terça-feira, 16 de outubro de 2012

O burro, precioso auxiliar para a sobrevivência do povo alcoutenejo



Burra de Afonso Vicente
Como as coisas mudam quase sem darmos por isso!

Na década de 60 do século passado e mesmo na primeira parte da seguinte, no concelho de Alcoutim e em muitos outros do país, o burro ainda fazia parte de toda uma organização familiar rural como peça indispensável para a obtenção da sobrevivência do núcleo familiar constituído de uma maneira geral por prole dilatada. Ao núcleo original juntavam-se quase sempre os avós de um lado ou de outro quando já não podiam trabalhar. A existência de um idoso tinha grande importância no equilíbrio familiar, onde a sua presença impunha respeito e o seu conhecimento da vida era transmitido aos netos em estórias, parábolas, regras de conduta ou conhecimentos empíricos.

Estávamos no final do ciclo, pois a debandada dos montes dos jovens e homens em idade de trabalho já se tinha iniciado para as cinturas industriais de Lisboa e Setúbal a que se seguiu o litoral algarvio com o desenvolvimento do turismo, que ia recrutando os braços de que careciam.

Ao recuarmos no tempo (o concelho de Alcoutim foi aumentando de população até meados da década de 50 do século passado) ainda é mais notória a ajuda dos animais de carga e sela, com destaque para o burro, pois tratava-se do parente pobre dos equídeos, com vantagens para a sua fácil adaptação a terrenos ásperos, ao seu preço e manutenção mais acessíveis.


Burro das Ferrarias
A agricultura de subsistência praticada no concelho de Alcoutim onde as máquinas não podiam chegar por inúmeros motivos como económicos, vias de comunicação e acidentado terreno, entre outros.

Poucas eram as pessoas que não se dedicavam à agricultura de subsistência e isto em terrenos pobres como são os do concelho de Alcoutim constituídos à base de xisto.

O burro tinha várias funções. Como animal de sela transportava as pessoas aos sítios mais inóspitos devido à sua rijeza de unha. Levava as pessoas onde necessitavam de fazer os trabalhos ou a qualquer outro sítio onde precisavam de se deslocar, ao monte vizinho, à aldeia ou à vila. A existência dos rossios, espaços comunitários, possibilitava o seu “estacionamento” e onde existia quase sempre algo para o animal comer.

A “estalagem” na vila ou em Martim Longo destinava-se a gente mais endinheirada.

Os poços comunitários dos montes ficavam quase sempre um pouco afastados, pois enquanto os edifícios se situavam numa posição cimeira, estes ficavam nos vales onde beneficiavam das toalhas freáticas, facilitando assim a existência do precioso líquido, indispensável à manutenção do ser vivo.

Burra com cangalhas
Era ao burro que competia transportar a água desse local às residências, o que acontecia quase sempre a subir. Para o efeito eram apetrechados de cangalhas de ferro ou de madeira, para transportar os cântaros de barro ou de folha zincada.

Esta tarefa não era fácil e a água merecia uma atenção muito especial, não se podendo desperdiçar uma gota, tanto pelo trabalho que dava em obtê-la, como na sua escassez se se praticassem consumos exagerados, o que podia levar à sua falta, o que por vezes acontecia proporcionando grandes complicações e isto quando os anos vinham extremamente secos.

Quem possuía várzeas (localmente varjas) junto ao rio (Guadiana) ou às ribeiras (Vascão, mais escassas, Foupana, Odeleite e Cadavais ou junto a um barranco, inúmeros no concelho, procurava fazer lá um hortejo onde podia cultivar alguns mimos hortícolas indispensáveis à sua manutenção.

As várzeas do Guadiana eram ubérrimas, pelo que existiam proprietários que residiam a bastantes quilómetros de distância, mas que isso não os impossibilitava de as trabalhar.

Eram novamente os burros que transportavam os produtos lá criados, como marmelos, romãs, uvas (em zandilhas), figos, abóboras, batatas, couves, alhos, tomates, feijão e tudo o que lá colhiam. Sendo as distâncias longas, no Verão, aproveitavam para permanecer lá vários dias aplicados nessas tarefas, já que a dormida estava facilitada.

Também era este útil animal que transportava ensacada a azeitona que o proprietário colhia ora junto ao rio ora pelos cerros e barrancos onde existiam as oliveiras todas provenientes do enxerto em zambujeiros, acontecendo o mesmo em relação às amêndoas.

Outra das missões que lhe competia era o transporte do estrume para enriquecimento das terras e que era feito em gorpelhas. Quando se precisava de areia para qualquer construção era obtida junto dos barrancos e transportada por estes animais em gorpelhas e muitas vezes nisto havia a colaboração de familiares e vizinhos com vários animais para fazer face, rapidamente, às necessidades.

