domingo, 2 de dezembro de 2012

Um estrangeiro hóspede em Alcoutim no reinado de D. José. (*)


Pequena nota

Este artigo é a transcrição das folhas nº 32 a 34 do livro PORTUGAL, A Côrte e o País nos anos de 1765 a 1767, José Gorani (1740-1819), Tradução, Prefácio e notas por Castelo Branco Chaves. Editorial Ática, Lisboa, 1945, que li, já não me lembro onde e há mais de 35 anos, em qualquer biblioteca e de que fotocopiei estas páginas e mais algumas que me interessavam.

Não deixa de ser curiosa  a narrativa que faz, o conhecimento do passado alcoutenejo com um ou outro dado menos correcto e que foi buscar às fontes a que teve acesso.

E o conhecimento da nossa história que bastou e tomando em consideração as suas palavras para vencer os “opositores”, se tudo isto se passou como descreve e se o texto não está eivado pela sua imaginação de homem fidalgo e culto.

Como era possível haver em Alcoutim ou nas suas redondezas tantos estudantes na Universidade de Coimbra? Seria possível?

Verdade seja que muito antes está documentada a presença de vários alcoutenejos na Universidade de Salamanca, entre os quais Afonso Gomes, Matriculado no 5º ano da Faculdade de Cânones (1594).

Irei ter oportunidade de voltar a José Gorani e aos estudantes de Alcoutim, tomando em consideração a mesma fonte que refere esta passagem por Alcoutim.

JV

O QUE ME ACONTECEU COM UNS ESTUDANTES DE COIMBRA (1)

O Guadiana. Foto JV
 
Este capítulo provar-nos-á que se os jovens portugueses das famílias abastadas por vezes se afastam do recto caminho, facilmente se emendam desde que lhes demonstrem o seu erro

Em 26 de Outubro não pudemos avançar muito e foi necessário um dia inteiro para subir apenas três léguas no Guadiana. Põe causa do mau tempo vimo-nos obrigados a atracar perto de um bosque afastado de qualquer localidade e onde não se via vivalma. Foi necessário ter paciência e dormir nas duras tábuas da embarcação, tendo para me cobrir apenas a minha capa de mau pano, mais pesada que quente. Felizmente que durante a noite não choveu, mas houve frio, pois nos encontrávamos entre o rio e montanhas.

Em 27 não caminhámos mais que quatro léguas até Alcoutim, onde atracámos pelas cinco horas da tarde. Ao fim de dois dias de embarcados pouco tínhamos avançado, pois apenas distávamos sete léguas de Castro Marim. Mas também, cumpre dizê-lo, se entrássemos em linha de conta com todas as sinuosidades e contornos do Guadiana, verificaríamos que havíamos percorrido onze a doze léguas.

Durante a noite que procedeu à nossa segunda jornada tivemos frio e, chegados que fomos a Alcoutim, deixei os barqueiros na embarcação, permitindo-me eles que fosse passar a noite na venda, depois de lhes haver prometido, o que rigorosamente cumpri, estar a bordo ao romper da manhã seguinte para continuarmos viagem até Mértola, onde contávamos chegar antes do meio-dia, porque o tempo levantara e o vento parecia-nos ser favorável, como de facto o foi.

Alcoutim é uma cidade, como inadvertidamente alguns geógrafos a classificam. Em 1765 este lugar não passava de um burgo aliás pouco importante, e não consta que depois o governo o tenha aumentado e elevado à categoria de cidade. Não possui indústria nem comércio. Pertence, cuido eu, ao Algarve, mas está na fronteira do Alentejo. Guarneciam-na cem soldados do regimento que estacionava em Castro Marim comandados  por um capitão de naturalidade inglesa e que habitava no castelo indefeso.

Castelo de Alcoutim, anos 80.
 
O rei D. Manuel havia erigido Alcoutim em condado no ano de 1503, para recompensar um dos seus capitães que, por feitos heróicos, de distinguira nas Índias. Em 1765 Alcoutim era um senhorio pertencente ao Infante D. Pedro, irmão do rei D. José I, então reinante, e que mais tarde também veio a ser rei, mas somente em título, pois a soberania pertencia a sua mulher.

D. Pedro III
Sem dúvida a venda de Alcoutim não era uma boa toca, mas, em comparação com as posadas espanholas, podia ser considerada hospedaria magnífica. Neste particular, em Portugal está-se melhor servido. Embora a cozinha das vendas portuguesas não seja bem apaladada, pois ali o vinagre a tudo tempera, pelo menos há que comer.

Entrando na venda, deparei com oito rapazes em que logo reconheci oito estudantes que regressavam a Coimbra para terminarem os seus estudos, pois todos andavam pelos dezassete, dezoito ou dezanove anos. Havia um outro, mais velho, e nono deste bando, um trangalhadanças aí pelos vinte e quatro anos que também marchava para Coimbra para ali receber a borla de doutor em leis, Eis o que imediatamente fiquei ciente, porque o que diziam desde logo mo revelou.

