Escreve
Amílcar Felício
Miguel Relvas chegou certo dia atrasado a uma aula do 1º ano na Faculdade. Entreabriu delicadamente a porta e pediu ao Professor para entrar: “Professor dá Licença?”. O Professor respondeu: “Está Licenciado!”. Pelo que se diz por aí, o homem levou aquilo à risca e não voltou a por os pés na Universidade, considerando-se Licenciado a partir dali.
Esta
piada que correu meio mundo e que nos fez rir à gargalhada em tempos recentes
para esquecermos as agruras da vida, fez-me lembrar um pequeno troço da minha
vida na juventude que vou partilhar convosco, num certo dia em que também eu
fui “Arquiteto”. Uma das vantagens da idade – isto também não pode ser só
desvantagens caramba! -- é termos muitas estórias para contar e eu até fui
“Arquiteto”, imaginem! Apesar de o ter sido apenas por um só dia e com
contornos menos escabrosos penso eu de que... mas já lá vamos.
Estávamos
nos meados da década de sessenta do século passado. Tinha desistido do curso que
o meu pai me tinha “encomendado”/destinado, pois naquele tempo os filhos das
minorias com posses para estudar, nasciam desde logo Engenheiros ou Doutores. A
mim tinha-me saído na rifa ser Engenheiro Electrotécnico não sei bem porquê e
logo eu que até tinha medo de ligar um interruptor. Possivelmente por se tratar
de uma profissão muito prestigiada à época. Naturalmente que sairia daqui mais
um Engenheiro Hidráulico de olhos verdes, como eram considerados jocosamente
alguns Engenheiros na altura!
Assim
logo que tomei consciência aonde me estava a meter e caí em mim, tarde e a más
horas diga-se de passagem – em pleno exame de aptidão para Engenharia na
Faculdade de Ciências – preenchi o cabeçalho do ponto e ao fim de 5 minutos,
com muito espanto do Professor estava de saída. “Então o Senhor já acabou” (?)
pergunta-me ele admirado. “De uma vez por todas Professor”, respondi-lhe eu
saindo porta fora.
Optei
por outras áreas mais apetitosas para o meu paladar, embora ainda muito em
embrião na altura imaginem, apesar de estarmos na 2ª metade da década de
sessenta. A “pecaminosa” Sociologia no IES -- Instituto de Estudos
Sociais – actual ISCTE (Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa) que
Salazar combateria com todas as suas energias pela sua “perigosidade”de
levar as pessoas a pensar e a questionar-se, embora com o pretexto aparente de
que teria que haver racionalização de recursos, uma vez que já existia algo
semelhante, o ISCPU -- Instituto Superior de Ciências Sociais e Política
Ultramarina – formatado por Adriano Moreira e que mais não fazia do que
fabricar Quadros Administrativos Coloniais. Que eu saiba tivemos pelo menos
dois conterrâneos, dois bons amigos infelizmente já falecidos, formados nesta
Universidade.
O
IES lutava então afanosamente com lutas por vezes bastante rijas, pelo seu
estatuto de Escola Superior que na realidade tinha mas que Salazar lhe negava.
Era orientado na altura pelo pai da Sociologia Portuguesa e ainda hoje
considerado o maior Sociólogo Português de sempre -- o Dr. Adérito Sedas Nunes
-- e por um naipe de Professores extraordinários que com ele colaboravam e de
que destaco Mário Murteira em Economia, que foi Ministro dos Assuntos Sociais
no 1º Governo Provisório e Jorge Miranda em Direito Público e Internacional,
considerado um dos pais da Constituição de Abril. Adérito Sedas Nunes viria a
integrar mais tarde o governo de Maria de Lurdes Pintassilgo, com a pasta da
Ciência e da Cultura.
Senti-me
assim obrigado por dever de consciência a informar os meus pais de que ia
pescar para outras águas e começar a trabalhar, mas que continuaria a estudar
por minha conta e risco pois iria fazer outras opções mais do meu agrado. Claro
que com o bom senso dos pais a que só mais tarde acabamos por dar valor, no dia
seguinte tinha o “velho” em Lisboa para me convencer do disparate que
ia fazer. Mas era tarde e estava decidido, pois quando me convencia da justeza
de determinado facto era teimoso como a burra do meu avô Alfredo.