Mas não fica por aqui a preciosa acção do burro na vida alcouteneja de outros tempos. O lavrar da terra para as sementeiras era tarefa que lhe estava destinada e normalmente utilizada em parelha, mas também em carramate, puxando primeiro o arado de madeira e depois a charrua.

Ainda mais, o seu trabalho continuava pois após a ceifa tinha de acarretar para a eira os molhos do cereal para se proceder à debulha que tinha de se efectuar pisando circularmente a espiga de trigo que o homem completava com o auxílio do vento, já que as eiras se situavam, por isso mesmo em sítios elevados.

Também tinha de transportar a palha para o palheiro que era metida através do boqueirão e os sacos de trigo para o celeiro.

Quando era necessário farinha para cozer a amassadura semanal, lá tinha que ir o burro até ao moinho mais próximo, de vento ou de água, levar o saco de trigo para transformar em farinha.

Os agricultores tinham o número de burros conforme as suas necessidades e posses e muitas vezes possuíam gado muar. Este gado era bem mais poderoso e tinha origem no cruzamento de um burro com uma égua ou de um cavalo com uma burra e adquiriam características dos seus progenitores. Até nisto o burro era necessário.

Jumento, jerico e asno são outros nomes que lhe dão, mas no concelho de Alcoutim só lhe ouvi chamar burro.

Burra da Preguiça
A sua origem parece estar ligada ao Egipto e é desde tempos imemoriais utilizado nas tarefas agrícolas e para transporte. Dizem os entendidos que teria surgido na Europa no quinto milénio antes de Cristo tendo-se expandido por todo o continente.
Apesar da sua origem ter lugar em regiões semidesérticas, adapta-se bem a outras condições climatéricas e a vários tipos de terreno. É um animal que gosta de companhia mesmo de outras espécies. Sofre quando está sozinho.

Palha, feno e ração constitui a base da sua alimentação, com reforço natural em épocas de maior trabalho. Água limpa e abundante.

As refeição devem ser ministradas duas a três vezes por dia.

A arramada é o seu lugar de recolha e abrigo.

Requer cuidados com o tratamento dos cascos sendo necessários nestes terrenos a colocação de ferraduras e daí o grande número de trabalhadores nesta arte.

Além das feiras locais, principalmente na de S. Marcos, na aldeia do Pereiro, os alcoutenejos desde tempos recuados procuravam as afamadas feiras de gado do Baixo-Alentejo com destaque para a de Almodôvar, Castro Verde, Garvão e Aljustrel para efectuarem as suas transacções. A Câmara de Alcoutim chegava a adiar as suas sessões quando coincidiam com estes eventos.

É preciso atender que a circulação destes animais estava sujeita a uma licença de imposto de trânsito, paga adiantadamente e que tinha lugar durante o mês de Janeiro. Os animais de carga e sela de raça asinina, como era o caso, pagavam por ano 15$00 e se optassem pelo pagamento semestral era de 10$00 cada.

Quem tivesse terrenos agrícolas podia requerer a isenção em papel comum e no caso de ser aceite tinham de adquirir um cartão-impresso que custava 2$50 (Título de isenção de imposto de trânsito) que servia para vários anos desde que fosse regularizado anualmente na Repartição de Finanças. Se a memória não nos falha, isto foi abolido durante o Governo de Marcelo Caetano.

Primeiro a desertificação do concelho depois a mecanização da agricultura e o desenvolvimento das vias de comunicação e dos transportes retiraram utilidade aos asininos, encontrando-se em vias de extinção em muitas zonas do país, sendo Alcoutim uma delas.

Burra das Madeiras
Se existem montes em que já não há vivalma, há muitos em que ainda há gente mas os burros desapareceram.

Se a maior parte dos idosos já sente dificuldade em tratar de si, muito menos seria capaz de tratar de burros que já não lhes servem para nada.

Há, já nos esqueciamos, os idosos contrariamente ao que muitos possam pensar, estão capazes de fazer um pezinho de dança e requisitam um “tocador” de corridinhos e outras músicas mexidas!

Em 1979 segundo estatísticas oficiais, no concelho de Alcoutim ainda existiam 1139 burros, ocupando no Algarve a 4ª posição, pois Loulé tinha 1540, Tavira 1520 e Silves 1428. (1)

Actualmente não sabemos mas calculamos que o seu número não ultrapasse 200.

Naturalmente que os burros têm de acabar primeiro do que as pessoas.

Como é que os alcoutenejos de antanho conseguiriam sobreviver sem o auxílio precioso do burro?
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NOTA

(1) – “Um ex-libris” da região: Burro algarvio caminha para a extinção?”, José Lança, Jornal do Algarve de 13 de Fevereiro de 1986.