quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações, XLIV



  
Escreve

Daniel Teixeira




OS CONTRABANDISTAS NO MONTE

Já aqui tenho referido que o meu avô fez contrabando durante a sua idade adulta, talvez até aos 40/50 anos sensivelmente e eu quando comecei a conhecê-lo já ele tinha deixado essa actividade. Para o efeito de ter largado essa actividade em muito terá contribuído o facto de quase ter morrido após uma queda de uns rochedos quando fazia uma travessia, queda essa que resultou num ligeiro afundamento da parte posterior do crânio, situação essa que foi tratada em casa, à base de pensos e pachos de água fria com rodelas de batata.
Na foto mais pequena tentei fazer notar esse traço de junção no crânio, partindo logo sobre o centro das sobrancelhas. Tenho uma outra foto do meu avô tipo passe, mais nítida, mas o simpático fotógrafo fez o «favor» de a retocar nesse ponto. De qualquer forma o que interessaria mais referir aqui seria que a metodologia de tratamento na altura era do género «ou safa-se ou morre» porque não havia mesmo outra alternativa. Safou-se...

O meu avô e a minha avó numa das suas visitas a Faro, anos 60, talvez, quando morávamos numa casa tipo quinta (dentro da cidade de Faro). O luto da minha avó nunca foi tirado após o falecimento da sua filha e minha tia nos anos 50/60.

Ora e voltando ao contrabando, numa das minhas crónicas eu referi que ainda faltava contabilizar a o impacto que esta actividade (ilegal) teve no fortalecimento das relações entre as populações raianas, portuguesas e espanholas, neste caso. Ora estudos sobre este factor e outros com ele relacionados já foram feitos por antropólogos e por departamentos de antropologia de Universidades Portuguesas e Espanholas, só que a matéria parece ser pelo menos um pouco controversa e o andamento destes estudos tem sido relativamente lento.

Cito: (...) O contrabando era, assim, «forma de viver, de sobreviver sempre no fio da navalha, sempre nos limites sem nunca saber quando do outro lado estaria a Guarda à sua espera. Eram quilómetros e quilómetros percorridos sempre a pé, dentro de água, no meio do escuro, à procura do sustento», salienta na introdução à obra (de Luís Filipe Maçarico - 2005) João Miguel Martins, vereador da Câmara Municipal de Mértola.
Luís Filipe Maçarico entrevistou ao longo de vários meses antigos contrabandistas e guardas-fiscais reformados que actuaram na raia de Mértola. Um trabalho que se estendeu até Espanha, ouvindo alguns raianos de Paymogo, El Almendro e El Granado. (...)

E um testemunho igualmente citado: (...) José Afonso, 90 anos
Bens (Mértola)

«Era pelos cerros velhos, ia por além. Vão lá os carros. Então, ê andei trinta e seis anos nessa rebera!...trinta e seis anos andei ê no contrabando. Isso é uma rebera malinha! Eram mais de mil tiros! Carabineros e Guarda-Fiscal, uns e outros.

(…) Na minha presença mataram…você ouviu falar no Raposo? Mataram-no ali ao Moinho das Juntas!... (…) O guarda fez o tiro para ali e não matou mais porque não calharam. (…) Levávamos tudo. Café. Assabão…trazíamos açúcar. Era tudo. Os espanhóis não tinham nada!...Isso era despachado aqui de Santana».

«Memórias do Contrabando em Santana de Cambas – Um contributo para o seu estudo», de Luís Filipe Maçarico, pág. 34.

Comentário meu: é lógico que para andar trinta e seis anos no contrabando os resultados (lucros) não davam evidentemente para enriquecer.

Cito: (...) As trocas comerciais directas ou indirectas, entre as comunidades raianas, existiram, desde a formação moderna dos Estados. H. Bernardo (docente de História na Escola Secundária de Miranda do Douro), fala-nos de trocas, entre comunidades castelhanas e mirandesas, legisladas e, por conseguinte, autorizadas, nos séculos XV e XVI.

«D. João I, no início do século XV, autorizara os castelhanos a poder vender os seus produtos a retalho na alfândega da Vila de Miranda, enquanto durasse a feira. (...) Logo a seguir, os castelhanos e mercadores estrangeiros ficaram autorizados por D. Afonso V, ainda no século XV, a vender nesta vila os seus artigos, particularmente os panos (...)

O rei D. Manuel I, em 1508, permite aos Mirandeses, a pedido destes, que comprem em Espanha ou «troquem por outras mercadorias, o ferro que necessitem para as suas lavouras» (...)

O rei acrescenta os privilégios e autoriza, depois, que os mercadores espanhóis possam levar para o seu país, depois das vendas efectuadas, até mil reis em dinheiro ou mercadorias»

Foi com a instituição do regime ditatorial, em 1920, que o controlo da prática de contrabando assumiu proporções mais austeras de criminalidade.
Portugal entra num período de exaltação nacionalista que fecha a economia do país, com medidas extremas de proteccionismo económico. (...)
Cito: (...) Relação com os Guardas Fiscais

Apesar de existirem várias estórias que relatam a morte de contrabandistas, em circunstâncias de flagrante delito, todos os relatos recolhidos, na primeira pessoa, apontam para terceiros como fontes dessa informação. Ninguém da família dos nossos informantes esteve envolvido nessas condições.