A
Arquitetura & Similares também me eram matérias simpáticas e assim comecei
a trabalhar na sala de desenho da Repartição de Jardins da Câmara Municipal de
Lisboa, que tutelava todos os Jardins de Lisboa incluindo o Parque de Monsanto
embora com alguma autonomia. Era desenhador “tarefeiro”, uma espécie de “recibo
verde” sem recibo dos nossos dias, embora houvesse muita insistência das
chefias para que eu entrasse para o quadro a que sempre resisti, por não sentir
o “apelo e o espírito de missão” do Funcionalismo Público tal como existia na
altura. Ganhava 1750$00 o que já era um excelente ordenado naqueles tempos.
Tratava-se
de uma Repartição que para lá de largas dezenas de administrativos, era
composta na parte técnica por um Engenheiro Agrónomo Chefe da Repartição, por 4
Engenheiros Subalternos também eles Agrónomos naturalmente, por cerca de 5 ou 6
desenhadores e diversas Secções de Jardineiros com umas dezenas se não centenas
de trabalhadores espalhados por essa Lisboa fora, cujo Chefe ia a despacho
todos os dias à Sede.
Ao
fim de pouco mais de um ano e apesar de “tarefeiro” já tinha sido promovido a
Chefe da Sala de Desenho, por desistência do Chefe – o meu amigo Esteves -- que
entretanto tinha optado pelo sector privado depois de muitas hesitações e de se
ter aconselhado comigo, apesar de ser um puto na altura com 18 ou 19 anos. O
Esteves era um homem do “reviralho” com quem tinha muita empatia de
cerca de 35 anos, casado e já com filhos. Visitaria Alcoutim de quem ficaria
encantado. Com as voltas e reviravoltas da vida nunca mais nos voltaríamos a
encontrar.
No
conjunto da Repartição de Jardins existiria naqueles dois ou três anos que por
lá andei, seguramente duas a três vezes mais de funcionários do que as
necessidades requeriam na altura. Às vezes ponho-me a pensar se há quase 50
anos já era assim, o que não será este polvo chamado Função Pública nos nossos
dias, em excesso de pessoal? O cancro tem muitos anos e dizem as más línguas
que teria sido um dos estratagemas que Salazar utilizou bem como o incentivo à
emigração, para esvaziar a pressão social que já se fazia sentir e impedir o
desenvolvimento da indústria e a afirmação do seu inimigo figadal de quem tinha
pânico -- a classe operária -- mantendo “ad aeternum” o seu Portugal
dócil, paroquial e campónio no mau sentido, de que tanto gostava.
O
Engenheiro Chefe era um alentejano enorme e já maduro – o Cavalo Branco – como
era conhecido por todos, pelos seus fartos cabelos brancos à Cunhal e tinha
sido o introdutor da Oliveira Alentejana nos Jardins de Lisboa. Trazia assim um
bocadinho do seu Alentejo para a Capital para matar saudades, perante a chacota
pública na altura, que achavam aquilo um disparate paisagístico. O homem tinha
alguma sensibilidade e chegávamos a estar a falar mais de uma hora sobre a
beleza da Oliveira e a estética do seu tronco.
Mais
tarde nas nossas paródias da tropa recordar-me-ia bastante dos seus longos
discursos sobre a Oliveira, quando ouvia um castiço de um colega dissertar com
graça nas horas de lazer quase 2 horas de seguida sobre o Pano de Tenda,
terminando ao fim daquele tempo: “por último, já me esquecia de vos dizer que
isto também serve para fazer uma Tenda...” O que é facto é que hoje não há
recanto nem Jardim de Lisboa que não possua uma Oliveira tornando-se numa
presença banal. Tinha sido também o pai da célebre Rotunda do Relógio junto do
Aeroporto, muito criticada também e se a memória não me falha do Relógio de Sol
na chamada Praça do Império, hoje completamente degradado penso eu. Chegaria
também a visitar Alcoutim que muito o impressionaria pela sua extraordinária
beleza.
