Pequena nota
Este artigo é a
transcrição das folhas nº 32 a
34 do livro PORTUGAL, A Côrte e o País nos anos de 1765 a 1767, José Gorani
(1740-1819), Tradução, Prefácio e notas por Castelo Branco Chaves. Editorial
Ática, Lisboa, 1945, que li, já não me lembro onde e há mais de 35 anos, em
qualquer biblioteca e de que fotocopiei estas páginas e mais algumas que me
interessavam.
Não deixa de ser
curiosa a narrativa que faz, o
conhecimento do passado alcoutenejo com um ou outro dado menos correcto e que
foi buscar às fontes a que teve acesso.
E o conhecimento da
nossa história que bastou e tomando em consideração as suas palavras para
vencer os “opositores”, se tudo isto se passou como descreve e se o texto não
está eivado pela sua imaginação de homem fidalgo e culto.
Como era possível
haver em Alcoutim ou nas suas redondezas tantos estudantes na Universidade de
Coimbra? Seria possível?
Verdade seja que muito
antes está documentada a presença de vários alcoutenejos na Universidade de
Salamanca, entre os quais Afonso Gomes, Matriculado no 5º ano da Faculdade de
Cânones (1594).
Irei ter oportunidade
de voltar a José Gorani e aos estudantes de Alcoutim, tomando em consideração a
mesma fonte que refere esta passagem por Alcoutim.
JV
O QUE ME ACONTECEU COM UNS ESTUDANTES DE COIMBRA (1)
O Guadiana. Foto JV |
Este capítulo
provar-nos-á que se os jovens portugueses das famílias abastadas por vezes se
afastam do recto caminho, facilmente se emendam desde que lhes demonstrem o seu
erro
Em 26 de Outubro não
pudemos avançar muito e foi necessário um dia inteiro para subir apenas três
léguas no Guadiana. Põe causa do mau tempo vimo-nos obrigados a atracar perto
de um bosque afastado de qualquer localidade e onde não se via vivalma. Foi
necessário ter paciência e dormir nas duras tábuas da embarcação, tendo para me
cobrir apenas a minha capa de mau pano, mais pesada que quente. Felizmente que
durante a noite não choveu, mas houve frio, pois nos encontrávamos entre o rio
e montanhas.
Em 27 não caminhámos
mais que quatro léguas até Alcoutim, onde atracámos pelas cinco horas da tarde.
Ao fim de dois dias de embarcados pouco tínhamos avançado, pois apenas
distávamos sete léguas de Castro Marim. Mas também, cumpre dizê-lo, se entrássemos
em linha de conta com todas as sinuosidades e contornos do Guadiana,
verificaríamos que havíamos percorrido onze a doze léguas.
Durante a noite que
procedeu à nossa segunda jornada tivemos frio e, chegados que fomos a Alcoutim,
deixei os barqueiros na embarcação, permitindo-me eles que fosse passar a noite
na venda, depois de lhes haver prometido, o que rigorosamente cumpri, estar a
bordo ao romper da manhã seguinte para continuarmos viagem até Mértola, onde
contávamos chegar antes do meio-dia, porque o tempo levantara e o vento
parecia-nos ser favorável, como de facto o foi.
Alcoutim é uma cidade,
como inadvertidamente alguns geógrafos a classificam. Em 1765 este lugar não
passava de um burgo aliás pouco importante, e não consta que depois o governo o
tenha aumentado e elevado à categoria de cidade. Não possui indústria nem
comércio. Pertence, cuido eu, ao Algarve, mas está na fronteira do Alentejo.
Guarneciam-na cem soldados do regimento que estacionava em Castro Marim
comandados por um capitão de naturalidade
inglesa e que habitava no castelo indefeso.
Castelo de Alcoutim, anos 80. |
O rei D. Manuel havia
erigido Alcoutim em condado no ano de 1503, para recompensar um dos seus
capitães que, por feitos heróicos, de distinguira nas Índias. Em 1765 Alcoutim
era um senhorio pertencente ao Infante D. Pedro, irmão do rei D. José I, então
reinante, e que mais tarde também veio a ser rei, mas somente em título, pois a
soberania pertencia a sua mulher.
D. Pedro III |
Sem dúvida a venda de
Alcoutim não era uma boa toca, mas, em comparação com as posadas espanholas, podia ser considerada hospedaria magnífica.
Neste particular, em Portugal está-se melhor servido. Embora a cozinha das
vendas portuguesas não seja bem apaladada, pois ali o vinagre a tudo tempera,
pelo menos há que comer.
Entrando na venda, deparei
com oito rapazes em que logo reconheci oito estudantes que regressavam a
Coimbra para terminarem os seus estudos, pois todos andavam pelos dezassete,
dezoito ou dezanove anos. Havia um outro, mais velho, e nono deste bando, um
trangalhadanças aí pelos vinte e quatro anos que também marchava para Coimbra
para ali receber a borla de doutor em leis, Eis o que imediatamente fiquei
ciente, porque o que diziam desde logo mo revelou.
