quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Lisboa - Paris por cinco contos de réis [8]



Escreve

Amílcar Felício




O REGRESSO: PORTUGAL TINHA MUDADO, ALCOUTIM ESTAVA DIFERENTE...

O 25 de Abril tinha aberto as portas do regresso a Armando e a Faustino. Contudo, apesar dos indicadores positivos que chegavam de Portugal sobre as movimentações militares e o apoio popular maciço, o que é facto é que existia uma certa pedra no sapato numa grande parte da comunidade portuguesa como referimos na última crónica e assim, algumas centenas de elementos mais activos decidiram reunir-se na Universidade Livre de Bruxelas, para debater colectivamente a situação e definir o que fazer.

Foi uma assembleia super-agitada e cheia de emoção. No meio de intervenções entusiastas e exaltadas que reflectiam naturalmente o momento de euforia que se vivia, lá aparecia uma ou outra voz mais ponderada tentando trazer a assembleia à realidade. No final concluiriam ser necessário alguma prudência até que a situação ganhasse maior clareza e consistência para regressarem, pois poderia tratar-se eventualmente de uma simples mudança de moscas. Constatava-se de facto que havia gente suspeita quer no Movimento, quer sobretudo por detrás dele.

Nada que não tivesse já ocorrido no 28 de Maio de 1926, aonde lá andavam também jovens tenentes radicais da esquerda do Partido Radical Republicano a lutar contra os “racha-sindicalistas” do hegemónico e centrista Partido Democrático de Afonso Costa, numa amálgama de interesses que seriam empalmados pela direita, conduzindo Portugal a quase 50 anos de ditadura do Estado Novo.

Os amigos mais chegados de Armando decidiriam contudo enviar a Portugal uma “emissária” para se inteirar ao vivo e tomar o pé à situação, junto de alguns amigos bem informados que estavam no país. Quando regressou, dava a situação como praticamente irreversível aconselhando os amigos a começarem a fazer as malas. Mas aqueles quase 5 anos em Bruxelas que agora se aproximavam do fim, tinham-lhes parecido uma vida e tinham-lhes dado a medida exacta do quanto gostavam de Portugal! Aquilo parecia um bichinho que estava sempre a roer lá dentro!

Depois de algumas hesitações naturais, Armando e Faustino embora de costas voltadas lá iam sabendo um do outro, até que lá se decidiram regressar finalmente. Mas desta vez já não fizeram a viagem juntos. Regressariam naturalmente separados no tempo e já com amigos diferentes. Contudo para não variar, Armando ainda apanharia um valente susto em Paris, quando pediram pelo altifalante a evacuação urgente do comboio Paris-Lisboa, pois havia um alerta de bomba. Faria a viagem de regresso tão sobressaltado como há 5 anos atrás quando tinha ido – parecia ser a sua sina – com um tampão nos ouvidos por causa do eventual estrondo da bomba, que afinal de contas não detonaria visto ter-se tratado apenas de um falso alarme.

Armando encontrou Portugal num frenesim, aonde não havia sequer tempo para almoçar nem para jantar! Às vezes aquilo assemelhava-se a um vulcão prestes a implodir. Havia cenas então que lhe lembravam os filmes do Eisenstein ao contrário, pois parecia que eram as massas trabalhadoras que tinham saltado do ecrã para a vida real em luta pelos seus interesses e querendo tomar em mãos, as rédeas do seu próprio destino.


Por outro lado a sua família mais chegada tinha abandonado definitivamente Alcoutim, há já alguns anos. Assim, quando lá voltou já os cravos de Abril murchavam há muito. Armando faria apesar disso o caminho da memória ao “seu território sagrado” – guardião do seu pequeno mundo de afectos de infância e da juventude – cheio de emoção, levando na bagagem a lembrança dos belos tempos passados no meio daquela gente boa que ia novamente abraçar.