Para
se ter uma ideia os 4 Engenheiros Subalternos pertencentes a famílias
conhecidas da nossa praça de que não vou mencionar nomes, entravam a maior
parte dos dias às 17.00 horas e a hora de saída era salvo erro às 17.30 horas.
Iam picar o ponto claro. O único que entrava entre as 9.00 e as 10.00 horas era
o Engenheiro Chefe, para despachar os diversos assuntos e saía quase sempre
depois da hora. O trabalho que os Engenheiros Subalternos faziam era muito
parecido com quase nada. Eu era um puto atrevido, cuja formação não ia além de
alguns conhecimentos em
Geometria Descritiva , o que me permitia fazer umas plantas e
uns alçados a que lhe juntava uma boa dose de imaginação, de improviso e de
“desenrascanço” à boa maneira portuguesa.
Lembro-me
de uma vez ter confrontado um dos Engenheiros Subalternos mais espertote e
atrevido, que se ia pavonear para a sala de desenho naquela meia hora que por
lá andava, dizendo-lhe: para mim um Engenheiro que venha para a Câmara ou é um
grande nababo ou um grande tachista!
Recordo-me de ele ter respondido à minha insolência juvenil: “sabe que eu gosto
muito de um bom tacho!” Okapa, já entendi... assim fico mais descansado
Engenheiro, respondi-lhe. Ainda me deu uns trabalhinhos por fora certamente
para poder confirmar a sua competência, nomeadamente o Jardim de Inverno do
antigo Casino do Estoril.
Mas
de certo modo convenhamos de que eles tinham razão. De facto todos os
Engenheiros Subalternos eram Engenheiros Agrónomos e ao contrário do Engenheiro
Chefe tinham um curso complementar de Arquitetura Paisagista ministrado no
próprio Instituto de Agronomia, pois não existia na altura Arquitetura
Paisagista como curso independente. Que diferença para os nossos dias caramba
aonde existem centenas e centenas de cursos superiores, quase faltando apenas o
Curso Superior de Pilha Galinhas, embora haja para aí às carradas Catedráticos
na matéria capazes de fundar uma Universidade ao nível das melhores... Só o
Engenheiro Chefe possuía apenas o curso de Engenheiro Agrónomo, o que o
limitaria bastante suponho, em tudo o que se relacionasse com Paisagismo.
Claro
que com as tricas existentes na Função Pública, o Chefe para não dar parte de
fraco passava por cima dos Engenheiros Subalternos – nem se falavam -- e vinha
ter comigo que lhe apresentava os Projetos depois de alguma discussão,
assinando ele depois e toca a andar que se faz tarde. Fizemos obra que
possivelmente ainda alguma coisa resistirá ao tempo, como uma grande
remodelação do Jardim da Estrela com um ribeiro artificial de água corrente
numa das encostas junto à Biblioteca, a Estufa Quente junto à Estufa Fria, o
prolongamento da parte superior do Parque Eduardo VII e dezenas de remodelações
por esses Jardins de Lisboa.
Lembro-me
também de termos realizado o levantamento e os desenhos de centenas de Marcos
Fontanários – pequenas relíquias esculturais – perdidas por essa Lisboa e de
que não existia nada em arquivo. É interessante assinalar também em plena
década de sessenta a existência de algumas preocupações ambientalistas, como um
quadro entalhado num enorme meio tronco de madeira com uma mensagem tocante de
que não recordo o autor, em prol da árvore e do seu papel na vida do homem e
que foi colocado na maior parte dos Jardins de Lisboa. Provavelmente que estas
preocupações ambientalistas seriam fruto de alguns contactos existentes na
altura entre a Repartição e o Instituto de Agronomia, aonde pontificava o
Arquiteto Ribeiro Teles “o papá” do ambientalismo português.
O
“Cavalo Branco” relacionava-se com quase toda a Fina Flor do Entulho da Linha
de Cascais, pelo que era uma fonte permanente de trabalhos extras na
remodelação de Jardins Particulares. Lembro-me de lhes levar uma exorbitância
na altura, pois cobrava a 200 escudos à hora o que naquele tempo era uma
pequena fortuna. Como possuía um bocadinho do espírito de Zé do Telhado, para
compensar fazia à borla alguns Projetos de casas clandestinas em Tires para
alguns “almeidas” (trabalhadores camarários do lixo) e amigos que por lá
moravam, pois trata-se de uma zona que se desenvolveu quase na clandestinidade
absoluta.