Na verdade, a generalidade dos entrevistados indica, recorrentemente, se não uma boa relação com os Guardas Fiscais, pelo menos uma compreensão das condições de
ambas as facções. São frequentes as referências à complacência dos Guardas que, na sua maioria, eram indivíduos de origem local, conhecedores das necessidades destas povoações.

Manuel Guerreiro, Guarda Fiscal no período ditatorial, testemunha essa complacência dos Guardas Fiscais:

Muitas vezes, tínhamos de fazer vista grossa... deixava passar porque sabia que a vida custava a todos... eram tempos difíceis, para todos. Eles não roubavam nada a ninguém, iam ganhar a vida deles! Mas, muitas vezes, as apreensões tinham de ser feitas, pois a PIDE estava atenta.

Os contrabandistas, por sua vez, compreendiam que os Guardas tinham que cumprir o seu trabalho e que, para serem remunerados, tinham que apresentar serviço. Era a sua forma de sustento e, por conseguinte, é rara a expressão de ressentimentos.

A relação com os Guardas Fiscais podia assumir um carácter cooperação mútua. Vários entrevistados falam de acordos prévios, entre ambas as partes, que determinavam ora a apreensão propositada de parte das mercadorias, através de passagens encenadas com a colaboração dos contrabandistas, ora a cooperação dos Guardas que fingiam ignorar a ocorrência de contrabando.

Maria Delgado, esposa de um Guarda Fiscal já falecido, explica-nos esta estratégia:

O meu marido nasceu aqui, em Constantim, mas quando foi para a Guarda Fiscal mandaram-no fazer serviço perto do Porto. Depois de uns anos mandaram-no para aqui.
Era o trabalho dele, não é? Tinha três filhos para sustentar! Mas ele dizia-me que sabia demais, porque eram todos amigos... Ele sabia quem andava a fazer contrabando, eram da mesma idade dele, tinham brincado juntos! (risos)

Ora deixá-los passar...era o que ele dizia! Mas nós também tínhamos uma casa para sustentar, os miúdos eram pequenos e eu pouco ganhava a fazer pão. Eles combinavam...juntavam-se a beber cervejas e combinavam os dias em que iam prender a carga. Uns dias para uns, outros dias para outros, não é?! (...)

Embora nos textos (extractos) acima não seja feita referência directa a mortes por acção da Guarda Fiscal (ou dos Carabineiros) há um testemunho directo em Santana de Cambas, recolhido por Luís Filipe Maçarico:

Ana Dias Felícia (Ana Viana), 80 anos
Minas de S. Domingos

«A vida era muito dura, pois. Era o tempo da guerra de Espanha. O mê marido estava na tropa, era já sargento da tropa, mas depois quis ir para Moçambique e não o deixaram ir e ele desertou e foi para Espanha. Começou a andar no contrabando, começou a ganhar dinheiro. Levavam tabaco, geralmente o que levavam mais era tabaco, café. Traziam fazenda, roupas, bombazinas, pois, encomendavam.

Eu ganhava poucochinho, as regentes ganhavam pouco. Não tinham ainda Caixa, não tinham nada. E ele, como tinha algum dinheirinho, e eu casei com ele, pronto. E ele continuou assim na vida dele. E agora quando foi à Espanha, que o mataram, já havia muito tempo que ele não ia à Espanha, e estava pensando em desistir daquela vida.

(…) Os guardas atiraram o tiro mas não foi a ele, foi ao outro que eles queriam apanhar. Eles atiraram o tiro ao ar. Foi guardas portugueses, ali no alto de Santana. (…) O mê marido ia fazer 40 anos. Era Bento Pires Martins. Eu tinha 35 anos nessa altura. Ah! Pois fiquei na mesma como estava quando era solteira, ele não me deixou nada. (…)

Eu sou Ana Dias Felícia. Mas aqui sou conhecida por Ana Viana, porque o meu pai assinava António Viana…Eu faço agora 90 anos em Fevereiro. Fui a primeira regente do país. Fui professora no concelho de Moura, Odemira e Lisboa, na Damaia».
(In «Memórias do Contrabando em Santana de Cambas – Um contributo para o seu estudo», pág. 48 - autor Luís Filipe Maçarico).

Quanto aos materiais que eram contrabandeados:

(...) Assim, por importação, foram apreendidos:

alparcatas, figos secos, pimentão, louça de barro ordinário, garfos em ferro, nozes, peixe fresco, enxadas de ferro, camisolas de algodão, bengalas de madeira, minério (cassiterite), forquilhas de ferro, vidros, véus de seda, navalhas de barba, cravagem de centeio, máquinas de cortar cabelo, folha de Flandres, alumínio em obra, pez, meias de seda, estampas religiosas, corda de pita, peixe em conserva, caixas de madeira, camisas de malha de seda, boinas de lã e garrafões de vidro.

Por exportação, foram apreendidos: açúcar, arroz, café torrado em grão, vinho fino engarrafado, centeio em grão, sucata de cobre, linhaça em grão, suínos, tabaco em fio, cintos de vidro sintético e tecidos de algodão.

Como a ideia era avaliar do reforço ou da existência de laços fronteiriços : «Segundo a professora e Antropóloga Paula Godinho, a identidade fronteiriça apoia-se em relações ilegais, de risco e em memórias (fulcrais) da fome.» (...)

Este tema tem muito mais que se lhe diga mas acho que por hoje chega.

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Fontes de Consulta: