domingo, 16 de dezembro de 2012

Um algarvio que nunca viu o mar


(PUBLICADO NO EXPRESSO DE 4 DE MAIO DE 1985)

António Rodrigues é um algarvio com 73 anos e que não se lembra de ter visto o mar. Tem passado a sua vida em Vale da Rosa, um lugar perdido entre os montes, aqui descarnados, ali cobertos de vegetação agreste no inóspito nordeste do Algarve. Um caminho terrado rasgado por entre os socalcos permite chegar a este lugar habitado por cinco famílias em cinco casas muito brancas, mas nenhum transporte público tem Vale da Rosa no seu percurso e as quatro crianças do lugar têm de fazer a pé três quilómetros atalhados pelo mato para poder chegar à escola mais perto.

«Os que cá nasceram nos últimos trinta anos estão todos a ir embora, só os mais miúdos é que ainda cá estão e até esses logo que tenham 13 ou 14 anos hão-de ir para o Algarve, para a construção civil». Para este natural do Vale da Rosa, o Algarve é aquela terra de riqueza junto ao mar. «Isto aqui na serra é um sítio para irmos passando os dias até à morte. Vivem cá quinze pessoas, quando morrerem as estevas hão-de crescer por cima de tudo isto e tudo vai desaparecer.»

Esta conversa está registada na memória desde há um mês, antes ainda da inauguração da central fotovoltaica de Vale da Rosa, em 12 de Abril. Desde esse dia, o aproveitamento  da energia solar fez mudar a vida e a esperança aos quinze moradores de Vale da Rosa.

O «25 de Abril oferecido... pela França»

Era demasiado dispendioso fazer chegar a Vale da Rosa os fios condutores da energia eléctrica. A solução foi encontrada através de uma oferta do Governo francês por intermédio da Agence pour la Maitrise d`Energie: uma central voltaica com dois grupos de painéis (seis painéis num grupo, sete no outro) com a potência de um Kilowatt de ponta e através da qual a radiação solar é directamente convertido em energia. Jaques Chazell, embaixador francês em Portugal, foi a Vale da Rosa em 12 de Abril e ouviu uma velha mulher emocionada, dizer que aquilo era um milagre, e uma outra, das que foi ganhar a vida para a hotelaria no litoral, discursou e disse que o «25 de Abril» chegou a Vale da Rosa com onze anos de atraso mas chegou .

A oferta francesa, para além do equipamento transformador de energia, incluiu também um televisor e um frigorífico por cada uma das cinco famílias de Vale da Rosa. No começo desta semana, os frigoríficos já armazenavam a carne dos porcos entretanto mortos e ao que se conta, a partir das seis e meia da tarde, todos os dias, toda a gente está diante do televisor. Há quem já tenha sintonizado a televisão espanhola e tenha ficado fiel. De qualquer modo, portuguesa ou espanhola, não importa, as quinze pessoas de Vale da Rosa não tiram os olhos do televisor, mesmo que os filmes sejam legendados e apesar de a maioria da população não saber ler.

Vale da Rosa ainda vive a descoberta da energia eléctrica e até o telefone que funciona por feixes, sem fios, é uma novidade que a população ainda tem dificuldade em utilizar.

S.S.

Pequena nota

O algarvio de 73 anos, que se fosse vivo, teria 100, sabia bem o que estava a dizer apesar de ter vivido sempre naquele pequeno meio. Possivelmente seria analfabeto, pois quando nasceu, escolas eram coisa que por ali não existia, o que, aliás, também hoje acontece.

Na altura eram quinze pessoas, incluindo quatro crianças. Segundo penso saber, já há uns anos que não vive lá ninguém, a não ser que o regresso badalado já tivesse tido lugar o que sinceramente, não acredito como o Sr. José Rodrigues nunca acreditou. E mais tarde ou mais cedo, as estevas apoderar-se-ão do “lugar perdido entre os montes, aqui descarnados, ali cobertos de vegetação agreste no inóspito nordeste do Algarve” como escreveu o jornalista.

JV