Já
agora a talhe de foice e para conhecimento da maior parte dos nossos leitores
certamente, estas pequenas casas de habitação populares eram feitas durante a
noite calculem para fugir à lei e às licenças. Abriam-se os roços para os
alicerces e entulhavam-se ao nascer do dia. Depois das fundações preparadas
levantavam-se as paredes à pressa sempre durante a noite e colocava-se o
telhado às três pancadas, o que já não permitia por lei a sua demolição apesar
de clandestinas. Mais tarde haveria tempo para reforçar paredes, trabalhar com
calma os interiores e tudo o mais que fosse necessário. Assim cresceu Tires que
pertence a uma das maiores freguesias do país e assim se ia resolvendo naqueles
tempos, o problema de habitação daqueles que vinham do campo para a cidade.
Certo
dia o “Cavalo Branco” chamou-me ao seu escritório e pergunta-me com ar solene:
“quando é que você tem um sábado disponível para irmos a Alcobaça, para
estudarmos um projeto de remodelação do Jardim do Mosteiro, pois fui convidado
pelos Conservadores para lhes apresentarmos um projeto?” E lá combinámos
determinado sábado. Almoçámos no Restaurante Mónaco na marginal, na altura
talvez o restaurante mais chique da Linha de Cascais pois esta gente trata-se
bem. Hoje completamente degradado, até mete dó e serve de Parque de Diversão da
3ª Idade que ali são “armazenados” aos fins-de-semana.
Depois
de um belo repasto lá partimos direitos a Alcobaça. A cinco quilómetros do
Mosteiro o Engenheiro Chefe para o carro e diz-me com alguma apreensão: “penso
que já o vou conhecendo, mas vou ter que o apresentar aos Conservadores como
Arquiteto, tanto mais que lhes disse que levava o “meu Arquiteto” senão eles
não nos levam a sério, o que é que acha?” Nesta altura do campeonato o que é
que quer que lhe diga, mas olhe que não sou eu que estou a mentir Engenheiro,
respondi-lhe! “Não se preocupe com isso que eu assumo toda a responsabilidade e
o que é preciso é fazermos o Projeto, pois temos competência para isso!”.
E lá
entrámos no Mosteiro naturalmente um pouco constrangidos. Depois da
apresentação do “Arquiteto” acabadinho de formar há menos de cinco quilómetros
atrás, por ali andámos com os Conservadores no treco treco e no ”Arquiteto”
para aqui, “Arquiteto” para ali e lá íamos sugerindo ou ouvindo as ideias dos
Conservadores, tomando notas, rectificando medidas etc., etc., etc. Cá por
dentro só pensava: isto já não se pode confiar em ninguém caramba, pois com
papas e bolos se enganam os tolos! O que é facto é que apresentámos um
belo Projeto que acabaria por ser executado, mesmo com um “Arquiteto” faz
de contas. De facto era um Jardim extraordinário, com um rio a passar lá
dentro a meio do Jardim e aonde os Monges pescavam na Idade Média dizia-se, o
que só por si apelava à imaginação. Nunca mais lá voltei e já lá vão quase 50
anos. Naturalmente “reformei-me” de seguida pois tinha atingido o topo da
carreira. E nunca mais exerci a profissão de Arquiteto juro-vos...
Até
nos apetece dizer ou no mínimo pensar: pelas preocupações demonstradas pelo
Engenheiro Chefe em impressionar e ganhar a confiança dos Conservadores do
Mosteiro de Alcobaça, ao fim e ao cabo sempre tivemos um bocadinho de Relvas cá
dentro de nós... Afinal de contas não mudámos muito desde o século passado!
Deus
nos livre disso, digo eu que até nem sou católico!!!
VOTOS DE FESTAS FELIZES PARA TODOS OS
ALCOUTENEJOS E LEITORES DO AL !!! (apesar da troika...)