Portas de Mértola. Foto JV |
Os homens sentados no muro em
frente à casa da Tia Catarina das Portas embalados por aquela música de fundo,
lá continuavam naquela moleza à espera do primeiro fresco da tarde. Para saírem
daquele entorpecimento iam falando de tudo e de quase nada ou dizendo umas
larachas às moças que entretanto passavam alegres e em grupo, com a infusa ao
quadril a caminho do Pocinho. A Maria Tomásia ia quase sempre atrás delas para
se defender dos impropérios, que alguns desbocados mais atrevidos lhe dirigiam.
Pego Fundo de outros tempos. Foto JV |
O Mestre Carlos Sapateiro assobiando
no seu famoso e popular”prega-saltos”pedalava ligeiro estrada acima e quando os
homens o questionam aonde é que ia, respondeu como sempre na sua maneira de
falar de rajada como se fosse uma metralhadora e brincalhona de quem leva a
vida pouco a sério, de que ia “à do Ti Chico das Quatro Estradas beber um
pirolito, que é muito mais barato do que na Vila”. A garotada mais miúda na sua
algazarra frenética não parava, ora estrada acima direito ao Celeiro ora
estrada abaixo direito à Praça, com uma cana entre as pernas a fazer de cavalo
e uma corda entre as mãos atada à ponta da cana, como se montassem um Puro
Sangue Lusitano. E não é que os sacanas dos “cavalos” até relinchavam, caramba!
Talvez influenciados pelas
tropelias da miudagem, o Gonçalves e o “maluco de Giões” como era conhecido,
passavam entretanto a correr descalços como sempre. Os homens perguntam-lhes
“então mas de aonde é que vocês vêm a esta hora (?)”. O Gonçalves que ia à
frente gritando “bruuuuhhhh... bruuuuhhhh... bruuuuhhhh...” responde que “é a
camioneta que está a chegar à Vila”. O “maluco de Giões” um pouco mais lúcido
do que o Gonçalves e por quem sentia um certo paternalismo, ria-se e comentava
que “este gajo nunca mais tem juízo, cada vez está mais maluco (!)” e lá
continuam os dois na sua correria desenfreada estrada abaixo, direitos à Praça!
O Gonçalves teria uns vinte e
muitos anos e o “maluco de Giões” já um pouco mais velho, andaria na casa dos
trinta. Eram dois dementes pacíficos que não se metiam com ninguém, acarinhados
pelo povo que lhes dava comida e que de tempos a tempos, percorriam juntos o
Concelho sempre a pé. O “maluco de Giões” tinha por hábito vir a Alcoutim duas
ou três vezes por ano, possivelmente visitar o seu amigo Gonçalves. Dormiam nos
escombros das casas abandonadas. O Gonçalves dormia normalmente numas casas
derrubadas que existiam entre a casa dos Caimotos e a Estalagem da Tia Libânia
entretanto desaparecidas, para dar lugar ao largo existente na fachada
principal do Castelo. Andava quase sempre com as calças rotas no rabo pelo que
quando se sentava, ficava invariavelmente com a ferramenta à vista para deleite
de uma ou outra mulher mais arrojada que o fustigava, “mas tu nunca mais tens
vergonha de”tar”sempre com isso à mostra Gonçalves (?), mete lá isso já”p´ra dentro
(!)”, mas o Gonçalves eternamente a sorrir, lá continuava impávido e sereno na
sua sacrossanta ingenuidade a dar ar à minhoca, como se não fosse nada com ele.
Passadeiras na Ribeira de Cadavais. Foto JV |
Lá passa entretanto o Ti Mário com
o seu macho pela arreata, incansável contador de estórias e de sonhos, sempre
com esperança na vida e num futuro melhor, com a gorpelha cheia de canastras de
amêndoas e de maçarocas de milho e logo a seguir o Ti Alfredo das Portas, a
cavalo na sua mula bem arreada com uma bela albarda e com a sua nova burra logo
atrás, ainda pouco habituada àquelas andanças com os alforges cheios de
abóboras, frades e alguns melões e melancias. Trazia também umas alfarrobas e
alguns figos de tuna para os porcos. Já vinham sozinhos pois os filhos como
tantos outros, há muito que tinham batido
a asa para a tropa e até já algumas das filhas tinham casado, ficando a
casa mais vazia.
Aquela nova burra do Ti Alfredo,
tinha vindo substituir a última burra que lhe tinha morrido enforcada numa
noite desgraçada na arramada e que o fez chorar convulsivamente como uma
criança, apesar de ser um homem temperado pela 1ª Guerra Mundial em França, da
qual guardava como lembrança mas que nunca utilizava, o garfo e a colher que
por lá tinha usado. Nunca lhe tinha visto nem nunca mais lhe voltaria a ver uma
lágrima a correr por aquela cara abaixo! Aquela burra tinha sido a sua
companhia anos e anos no seu trabalho solitário entre a Hortinha no Pocinho, a
Corte da Seda e o Alcaçarinho. Possivelmente só quem viveu situações
semelhantes poderá compreender tais sentimentos. A Tia Catarina das Portas
debruçada no parapeito do seu muro altaneiro, contemplava lá do alto e em
silêncio o movimento dos que passavam, depois de um dia de trabalho que ainda
estava longe de chegar ao fim, enquanto as brasas das estevas iam apurando em
lume brando o jantar de grão que tinha na pelengana em cima da trempe, para a
refeição da noite que se aproximava.
Ribeira de Cadavais. Sítio do Pego das Portas. Foto JV |
Chega o Ti Pimenta também, com
uma cabra pela mão provavelmente para matar no dia seguinte, pois havia já
alguns dias que não tinha carne no talho. Tenho que avisar a minha mãe, pensei
eu logo cá para mim, para perguntar à Tia Nascimento pois carne de cabra é
sempre mais rara e acaba depressa! Um dos criados do Senhor Serafim vinha logo
a seguir atrás das vacas, enquanto os outros ainda continuavam na Eira do Cerro
do Celeiro com as bestas, à espera que se levantasse algum vento para acabar a
debulha. Quase ao mesmo tempo passa o Senhor Antunes Guarda-Rio, que foi dar
uma volta pela Ribeira para ver se estava tudo em ordem. Olha o Senhor
Zé Custódio e o Senhor Santos Guarda-Fios hoje vêm juntos, comentam os homens.
Se calhar tiveram algum trabalho mais complicado e tiveram que ir os dois, diz
logo outro a seguir.
Na encosta da Igreja da Nossa
Senhora da Conceição o Senhor António do Vinagre a que todos chamavam de Ti
Enterrador, indiferente ao que se passava lá em baixo nas Portas ainda regava
os pequenos eucaliptos que ele próprio tinha plantado. Vamos lá a ver mas é se
pegam todos, comentavam os homens uns para os outros, pois sempre faziam uma
entrada na Vila mais bonita!
A brisa da tarde estava difícil
de chegar às Portas mas o regresso a casa naquele dia, fazia-se a bom ritmo
como habitualmente. Contudo, ainda estávamos longe de chegar ao fim como
veremos na próxima crónica.
(continua)