quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações, XLV



  
Escreve

Daniel Teixeira




AS DIFERENÇAS DA VIDA

Conforme tem sido notório aquilo que me tem interessado neste conjunto de crónicas e de uma forma geral noutros locais e formas onde intervenho, seja sobre a forma de crónica ou simples conversa, mesmo escrita que seja, o que me interessa, repito, é a história contada e feita pelas gentes.

A parte edificada, monumental, de arquivo secular, tem o seu interesse para buscar pontos de referência mas para mim o seu interesse remete-se a isso mesmo, à mera referência, ao apoio ou comparação através do escrito daquilo que é dito e sabendo-se que quem conta um conto acrescente um ponto, serve também para ajustar esses desvios quase naturais.

Cada pessoa tem (ou pode ter) a sua forma de ouvir e depois de contar e uma das minhas preocupações tem sido sempre analisar a divergência entre a «realidade» escrita e a realidade contada, tendo também presente que a realidade escrita contém já em si ou pode conter uma parte de imaginado ou de irrealidade.

Neste diferencial, entre aquilo que terá eventualmente acontecido e aquilo que é contado anos depois e por pessoas diferentes e que normalmente não é considerado científico, existe uma riqueza no imaginado ou na fidelidade que corresponde em grande parte ao desejado, ou seja, corresponde a uma posição ética sobre a realidade.

Eu explico melhor: a aceitação de uma história tal como ela aconteceu (ou terá acontecido) é sinónimo de aprovação dessa realidade, a desaprovação pelo menos parcial leva ao imaginado, à ficção.

Será sempre difícil, senão impossível, aquilatar da existência ou não desse diferencial memorial, do seu volume, das suas características, dos desvios mais prováveis, enfim, é «trabalhar» mesmo numa corda bamba, mas é um trabalho interessantíssimo que nos diz muito sobre a psicologia colectiva.

Aqui há semanas publicámos neste jornal um texto, com quadras, intitulado «Trêz Quadras Dedicadas ao Crime dos Gorjões de Santa Bárbara de Nexe» resultando de um folheto que tem o seu interesse analisar sumariamente aqui. O «ficheiro» que ficou e que deu origem às quadras, embora faça referência á reprovação geral pelo crime cometido sobre uma jovem recém casada pelo seu marido, encontra numa amiga da «desventurada» morta (assassinada) o seu maior desenvolvimento.

Seria de esperar que fossem os pais da rapariga os principais actores deste capítulo, mas existiu a necessidade da parte do guionista, de colocar uma mulher, a sua melhor amiga, neste papel. Porque não o pai? Como elemento protector deveria caber-lhe a ele ser o arauto dos clamores de vingança e inclusivamente de a praticar. Não lhe coube, contudo, esse papel porque cabia a Deus proceder a esse castigo.

Ora estas nuances (sem crimes à mistura, felizmente) encontram-se um pouco por toda a história verbalizada e mostram os diferentes graus de envolvimento ético nas sociedades.

Uma parte das histórias que tenho contado têm uma valência razoável de humor, que é uma forma interessante, a meu ver, de contar de forma favorável aquilo que algumas vezes pode ser reprovável nos nossos tempos. Contudo, ainda que atenuada pelo humor, a história está lá, todinha.

E vai continuar com mais alguma que me lembre no próximo «capítulo».