Pequena nota
Este texto é retirado com a devida vénia de um interessante livrinho (págs. 35 a
37) que tem por título Memória de
algumas Figuras Populares de Chaves em
meados do Século XX e que o autor teve a amabilidade de nos oferecer.
JV
Escreve
José Temudo
Aconteceu-me sempre assim quando
abro o baú das recordações. Como no caso das cerejas, puxo por uma e logo vem
um rosário delas.
Tendo falado do Joaquim Cavalo,
preparava-me para fechar o baú, quando fui surpreendido por uma voz que assim
me interpelou:
“E eu? Não quer falar de mim?
Acaso não fui eu tão popular quanto os outros de quem já falou?”
Era o “Betabê”que assim falava
enquanto pulava do baú para a minha secrtetária e se colocava bem à minha
frente.
Na verdade, pensei, como pude
esquecer o Betabê, que a cidade inteira conhecia? Tem razão o pobre diabo, como
pude esquecê-lo?
Quando o conheci, o Betabê era
engraxador do Café Comercial. À época, o melhor café da cidade. Os fregueses
gostavam dele, mas “picavam-no”, só para o ouvirem ripostar, nem sempre nos
melhores termos, na sua linguagem de “cecemelo” (regionalismo que significa
“ceceoso”). Não teria, ainda, quarenta anos. Era de estatura média, de cabelo e
barba ruça, a puxar para o ruivo, ambos ralos e ressequidos, como que a lembrar
a miséria de vida que fora a sua desde que nascera. Aquele lugar de engraxador
no Café Comercial tinha sido até então, o seu melhor ganha-pão. Aliás, aquele
lugar de engraxador no melhor café de Chaves era muito disputado pelos muitos
outros engraxadores que havia na cidade, a maior parte deles trabalhadores ao
ar livre. O preço do serviço e as gorjetas davam para os gastos mais
necessários e imediatos do Betabê; para o resto, roupa e calçado, contava com a
generosidade dos clientes, que sempre aparecia quando o viam mais necessitado.
E é sobre este aspecto que eu vou contar uma “historieta” que muito fez rir a
cidade.
Um dos clientes do Café e do
Betabê era um engenheiro, director dos serviços florestais daquela zona. Era um
homem dos seus 45 anos, de boa constituição física; alfacinha puro, educado e
comunicativo, andava sempre impecavelmente vestido e calçado. Tinha um ar
refinado, havia mesmo quem o achasse “snob”. Uma virtude ele não tinha, mas
isso, em Chaves, não incomodava ninguém. Casado, não era homem de uma só cama!
E foi através do Betabê, dos “bons serviços do Betabê”que ele estabelecera
relações com uma moça muito cobiçada e que já tinha passado pelas mãos de dois
ou três amantes que lhe tinham proporcionado uma vida regalada. O Betabê foi,
naturalmente, recompensado. O engenheiro arranjou-lhe um emprego qualquer nos
serviços que dirigia, uma espécie de moço de recados, pago pelo orçamento do
Estado.
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Ainda antes do Betabê ter entrado
para o “serviço público”, num dia em que estava engraxando os sapatos ao
engenheiro, disse-lhe:
“Bonitos sapatos, estes, sr.
Engenheiro!”
“Gostas deles, Betabê?”
“Se gosto deles, sr. Engenheiro?
Isto é do melhor que há!”
“Que número calças, Betabê?,
“perguntou-lhe o engenheiro.
“Quarenta e um, sr. Engenheiro.”
“Também eu. Pois, fica sabendo
que quando me cansar deles, ofereço-tos!”
“O sr. Engenheiro está a gozar
comigo? Ia, agora, dar-me estes sapatos!”
“O que está dito, está dito”,
disse-lhe o engenheiro.
“Palavra de honra, sr.
Engenheiro?”
“Eu só tenho uma palavra, Betabê!,
disse o engenheiro com prosápia.
A partir deste momento, o Betabê
passou a olhar para aqueles sapatos como coisa sua. Se era cuidadoso a engraxar
quaisquer outros, com aqueles refinava os cuidados. Entretanto, o Betabê
continuou a engraxar os sapatos ao engenheiro, não só os que lhe estavam
prometidos, como também alguns outros pares, que o homem era um autêntico
“dandy” e gostava pouco de repetir o que vestia e o que calçava. Mas um dia,
por sinal um dia de muita chuva, o Betabê ficou estarrecido e sem fala quando
viu o engenheiro entrar no café com os sapatos, aqueles belos sapatos, que lhe
estavam prometidos, todos enlameados! E só quando o engenheiro, já sentado, lhe
fez sinal para lhe ir engraxar os sapatos, é que o Betabê saiu do pasmo em que
tinha ficado. De má catadura, sem cumprimentar o cliente, sem mesmo olhar para
ele, começou a limpar-lhe os sapatos. O engenheiro estranhou-lhe o silêncio e a
cara de poucos amigos e interpelou-o:
“Que diabo tens tu, Betabê?
Trataram-te mal?”
“Ninguém me tratou mal, sr,
Engenheiro.”
“Então dói-te a barriga?”,
perguntou-lhe o engenheiro em tom de gozo.
“Porra sr. Engenheiro, dá-me cabo
dos sapatos e depois ainda me pergunta se me dói a barriga? Isso, é fazer pouco
dos pobres!”
Num primeiro momento, o
engenheiro ficou irritado, de testa franzida, com o tom acrimonioso da resposta
daquela infeliz criatura; mas bem depressa se lembrou do compromisso que
assumira de lhe oferecer aquele par de sapatos quando deles se cansasse. Riu-se
tanto, achou-lhe tanta graça, que não perdia a oportunidade de contar aquele
episódio às pessoas do seu convívio.