Mas verdade seja dita que também levava alguma curiosidade nas algibeiras, pois tinha-lhe constado que os seus conterrâneos estavam profundamente divididos ideologicamente, com listas negras de um lado e do outro dizia-se à boca pequena. Armando não conseguia imaginar a sua gente chegar a tais níveis de agressividade, numa região que lhe parecia uma “zona branca” apesar de encostada à “zona vermelha” latifundiária alentejana de quem sofria bastante influência cultural, sobretudo ao nível dos cantares, do vestir e da comezaina. Mas era tudo...

De facto nunca tinha tido conhecimento de qualquer tipo de conflitos sociais no Concelho ao longo de todo o século XX, naturalmente por se tratar de uma região de pequena propriedade rural e de tentativas embrionárias de pequenas indústrias que não passariam disso mesmo, aonde as classes estavam pouco extremadas e os interesses sociais pouco divergiam, chegando-se no máximo a uma pequena burguesia popular comercial e de serviços e a uma ou outra família de classe média rural ou citadina, pouco convencidas do seu estatuto e com tendência a cair pela escada abaixo.

Contudo, mal abraçava ao fim de tantos anos com a emoção do regresso um dos velhos companheiros de tanta farra na juventude e já este o avisava logo à chegada: “sabemos que és comunista, mas podes andar à vontade pela Vila que ninguém te faz mal, pois sabemos que és um comunista bom”! Armando lembrando os tempos passados e o seu Alcoutim de antigamente ficou petrificado, pois estava longe de imaginar uma recepção daquelas. Mas do mal ao menos, afinal de contas era considerado um “comunista bom” o que já não deveria ser nada mau pela tolerância que demonstrava! Mas dava para perceber a divisão que existia realmente entre os seus conterrâneos!

Ainda que não soubesse lá muito bem o que é que era aquilo de ser um “comunista bom”, o facto é que a magana da frase intrigava-o e vinha-lhe martelar a cabeça vezes sem conta: o que será que eles querem dizer com aquilo de ser um “comunista bom”, será que eles pensam que uns são-no pela razão e por amor e outros apenas por ódio, inveja e vingança, por desconhecerem a revolta contida naqueles para quem a vida foi madrasta, calcando-os e espezinhando-os sem dó nem piedade como uns farrapos?

Mas Armando lá ia percorrendo os cantos à Vila em busca das suas memórias, escondidas numa casa derrubada mais aqui ou numa cara já enrugada mais adiante, sem dar grande importância àqueles “conselhos”, falando com todos e a todos respeitando naturalmente. Curiosamente sentia também o respeito de todos, apesar do rótulo que lhe tinham colado sem saber bem porquê, pois nunca tinha mexido uma palha no seu “quintal” alcoutenejo. Mas o mais interessante era que vinham desabafar com ele, fazendo-lhe queixas uns dos outros. Armando tentava arranjar uma explicação para tanto ódio acumulado naquela gente tão pacata e colocava a hipótese da existência de algum radicalismo inicial ou de contradições mal resolvidas entre eles, pois tinha-lhe constado à distância ter existido um ou outro saneamento durante o PREC!
Vinha-lhe à memória as estórias trágicas das matanças que tinha ouvido em criança sobre a Guerra Civil em Sanlúcar e era-lhe fácil perceber a linha tão ténue que separa a lucidez da loucura, a vida pacata e normal da tragédia. Ficava arrepiado só de pensar naquelas coisas! Era difícil ser padre naquela freguesia. Armando sentia-se profundamente triste por ver os seus conterrâneos chegar àquele patamar de ódio, quando nada justificava aquela separação dada a similitude dos seus interesses e o seu inimigo ser basicamente o mesmo.

A força que as ideologias têm caramba (!) – pensava ele para os seus botões-- e ainda andam para ai uns quantos “teóricos” da treta a proclamar e a escrever livros sobre “o fim das ideologias” (!). Mas a verdade é que já não se reconhecia nem se sentia confortado naquele seu Alcoutim! Era-lhe penoso conviver naquele ambiente de cortar à faca e na verdade regressou a Lisboa um pouco desiludido e tristonho.

