Escreve
Daniel Teixeira
Já há algumas semanas que não preencho esta crónica que é um
campo que me é bastante grato e compensador em termos memoriais. Lembro-me de
muita coisa mais, mas algumas dessas coisas, sobretudo as que relatam episódios
pouco elogiosos para terceiros têm mesmo de ficar na gaveta.
Não me sinto à vontade por vezes para ir além do
politicamente correcto, mesmo que as personagens sejam camufladas por iniciais,
mas há algumas histórias que não entrando num campo muito complexo em termos de
memória dos falecidos acabam por aparecer-me como inofensivas em termos de
acontecimento.
Por vezes, como será o caso nesta, têm aquele ridículo são,
que vistas bem as coisas até podem ser encaradas no plano da falta de vocação
para fazer ou não fazer dadas coisas, sendo certo que esta pessoa de que vou
falar era um trabalhador exímio e esforçado na sua agricultura e bem sucedido
em termos de posses.
Mas houve uma altura em que as coisas ainda não lhe corriam
muito bem e candidatou-se a fazer sortidas com o meu avô e seus companheiros na
tarefa do contrabando para Espanha.
Já aqui disse que não se deve confundir o contrabando
daqueles tempos com o outro, mais modernizado e em grosso, realizado sobretudo
em portos ou em praias, que esse sim acabou por construir e consolidar algumas
estruturas marginais que acabaram posteriormente por enveredar pela passagem de
droga já nos anos 70/80.
A tentação do «muito dinheiro» foi demasiado forte para
alguns e até certa altura no decorrer dos anos honestos pescadores foram
tentados nessas operações. O contrabando do meu avô era de produtos
alimentares, ovos, por exemplo, que faltavam em Espanha, petróleo que faltava
cá, fósforos, não sei de de lá para cá ou vice versa e era praticamente uma
troca fronteiriça com um lucro verdadeiramente reduzido mas que tapava os
buracos dos rendimentos sazonais.
Faltará um dia fazer um balanço que pode ser embaraçador mas
que em termos sociais teve o seu papel numa altura em que a escassez, resultado
da guerra civil e não só, assolava a Espanha e no papel que este contrabando
terá tido no relacionamento entre populações raianas e a meu ver de relativa
pouca importância em termos tributários.
Mas isso é mesmo complicado estar a desenvolver, sendo certo
que nos anos 60 do Sec. XX se criou uma mítica sobre o contrabandista que não
lhe era de todo desfavorável, antes pelo contrário, havendo todo um manancial
de canções da época retratando a vivencia e lamentando os perigos por eles
corridos. De notar também que estas canções não fazem qualquer referência pouco
elogiosa àqueles que eram os guardiões das fronteiras, na altura Guarda Fiscal.
Pois esta personagem que vou falar em dois episódios só foi
ao contrabando uma vez e jurou para nunca mais: a guarda fiscal a cavalo
deu-lhes uma corrida em osso e ele pouco experiente não soube acantonar-se mais
longe do percurso da «lebre» (que levava atrás de si os guardas) acabando por ficar
acoitado nas proximidades do sítio onde os guardas supunham estar a «lebre»
(com um fardo de palha e sem contrabando nenhum é claro) que, indo no engodo,
procuravam.
Deitou-se numa seara e ali ficou a tremelicar com medo que
os guardas ouvissem, conforme ele dizia, o bater do seu coração. De esclarecer
que só quem ouvia o coração dele a bater era ele mesmo, como é claro, mas como
batia muito forte pensou que poderia propagar-se e ser audível aos ouvidos dos
guardas. Quando os seus companheiros o foram buscar já de regresso da surtida
ainda lá estava no mesmo sítio e ia morrendo de susto quando eles chegaram
perto dele. Por isso acabou mesmo a sua baldada tentativa de ser
contrabandista.
Um outro episódio deste personagem tem a ver com uma sua
deslocação ao Hospital de Faro, ou ao médico especialista, não me lembro bem,
altura em que a mulher lhe colocou num bolsinho da jaqueta um papelinho com a
morada da minha mãe, para depois poder pedir indicações. Seguiu tudo á risca,
saiu da camioneta numa paragem intermédia que ficava mais perto da nossa casa
mas não encontrou o papel com a morada. Viemos a descobri-lo depois já em nossa
casa dentro de um dos inúmeros bolsinhos da jaqueta.
Entretanto foi descendo a cidade a perguntar se alguém
conhecia a pessoa a quem se dirigia. Por mera sorte eu saí do meu serviço e
calhei a vê-lo, isto já a mais de um quilómetro da minha casa. «Mas aquele é o
senhor M.V.» - disse para mim mesmo, pois não sabia que ele tinha aquela tarefa
em Faro naquele dia. Parecia-me mesmo, mas como estava em traje de domingo tive
dificuldade em acertar com ele logo à primeira.
Atrevi-me a ir perguntar e o homem abraçou-se a mim: estava
desorientado e perdido e não sabia mesmo o que fazer. Ainda lhe disse que na
pior das hipóteses sempre podia tomar a camioneta para o Monte outra vez mas
nem disso ele se tinha lembrado. Tinha dinheiro bastante e enfim...só lhe
faltava a ideia.