Estes nove personagem
estavam à mesa tomando a sua refeição. Fiz servir a minha na ponta oposta àquele onde eles abancavam e
pus-me a comer com bom apetite, porque era novo também e porque depois de tão
longa jornada tinha fome e necessidade de refazer as forças.
Comia tranquilamente
quando estes jovens estouvados, fixando-me, se puseram a cochichar, a rir à
minha custa e a falar inconvenientemente.
Vendo que a situação
era desigual para lhes fazer alguma advertência, fingi não dar por o que se
passava, continuando a comer o meu guisado. Fui, porém, mal compreendido e a
minha atitude interpretada como medrosa, o que deu aos estouvados estudantes o
atrevimento necessário para terem propósitos menos decentes; continuei, porém,
a calar-me. Por fim, um dos estudantes atreveu-se a atira-me uma bolinha de
pão. Seguiram-se outras e uma destas bolas raspou-me por um dos bucres da
cabeleira. Perdi a paciência e reconheci que não podia evitar o protesto,
embora me expusesse a uma deprimente humilhação. Cortei o silêncio e
apresentei-me desta maneira: “Vejo perfeitamente que sou alvo da vossa
animadversão; pergunto: que vos fiz para me hostilizardes, a mim, a quem nem
sequer conheceis? Ignorais que é prova de bárbara covardia insultar um estrangeiro
que procura hospitalidade entre vós e que nada fez para a não merecer? Percorri
a Espanha, a Turquia europeia, parte da Tunísia asiática, visitei os estados de
Tripoli, de Tunis, de Argel, o Império marroquino, e todos estes povos, que são
considerados bárbaros, nunca ousaram fazer-me o menor insulto. Acaso sereis
mais bárbaros que eles? Mesmo que eu fosse o último dos homens, reinícola ou
não, não teríeis justificação para assim procederdes comigo. E que faria se eu
fosse um estrangeiro merecedor de todas as vossas atenções?” Ditas tais
palavras, abri o capote e exibi a minha farda: “Sim, meus senhores, sou homem
de honra, fidalgo tanto pelo menos como qualquer um de vós; além disso sou um
oficial de sua Majestade a Imperatriz Maria Teresa, Imperatriz-Rainha, sobrinha
da mãe do vosso rei”. Fiz pausa e continuei: “Li a história do vosso país e sei
que os portugueses se distinguiram pela bravura; ora de duas uma: ou o que li
do valor e hospitalidade da vossa nação é falso ou vós não sois portugueses.
Outrora, no tempo dos Almeidas, dos Albuquerques, dos Sousas e de tantos outros
valentes capitães cheios de virtudes, bastavam trezentos ou quatrocentos
portugueses para fazer debandar exércitos numerosos de mouros e de índios – e
vós, vilíssimos velhacos, ajuntai-vos nove para atacar um estrangeiro que nunca
vos viu nem molestou?”
Felizmente para mim
acabara de reler o divino Camões. Fixara muitas estâncias e principalmente
aquelas onde o grande poeta fez o elogio dos Portugueses. Declamei tais
estâncias com maior ênfase que aquela que lhe dão os naturais quando citam este
poema. Muito se tem falado de Orfeu por ter encantado homens e bichos com os
seus cantos; pois eu posso assegurar ter conseguido o mesmo. O bacharel foi o
primeiro a apresentar-me as mais humildes desculpas e os outros oito estudantes
seguiram-lhe o exemplo, pedindo-me para lhe relevar a leviandade dos verdes
anos e agradeceram-me a lição, de que prometiam tirar proveito.
De todos os episódios
da minha vida, nenhum cuja recordação me dê maior prazer que esta aventura. E
cabe aqui acrescentar que, desde que alguém se arrepende e repara o mal que
fez, a injúria se olvida e a própria baixeza, bem como o insulto injustificado,
se convertem em nobreza de alma. Nada de mais belo, de maior e sublime que o
arrependimento destes moços portugueses. Sentiram toda a extensão da sua tolice
e não se pouparam em nada que a pudesse reparar. As citações dos autores
gregos, latinos, espanhóis, franceses que entremeavam a apóstrofe virulenta que
lhes dirigi e, finalmente, as estâncias do seu autor favorito, esborrachou-os.
Por meu lado, verificando que a minha prédica produzira grande efeito e que o
seu arrependimento era sincero, mudei de tom, mantive a conversa na maior
cordura e elogiei-lhes o arrependimento como uma prova de nobreza das suas
almas.
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(*) – Título da nossa
responsabilidade.
(1) – PORTUGAL, A
Côrte e o País nos anos de 1765
a 1767, José Gorani, Tradução, Prefácio e notas por
Castelo Branco Chaves. Editorial Ática, Lisboa, 1945, pag. 32 a 34.