Em Lisboa Armando e Faustino embora não se falassem, continuavam a ter notícias um do outro. Faustino tinha prosseguido e “aprofundado” o seu percurso iniciado em Bruxelas e tinha-se deixado encantar em toda a linha pelos Cantos de Sereia da Sociedade de Consumo, naquilo que ela tem de mais perverso e mais degradante para a dignidade humana que se possa imaginar. Um dia foi a casa da mãe visitá-la. Pediu-lhe para ir à rua comprar-lhe um maço de cigarros. Quando a mãe voltou encontrou-o enforcado.

Possivelmente foi a maneira mais simples que Faustino engendrou para regressar de novo ao útero materno e recomeçar uma nova vida a partir dali. Um caso que dá que pensar. Um “case-study” para psicólogos dirão outros mais eruditos. Era mais uma vida desestruturada, que tinha sido desviada do seu curso normal e que Salazar ceifava ao retardador, entre tantas outras.

Alcoutim visto do Cerro da Castanha. Foto JV, 1973
Quanto a Armando, os anos foram passando e acumulando frustrações por ver Portugal afastar-se cada vez mais dos seus ideais de juventude. Armando por uma questão de formação tinha apostado sempre nos mais fracos e perdedores, mas depois de cada aposta perdida naquele tempo, lá por dentro ficava-lhe sempre a sensação de que ganhava sempre mais qualquer coisa. Por graça costumava desabafar com um ou outro amigo mais chegado, um dito muito usado por uma tia sua: “a mim calha-me sempre dançar com a mais feia”, mas deixa lá que haveremos de constituir o melhor par quando o baile acabar! Aqui para a gente que ninguém nos ouve: Armando tinha tido a esperança de um dia ver nascer no seu país um “homem novo”!

Aliás, na sua cabeça já o tinha desenhado há muito: trabalhador, pois as coisas deixariam de cair do céu aos trambolhões para alguns e com a dignificação que o trabalho – verdadeiro responsável da transformação do macaco em homem – merece, solidário que olhasse o mundo para além do seu próprio umbigo, livre de qualquer amarra económica ou social e até do medo de si próprio, a pensar pela sua própria cabeça libertando toda a sua imaginação criadora e sem a espinha e a razão dobradas perante nada nem ninguém, consciente de que com as suas mãos e a sua inteligência era o bem mais precioso e extraordinário deste mundo e era a ele que tudo produz, a quem competia organizar as coisas da sociedade à sua maneira.

Mas apesar dos seus sonhos e ideais Armando não se considerava um idealista na verdadeira acepção da palavra, nem um filósofo como o pai lhe chamava na juventude, pois tinha fortes convicções materialistas partindo do princípio de que uma boa terra bem trabalhada e adubada, produzirá sempre boas e grandes colheitas. E afinal de contas não será sempre o homem – mais coisa menos coisa – um produto do meio e das suas raízes e circunstâncias?

Contudo, não seria apenas a agricultura tradicional a ser abandonada depois do 25 de Abril. Também a “agricultura moderna” que começou a ser cultivada na altura por aqui e por ali, seria posta de lado aos poucos e poucos havendo cada vez menos “agricultores” a pratica-la. Daí que as “colheitas” sejam cada vez mais miseráveis. Mas ficaria sempre amigo daquele homem “primitivo e pré-histórico” com quem conviveu anos de sonho e em sonho. Possivelmente com os outros que andam por aí também não se entenderia lá muito bem e talvez não conseguisse ser feliz, sabe-se lá...

 
Duas Notas Finais:

1) Nem todos os contos poderão ter sempre um final feliz e acabar da mesma maneira: “casaram, tiveram muitos meninos e foram felizes para sempre”, senão quem é que ainda tinha pachorra para ler um conto nos tempos que correm?

2) Este conto é dedicado por inteiro ao Amigo Nunes, pois sem este espaço caseiro, intimista e de liberdade absoluta chamado Alcoutim Livre, seguramente que nunca teria visto a luz do dia. Armando se existisse, certamente de que também estaria de acordo.