quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A memória viva da vida rural alcouteneja


Claudina Colaço Costa
Quem nos conhece ou está habituado a ler o que escrevemos neste espaço sabe que não nascemos no concelho de Alcoutim e não foi lá que temos passado a maior parte da vida, apenas vivemos 11 anos na vila e praticamente sem acesso ao meio rural, ainda que a pouco e pouco fôssemos conhecendo os montes vizinhos, principalmente Afonso Vicente.

As nossas primeiras abordagens viraram-se para a história, para os acontecimentos importantes que se passaram onde as guerras foram muito notórias já que se trata de um lugar fronteiriço.

Fomos derivando para outros assuntos como a parte edificada (castelos muralhas e baterias), para os edifícios religiosos existentes e desaparecidos, enfim fomos avançando  conforme o nosso interesse e sensibilidade.

O ALCOUTIM LIVRE “obrigou-nos” a um maior aprofundamento de algumas temáticas, em especial a parte etnográfica que em outras publicações só referimos de uma maneira genérica.

O meu contacto mais assíduo com as populações rurais durante mais de quinze anos levou-nos a efectuar perguntas a muitas pessoas que verificava serem conhecedoras de matérias que eu gostava de esclarecer e todo este conjunto de informações aliadas ao meu próprio conhecimento, de ordem geral, originaram que construísse um modelo definido.

A procura em enciclopédias e dicionários e em livros específicos deram mais robustez a esse modelo mas na hora de explanar ideias e entrar na escrita, falta sempre qualquer coisa que necessitamos para aclarar uma ou outra situação que nos está mais confusa. É a altura de recorrer às minhas fontes de informação e D. CLAUDINA COLAÇO COSTA é uma das principais a que recorro. Toca o telefone e do outro lado da “linha” está sempre uma voz disposta a responder às nossas perguntas, a esclarecer esta ou aquela dúvida.

Apesar dos seus quase 85 anos mantém uma lucidez perfeita. Nasceu no “monte” de Afonso Vicente, freguesia de Alcoutim sendo filha de lavradores locais, tomando em consideração que lavradores eram aqueles que trabalhavam nas suas terras e que não tinham necessidade de trabalhar à jorna para os outros o que acontecia com a grande maioria das pessoas.

Afonso Vicente. Alagoa. Foto JV, Janeiro de 2013
O pai era natural de Afonso Vicente, enquanto a mãe nasceu na Corte da Seda.

O casal teve seis filhos, quatro rapazes e duas raparigas que se ocupavam de todo o trabalho e só excepcionalmente pagavam jornas. Gente muito trabalhadora sabia fazer tudo o que era necessário naqueles tempos para uma vida do campo.

Todas as tarefas do campo lhe eram familiares, tendo em atenção que as havia especificamente para homens e mulheres, ainda que fossem do conhecimento de todos. As que requeriam maior robustez física naturalmente que eram destinadas ao sexo masculino.

Os animais indispensáveis no auxílio do trabalho (machos, mulas e burros), o seu tratamento estava destinado ao sexo masculino mas todos sabiam como se executava e quando necessário faziam a substituição.

Começava-se bem cedo a guardar o gado miúdo (ovelhas, cabras ou porcos) e era tarefa que competia aos mais novos, de ambos os sexos. Constituíam um sustentáculo da economia familiar, tanto para venda como para consumo próprio.

A vida de casa não lhes podia passar ao lado como acontecia com a feitura semanal do pão, a confecção das típicas refeições feitas quase só com o que se produzia, o tratamento das carnes de porco e os enchidos ou a preparação e conservação dos figos secos ou azeitonas.

Já não foi o tempo de aprender a trabalhar no tear ainda que ele existisse em casa e usado pela mãe que além de ter sido mestra de todas estas tarefas era também a parteira curiosa do monte.

Mondar e ceifar. Apanhar os frutos (amêndoas, alfarrobas, figos azeitonas ou bolotas), regar as hortas a caldeiro, toda a vida do campo era do seu conhecimento.

Lavar a roupa no barranco mais próximo ou as mantas na ribeira. Tinha de saber algo de costura pois não havia pronto-a-vestir e o dinheiro era escasso, não se podia mandar fazer, fazia-se como se sabia.

Quando aprendeu a ler já era crescidota e aproveitou a existência no monte de um posto escolar. Foi sua professora D. Clarisse Cunha. Fez a 3ª classe.

Foi assim até aos 33 anos de idade em que parte para Lisboa à procura de melhores condições de vida e possibilitar à filha o estudo que em Alcoutim não era possível, além do mais pela sua não existência.

Conseguiu realizar as ideias que a tinham norteado e após a reforma volta ao seu “monte” natal onde ainda reside.

Depois desta descrição sumária é fácil calcular que conheceu bem e executou todas estas tarefas. Segundo informações de quem a conheceu, exercia-as com perfeição e desenvoltura.

Todos estes conhecimentos que adquiriu ao longo dos anos, aliados a uma lucidez invejável fazem dela um poço seguro de informação que frequentemente utilizo.

Nada que lhe pergunte fica sem resposta dizendo – “no meu tempo e aqui, era assim”.Nos outros lados não sei.

Afonso Vicente. Cozinha de celgas bravas. Foto JV, Janeiro de 2013
Continua a confeccionar os verdadeiros pratos regionais com uma qualidade invejável que não consigo igualar, falta-me qualquer coisa.

Chegou a altura de prestar a minha simples homenagem a quem tanto me tem ensinado sobre a vida rural alcouteneja da primeira metade do século passado.

Aqui manifestamos a nossa estima e deixamos o devido agradecimento.

Muito do seu saber está explanado em centenas de textos que assino.