quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim- Recordações, XLI




Escreve

Daniel Teixeira


OS CRIADOS EM ALCARIA ALTA

Havia em Alcaria Alta duas famílias de lavradores com condições para terem criados, mas este termo tem uma conotação hoje que corresponde muito pouco àquela que tinha nesses tempos. Havia uma hierarquia entre o pessoal que trabalhava por conta de outrem e um criado, caso do «Pão de Centeio» ou Zé Lourenço já por mim falado por causa do seu terror das trovoadas, era criado mas era simultaneamente ganhão.

O ganhão era um indivíduo que trabalhava ou estava em condições de trabalhar sozinho, que dominava as técnicas agrícolas, nomeadamente a lavoura e o tratamento do gado e era uma pessoa em quem se confiava no sentido técnico do termo. Já o ajudante era isso mesmo, não tinha autonomia reconhecida para trabalhar a sós e fazia parte de grupo ou grupos de trabalho onde exercia as suas funções subordinadas.

Em princípio e pela lógica, confesso que não me debrucei muito sobre isso nem isso fazia parte dos meus interesses de criança, um ajudante deveria trabalhar sob as ordens do ganhão mas pelo que me apercebi essa hierarquia embora fosse espontaneamente respeitada não tinha grande necessidade de ser aplicada de forma mais autoritária. Aliás os próprios patrões procuravam informar-se de como corriam as coisas.

Cada um deles sabia aquilo que tinha de fazer e quando não sabia o ganhão «sugeria» que ele, ajudante, começasse noutro lado quando tinha acabado a fila dele em vez de começar noutra para onde se encaminhava mas isso era mais porque o ganhão tinha a experiência e sabia que era assim que se fazia talvez desde sempre.

De criadas só conheci uma, a Mariazinha, que tinha sérios problemas de ingenuidade (era mesmo poucochinha, coitada) e entrava em paixão assolapada cada vez que um trabalhador ocasional que por ali ficasse uns dias em labuta lhe prometia casamento.


Os da casa, quer dizer, os trabalhadores mais permanentes sabiam disso e punham o prometedor em sentido enquanto por outro lado a patroa da casa dava uma descasca na miúda, descasca carinhosa, diga-se, por aquilo que fui ouvindo. «Olha que aquilo é só conversa, etc. etc.» e por vezes quando a coisa não acabava à primeira o dito era convidado a fazer o saco e a evitar voltar a pedir trabalho ali.

O Zé Lourenço tinha um dialecto próprio que era difícil apanhar à primeira. Parecia que gaguejava um pouco mas isso devia-se ao facto de atropelar as palavras. Era o chamado falar de roldão, ainda a gente estava a tentar perceber a primeira palavra e já ele ia na quinta, mas era porreiro, não muito sociável, muito metido consigo mesmo, como se dizia.

Tinha os tais fiozinhos presos nas casolas dos botões que por sua vez prendiam desde faquinha a onça de tabaco, isqueiro e tudo o mais que tivesse nos bolsos. Era fio de guita pelo que era pelo menos estranho ver-lhe a jaqueta escura bordejada de fiozinhos claros, mas era mesmo assim. Em toda a sua vida não deve ter deixado cair nada dos bolsos, nem mesmo em dias de aflição com as trovoadas.

Diga-se que uma trovoada no campo e em campo aberto não é nada agradável de se ver, com uma profusão de raios a rasgarem o céu e estrondos quase atómicos, mas o problema dele é que não assimilava que não havia nada a fazer e que as suas rezas a Stª Bárbara talvez o ajudassem a ele mas não resolviam o problema da tempestade. Nunca caiu um raio por aqueles sítios no meu tempo.

Como estou a fazer um trabalho que tem a ver com fertilidade, maternidade e paternidade acabei por me lembrar de uma coisa que até agora, neste escrito, estive vai não vai para não referir: o Zé Lourenço tinha uma ideia fixa que era ser chamado de «pai».

Não vou alongar aqui este texto com uma descrição do trabalho que estou a fazer mas o certo é que esse factor, ser pai, ou mãe, ou ter a potencialidade de o ser é em certas culturas levado muito a sério, nomeadamente e em maior escala nas mais primitivas e contribui em muito para a classificação social ou ausência dela do indivíduo.

Alcaria Alta. Casa de lavradores.

As coisas cruzam-se por vezes percorrendo os caminhos mais diversos e embora não tenha a intenção de meter o Zé Lourenço no meu estudo não posso também deixar aqui de encontrar anseios ancestrais que ainda existem hoje.

Já devo ter dito e dado a perceber que mesmo sendo um trabalhador competente ele não tinha a noção toda da fotografia: quer dizer a câmara escura dele tinha falhas de lampadário e a noção que ele tinha de algumas coisas saía desfocada, por vezes e muitas vezes.

Não era muito frequente mas acontecia mais que uma vez ele dirigir-se a miúdos e miúdas (crianças) do Monte e sair-se com essa do: «Chama-me pai, por favor!!». Acontecia por vezes e era mesmo dado todo o desconto por aqueles que sabiam dessa sua mania mas havia vezes em que os miúdos ou miúdas iam dizer aos pais e muitos destes não gostavam nada, como é claro.

Mas lembro-me de numa reunião familiar em casa dos pais de uma miúda se ter chegado à conclusão que isso não fazia mal: ele, Zé Lourenço, ficava contente e em troca a miúda recebia um par de sapatos. Mas só foi uma vez e tinha de ser só uma vez. E o Zé Lourenço, nesse minuto e nesse dia foi chamado de pai.