas Finais:
1) Nem todos os contos
poderão ter sempre um final feliz e acabar da mesma maneira: “casaram, tiveram
muitos meninos e foram felizes para sempre”, senão quem é que ainda tinha
pachorra para ler um conto nos tempos que correm?
2) Este conto é
dedicado por inteiro ao Amigo Nunes, pois sem este espaço caseiro, intimista e
de liberdade absoluta chamado Alcoutim Livre, seguramente que nunca teria visto
a luz do dia. Armando se existisse, certamente de que também estaria de acordo.