segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações, XL



 
Escreve

Daniel Teixeira

 
 

 SEM QUASE NADA TER DITO MAS NÃO ESTÁ TUDO DITO

Já há algumas semanas que não preencho esta crónica que é um campo que me é bastante grato e compensador em termos memoriais. Lembro-me de muita coisa mais, mas algumas dessas coisas, sobretudo as que relatam episódios pouco elogiosos para terceiros têm mesmo de ficar na gaveta.

Não me sinto à vontade por vezes para ir além do politicamente correcto, mesmo que as personagens sejam camufladas por iniciais, mas há algumas histórias que não entrando num campo muito complexo em termos de memória dos falecidos acabam por aparecer-me como inofensivas em termos de acontecimento.

Por vezes, como será o caso nesta, têm aquele ridículo são, que vistas bem as coisas até podem ser encaradas no plano da falta de vocação para fazer ou não fazer dadas coisas, sendo certo que esta pessoa de que vou falar era um trabalhador exímio e esforçado na sua agricultura e bem sucedido em termos de posses.

Mas houve uma altura em que as coisas ainda não lhe corriam muito bem e candidatou-se a fazer sortidas com o meu avô e seus companheiros na tarefa do contrabando para Espanha.

Já aqui disse que não se deve confundir o contrabando daqueles tempos com o outro, mais modernizado e em grosso, realizado sobretudo em portos ou em praias, que esse sim acabou por construir e consolidar algumas estruturas marginais que acabaram posteriormente por enveredar pela passagem de droga já nos anos 70/80.

A tentação do «muito dinheiro» foi demasiado forte para alguns e até certa altura no decorrer dos anos honestos pescadores foram tentados nessas operações. O contrabando do meu avô era de produtos alimentares, ovos, por exemplo, que faltavam em Espanha, petróleo que faltava cá, fósforos, não sei de de lá para cá ou vice versa e era praticamente uma troca fronteiriça com um lucro verdadeiramente reduzido mas que tapava os buracos dos rendimentos sazonais.

Faltará um dia fazer um balanço que pode ser embaraçador mas que em termos sociais teve o seu papel numa altura em que a escassez, resultado da guerra civil e não só, assolava a Espanha e no papel que este contrabando terá tido no relacionamento entre populações raianas e a meu ver de relativa pouca importância em termos tributários.

Mas isso é mesmo complicado estar a desenvolver, sendo certo que nos anos 60 do Sec. XX se criou uma mítica sobre o contrabandista que não lhe era de todo desfavorável, antes pelo contrário, havendo todo um manancial de canções da época retratando a vivencia e lamentando os perigos por eles corridos. De notar também que estas canções não fazem qualquer referência pouco elogiosa àqueles que eram os guardiões das fronteiras, na altura Guarda Fiscal.

Pois esta personagem que vou falar em dois episódios só foi ao contrabando uma vez e jurou para nunca mais: a guarda fiscal a cavalo deu-lhes uma corrida em osso e ele pouco experiente não soube acantonar-se mais longe do percurso da «lebre» (que levava atrás de si os guardas) acabando por ficar acoitado nas proximidades do sítio onde os guardas supunham estar a «lebre» (com um fardo de palha e sem contrabando nenhum é claro) que, indo no engodo, procuravam.

Deitou-se numa seara e ali ficou a tremelicar com medo que os guardas ouvissem, conforme ele dizia, o bater do seu coração. De esclarecer que só quem ouvia o coração dele a bater era ele mesmo, como é claro, mas como batia muito forte pensou que poderia propagar-se e ser audível aos ouvidos dos guardas. Quando os seus companheiros o foram buscar já de regresso da surtida ainda lá estava no mesmo sítio e ia morrendo de susto quando eles chegaram perto dele. Por isso acabou mesmo a sua baldada tentativa de ser contrabandista.

Um outro episódio deste personagem tem a ver com uma sua deslocação ao Hospital de Faro, ou ao médico especialista, não me lembro bem, altura em que a mulher lhe colocou num bolsinho da jaqueta um papelinho com a morada da minha mãe, para depois poder pedir indicações. Seguiu tudo á risca, saiu da camioneta numa paragem intermédia que ficava mais perto da nossa casa mas não encontrou o papel com a morada. Viemos a descobri-lo depois já em nossa casa dentro de um dos inúmeros bolsinhos da jaqueta.

Entretanto foi descendo a cidade a perguntar se alguém conhecia a pessoa a quem se dirigia. Por mera sorte eu saí do meu serviço e calhei a vê-lo, isto já a mais de um quilómetro da minha casa. «Mas aquele é o senhor M.V.» - disse para mim mesmo, pois não sabia que ele tinha aquela tarefa em Faro naquele dia. Parecia-me mesmo, mas como estava em traje de domingo tive dificuldade em acertar com ele logo à primeira.

Atrevi-me a ir perguntar e o homem abraçou-se a mim: estava desorientado e perdido e não sabia mesmo o que fazer. Ainda lhe disse que na pior das hipóteses sempre podia tomar a camioneta para o Monte outra vez mas nem disso ele se tinha lembrado. Tinha dinheiro bastante e enfim...só lhe faltava a ideia.