Na década de 60 do século passado e mesmo na primeira parte
da seguinte, no concelho de Alcoutim e em muitos outros do país, o burro ainda fazia
parte de toda uma organização familiar rural como peça indispensável para a
obtenção da sobrevivência do núcleo familiar constituído de uma maneira geral
por prole dilatada. Ao núcleo original juntavam-se quase sempre os avós de um
lado ou de outro quando já não podiam trabalhar. A existência de um idoso tinha
grande importância no equilíbrio familiar, onde a sua presença impunha respeito
e o seu conhecimento da vida era transmitido aos netos em estórias, parábolas,
regras de conduta ou conhecimentos empíricos.
Estávamos no final do ciclo, pois a debandada dos montes dos
jovens e homens em idade de trabalho já se tinha iniciado para as cinturas
industriais de Lisboa e Setúbal a que se seguiu o litoral algarvio com o
desenvolvimento do turismo, que ia recrutando os braços de que careciam.
Ao recuarmos no tempo (o concelho de Alcoutim foi aumentando
de população até meados da década de 50 do século passado) ainda é mais notória
a ajuda dos animais de carga e sela, com destaque para o burro, pois tratava-se
do parente pobre dos equídeos, com vantagens para a sua fácil adaptação a
terrenos ásperos, ao seu preço e manutenção mais acessíveis.
A agricultura de subsistência praticada no concelho de
Alcoutim onde as máquinas não podiam chegar por inúmeros motivos como
económicos, vias de comunicação e acidentado terreno, entre outros.
Poucas eram as pessoas que não se dedicavam à agricultura de
subsistência e isto em terrenos pobres como são os do concelho de Alcoutim
constituídos à base de xisto.
O burro tinha várias funções. Como animal de sela
transportava as pessoas aos sítios mais inóspitos devido à sua rijeza de unha.
Levava as pessoas onde necessitavam de fazer os trabalhos ou a qualquer outro
sítio onde precisavam de se deslocar, ao monte vizinho, à aldeia ou à vila. A
existência dos rossios, espaços comunitários, possibilitava o seu “estacionamento”
e onde existia quase sempre algo para o animal comer.
A “estalagem” na vila ou em Martim Longo
destinava-se a gente mais endinheirada.
Os poços comunitários dos montes ficavam quase sempre um
pouco afastados, pois enquanto os edifícios se situavam numa posição cimeira,
estes ficavam nos vales onde beneficiavam das toalhas freáticas, facilitando
assim a existência do precioso líquido, indispensável à manutenção do ser vivo.
Burra com cangalhas |
Esta tarefa não era fácil e a água merecia uma atenção muito
especial, não se podendo desperdiçar uma gota, tanto pelo trabalho que dava em
obtê-la, como na sua escassez se se praticassem consumos exagerados, o que
podia levar à sua falta, o que por vezes acontecia proporcionando grandes
complicações e isto quando os anos vinham extremamente secos.
Quem possuía várzeas (localmente varjas) junto ao rio
(Guadiana) ou às ribeiras (Vascão, mais escassas, Foupana, Odeleite e Cadavais
ou junto a um barranco, inúmeros no concelho, procurava fazer lá um hortejo
onde podia cultivar alguns mimos hortícolas indispensáveis à sua manutenção.
As várzeas do Guadiana eram ubérrimas, pelo que existiam
proprietários que residiam a bastantes quilómetros de distância, mas que isso
não os impossibilitava de as trabalhar.
Eram novamente os burros que transportavam os produtos lá
criados, como marmelos, romãs, uvas (em zandilhas), figos, abóboras, batatas,
couves, alhos, tomates, feijão e tudo o que lá colhiam. Sendo as distâncias
longas, no Verão, aproveitavam para permanecer lá vários dias aplicados nessas
tarefas, já que a dormida estava facilitada.
Também era este útil animal que transportava ensacada a
azeitona que o proprietário colhia ora junto ao rio ora pelos cerros e
barrancos onde existiam as oliveiras todas provenientes do enxerto em
zambujeiros, acontecendo o mesmo em relação às amêndoas.
Outra das missões que lhe competia era o transporte do
estrume para enriquecimento das terras e que era feito em gorpelhas. Quando
se precisava de areia para qualquer construção era obtida junto dos barrancos e
transportada por estes animais em gorpelhas e muitas vezes nisto havia a
colaboração de familiares e vizinhos com vários animais para fazer face,
rapidamente, às necessidades.