Estes nove personagem estavam à mesa tomando a sua refeição. Fiz servir a minha  na ponta oposta àquele onde eles abancavam e pus-me a comer com bom apetite, porque era novo também e porque depois de tão longa jornada tinha fome e necessidade de refazer as forças.

Comia tranquilamente quando estes jovens estouvados, fixando-me, se puseram a cochichar, a rir à minha custa e a falar inconvenientemente.

Vendo que a situação era desigual para lhes fazer alguma advertência, fingi não dar por o que se passava, continuando a comer o meu guisado. Fui, porém, mal compreendido e a minha atitude interpretada como medrosa, o que deu aos estouvados estudantes o atrevimento necessário para terem propósitos menos decentes; continuei, porém, a calar-me. Por fim, um dos estudantes atreveu-se a atira-me uma bolinha de pão. Seguiram-se outras e uma destas bolas raspou-me por um dos bucres da cabeleira. Perdi a paciência e reconheci que não podia evitar o protesto, embora me expusesse a uma deprimente humilhação. Cortei o silêncio e apresentei-me desta maneira: “Vejo perfeitamente que sou alvo da vossa animadversão; pergunto: que vos fiz para me hostilizardes, a mim, a quem nem sequer conheceis? Ignorais que é prova de bárbara covardia insultar um estrangeiro que procura hospitalidade entre vós e que nada fez para a não merecer? Percorri a Espanha, a Turquia europeia, parte da Tunísia asiática, visitei os estados de Tripoli, de Tunis, de Argel, o Império marroquino, e todos estes povos, que são considerados bárbaros, nunca ousaram fazer-me o menor insulto. Acaso sereis mais bárbaros que eles? Mesmo que eu fosse o último dos homens, reinícola ou não, não teríeis justificação para assim procederdes comigo. E que faria se eu fosse um estrangeiro merecedor de todas as vossas atenções?” Ditas tais palavras, abri o capote e exibi a minha farda: “Sim, meus senhores, sou homem de honra, fidalgo tanto pelo menos como qualquer um de vós; além disso sou um oficial de sua Majestade a Imperatriz Maria Teresa, Imperatriz-Rainha, sobrinha da mãe do vosso rei”. Fiz pausa e continuei: “Li a história do vosso país e sei que os portugueses se distinguiram pela bravura; ora de duas uma: ou o que li do valor e hospitalidade da vossa nação é falso ou vós não sois portugueses. Outrora, no tempo dos Almeidas, dos Albuquerques, dos Sousas e de tantos outros valentes capitães cheios de virtudes, bastavam trezentos ou quatrocentos portugueses para fazer debandar exércitos numerosos de mouros e de índios – e vós, vilíssimos velhacos, ajuntai-vos nove para atacar um estrangeiro que nunca vos viu nem molestou?”

Felizmente para mim acabara de reler o divino Camões. Fixara muitas estâncias e principalmente aquelas onde o grande poeta fez o elogio dos Portugueses. Declamei tais estâncias com maior ênfase que aquela que lhe dão os naturais quando citam este poema. Muito se tem falado de Orfeu por ter encantado homens e bichos com os seus cantos; pois eu posso assegurar ter conseguido o mesmo. O bacharel foi o primeiro a apresentar-me as mais humildes desculpas e os outros oito estudantes seguiram-lhe o exemplo, pedindo-me para lhe relevar a leviandade dos verdes anos e agradeceram-me a lição, de que prometiam tirar proveito.

De todos os episódios da minha vida, nenhum cuja recordação me dê maior prazer que esta aventura. E cabe aqui acrescentar que, desde que alguém se arrepende e repara o mal que fez, a injúria se olvida e a própria baixeza, bem como o insulto injustificado, se convertem em nobreza de alma. Nada de mais belo, de maior e sublime que o arrependimento destes moços portugueses. Sentiram toda a extensão da sua tolice e não se pouparam em nada que a pudesse reparar. As citações dos autores gregos, latinos, espanhóis, franceses que entremeavam a apóstrofe virulenta que lhes dirigi e, finalmente, as estâncias do seu autor favorito, esborrachou-os. Por meu lado, verificando que a minha prédica produzira grande efeito e que o seu arrependimento era sincero, mudei de tom, mantive a conversa na maior cordura e elogiei-lhes o arrependimento como uma prova de nobreza das suas almas.
... ... ...
______________________________

(*) – Título da nossa responsabilidade.

(1) – PORTUGAL, A Côrte e o País nos anos de 1765 a 1767, José Gorani, Tradução, Prefácio e notas por Castelo Branco Chaves. Editorial Ática, Lisboa, 1945, pag. 32 a 34.