Mas não fica por aqui a preciosa acção do burro na vida
alcouteneja de outros tempos. O lavrar da terra para as sementeiras era tarefa
que lhe estava destinada e normalmente utilizada em parelha, mas também em
carramate, puxando primeiro o arado de madeira e depois a charrua.
Ainda mais, o seu trabalho continuava pois após a ceifa
tinha de acarretar para a eira os molhos do cereal para se proceder à debulha
que tinha de se efectuar pisando circularmente a espiga de trigo que o homem completava
com o auxílio do vento, já que as eiras se situavam, por isso mesmo em sítios
elevados.
Também tinha de transportar a palha para o palheiro que era
metida através do boqueirão e os sacos de trigo para o celeiro.
Quando era necessário farinha para cozer a amassadura
semanal, lá tinha que ir o burro até ao moinho mais próximo, de vento ou de
água, levar o saco de trigo para transformar em farinha.
Os agricultores tinham o número de burros conforme as suas
necessidades e posses e muitas vezes possuíam gado muar. Este gado era bem mais
poderoso e tinha origem no cruzamento de um burro com uma égua ou de um cavalo
com uma burra e adquiriam características dos seus progenitores. Até nisto o
burro era necessário.
Jumento, jerico e asno são outros nomes que lhe dão, mas no
concelho de Alcoutim só lhe ouvi chamar burro.
Burra da Preguiça |
Apesar da sua origem ter lugar em regiões semidesérticas,
adapta-se bem a outras condições climatéricas e a vários tipos de terreno. É um
animal que gosta de companhia mesmo de outras espécies. Sofre quando está
sozinho.
Palha, feno e ração constitui a base da sua alimentação, com
reforço natural em épocas de maior trabalho. Água limpa e abundante.
As refeição devem ser ministradas duas a três vezes por dia.
A arramada é o seu
lugar de recolha e abrigo.
Requer cuidados com o tratamento dos cascos sendo
necessários nestes terrenos a colocação de ferraduras e daí o grande número de
trabalhadores nesta arte.
Além das feiras locais, principalmente na de S. Marcos, na
aldeia do Pereiro, os alcoutenejos desde tempos recuados procuravam as afamadas
feiras de gado do Baixo-Alentejo com destaque para a de Almodôvar, Castro
Verde, Garvão e Aljustrel para efectuarem as suas transacções. A Câmara de
Alcoutim chegava a adiar as suas sessões quando coincidiam com estes eventos.
É preciso atender que a circulação destes animais estava
sujeita a uma licença de imposto de trânsito, paga adiantadamente e que tinha
lugar durante o mês de Janeiro. Os animais de carga e sela de raça asinina,
como era o caso, pagavam por ano 15$00 e se optassem pelo pagamento semestral
era de 10$00 cada.
Quem tivesse terrenos agrícolas podia requerer a isenção em
papel comum e no caso de ser aceite tinham de adquirir um cartão-impresso que
custava 2$50 (Título de isenção de imposto de trânsito) que servia para vários
anos desde que fosse regularizado anualmente na Repartição de Finanças. Se a
memória não nos falha, isto foi abolido durante o Governo de Marcelo Caetano.
Primeiro a desertificação do concelho depois a mecanização
da agricultura e o desenvolvimento das vias de comunicação e dos transportes
retiraram utilidade aos asininos, encontrando-se em vias de extinção em muitas
zonas do país, sendo Alcoutim uma delas.
Burra das Madeiras |
Se a maior parte dos idosos já sente dificuldade em tratar
de si, muito menos seria capaz de tratar de burros que já não lhes servem para
nada.
Há, já nos esqueciamos, os idosos contrariamente ao que
muitos possam pensar, estão capazes de fazer um pezinho de dança e requisitam
um “tocador” de corridinhos e outras músicas mexidas!
Em 1979 segundo estatísticas oficiais, no concelho de
Alcoutim ainda existiam 1139 burros, ocupando no Algarve a 4ª posição, pois
Loulé tinha 1540, Tavira 1520 e Silves 1428. (1)
Actualmente não sabemos mas calculamos que o seu número não
ultrapasse 200.
Naturalmente que os burros têm de acabar primeiro do que as
pessoas.
Como é que os
alcoutenejos de antanho conseguiriam sobreviver sem o auxílio precioso do
burro?
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NOTA
(1) – “Um ex-libris” da
região: Burro algarvio caminha para a extinção?”, José Lança, Jornal do Algarve de 13 de Fevereiro de
1986.