Escreve
Daniel Teixeira
OS CONTRABANDISTAS NO MONTE
Já aqui tenho referido que o meu
avô fez contrabando durante a sua idade adulta, talvez até aos 40/50 anos
sensivelmente e eu quando comecei a conhecê-lo já ele tinha deixado essa
actividade. Para o efeito de ter largado essa actividade em muito terá
contribuído o facto de quase ter morrido após uma queda de uns rochedos quando
fazia uma travessia, queda essa que resultou num ligeiro afundamento da parte
posterior do crânio, situação essa que foi tratada em casa, à base de pensos e
pachos de água fria com rodelas de batata.
Na foto mais pequena tentei fazer
notar esse traço de junção no crânio, partindo logo sobre o centro das
sobrancelhas. Tenho uma outra foto do meu avô tipo passe, mais nítida, mas o
simpático fotógrafo fez o «favor» de a retocar nesse ponto. De qualquer forma o
que interessaria mais referir aqui seria que a metodologia de tratamento na
altura era do género «ou safa-se ou morre» porque não havia mesmo outra
alternativa. Safou-se...
O meu avô e a minha avó numa das
suas visitas a Faro, anos 60, talvez, quando morávamos numa casa tipo quinta
(dentro da cidade de Faro). O luto da minha avó nunca foi tirado após o
falecimento da sua filha e minha tia nos anos 50/60.
Ora e voltando ao contrabando,
numa das minhas crónicas eu referi que ainda faltava contabilizar a o impacto
que esta actividade (ilegal) teve no fortalecimento das relações entre as
populações raianas, portuguesas e espanholas, neste caso. Ora estudos sobre
este factor e outros com ele relacionados já foram feitos por antropólogos e
por departamentos de antropologia de Universidades Portuguesas e Espanholas, só
que a matéria parece ser pelo menos um pouco controversa e o andamento destes
estudos tem sido relativamente lento.
Cito: (...) O contrabando era,
assim, «forma de viver, de sobreviver sempre no fio da navalha, sempre nos
limites sem nunca saber quando do outro lado estaria a Guarda à sua espera.
Eram quilómetros e quilómetros percorridos sempre a pé, dentro de água, no meio
do escuro, à procura do sustento», salienta na introdução à obra (de Luís
Filipe Maçarico - 2005) João Miguel Martins, vereador da Câmara Municipal de
Mértola.
Luís Filipe Maçarico entrevistou ao longo de vários meses antigos contrabandistas e guardas-fiscais reformados que actuaram na raia de Mértola. Um trabalho que se estendeu até Espanha, ouvindo alguns raianos de Paymogo, El Almendro e El Granado. (...)
Luís Filipe Maçarico entrevistou ao longo de vários meses antigos contrabandistas e guardas-fiscais reformados que actuaram na raia de Mértola. Um trabalho que se estendeu até Espanha, ouvindo alguns raianos de Paymogo, El Almendro e El Granado. (...)
E um testemunho igualmente citado:
(...) José Afonso, 90 anos
Bens (Mértola)
Bens (Mértola)
«Era pelos cerros velhos, ia por
além. Vão lá os carros. Então, ê andei trinta e seis anos nessa rebera!...trinta
e seis anos andei ê no contrabando. Isso é uma rebera malinha! Eram mais de mil
tiros! Carabineros e Guarda-Fiscal, uns e outros.
(…) Na minha presença
mataram…você ouviu falar no Raposo? Mataram-no ali ao Moinho das Juntas!... (…)
O guarda fez o tiro para ali e não matou mais porque não calharam. (…)
Levávamos tudo. Café. Assabão…trazíamos açúcar. Era tudo. Os espanhóis não
tinham nada!...Isso era despachado aqui de Santana».
«Memórias do Contrabando em
Santana de Cambas – Um contributo para o seu estudo», de Luís Filipe Maçarico,
pág. 34.
Comentário meu: é lógico que para
andar trinta e seis anos no contrabando os resultados (lucros) não davam
evidentemente para enriquecer.
Cito: (...) As trocas comerciais
directas ou indirectas, entre as comunidades raianas, existiram, desde a
formação moderna dos Estados. H. Bernardo (docente de História na Escola
Secundária de Miranda do Douro), fala-nos de trocas, entre comunidades
castelhanas e mirandesas, legisladas e, por conseguinte, autorizadas, nos
séculos XV e XVI.
«D. João I, no início do século
XV, autorizara os castelhanos a poder vender os seus produtos a retalho na
alfândega da Vila de Miranda, enquanto durasse a feira. (...) Logo a seguir, os
castelhanos e mercadores estrangeiros ficaram autorizados por D. Afonso V,
ainda no século XV, a vender nesta vila os seus artigos, particularmente os panos
(...)
O rei D. Manuel I, em 1508,
permite aos Mirandeses, a pedido destes, que comprem em Espanha ou «troquem por
outras mercadorias, o ferro que necessitem para as suas lavouras» (...)
O rei acrescenta os privilégios e
autoriza, depois, que os mercadores espanhóis possam levar para o seu país,
depois das vendas efectuadas, até mil reis em dinheiro ou mercadorias»
Foi com a instituição do regime
ditatorial, em 1920, que o controlo da prática de contrabando assumiu
proporções mais austeras de criminalidade.
Portugal entra num período de exaltação nacionalista que fecha a economia do país, com medidas extremas de proteccionismo económico. (...)
Portugal entra num período de exaltação nacionalista que fecha a economia do país, com medidas extremas de proteccionismo económico. (...)
Cito: (...) Relação com os
Guardas Fiscais
Apesar de existirem várias
estórias que relatam a morte de contrabandistas, em circunstâncias de flagrante
delito, todos os relatos recolhidos, na primeira pessoa, apontam para terceiros
como fontes dessa informação. Ninguém da família dos nossos informantes esteve
envolvido nessas condições.
Na verdade, a generalidade dos
entrevistados indica, recorrentemente, se não uma boa relação com os Guardas
Fiscais, pelo menos uma compreensão das condições de
ambas as facções. São frequentes as referências à complacência dos Guardas que, na sua maioria, eram indivíduos de origem local, conhecedores das necessidades destas povoações.
ambas as facções. São frequentes as referências à complacência dos Guardas que, na sua maioria, eram indivíduos de origem local, conhecedores das necessidades destas povoações.
Manuel Guerreiro, Guarda Fiscal
no período ditatorial, testemunha essa complacência dos Guardas Fiscais:
Muitas vezes, tínhamos de fazer
vista grossa... deixava passar porque sabia que a vida custava a todos... eram
tempos difíceis, para todos. Eles não roubavam nada a ninguém, iam ganhar a
vida deles! Mas, muitas vezes, as apreensões tinham de ser feitas, pois a PIDE
estava atenta.
Os contrabandistas, por sua vez,
compreendiam que os Guardas tinham que cumprir o seu trabalho e que, para serem
remunerados, tinham que apresentar serviço. Era a sua forma de sustento e, por
conseguinte, é rara a expressão de ressentimentos.
A relação com os Guardas Fiscais
podia assumir um carácter cooperação mútua. Vários entrevistados falam de
acordos prévios, entre ambas as partes, que determinavam ora a apreensão
propositada de parte das mercadorias, através de passagens encenadas com a
colaboração dos contrabandistas, ora a cooperação dos Guardas que fingiam
ignorar a ocorrência de contrabando.
Maria Delgado, esposa de um
Guarda Fiscal já falecido, explica-nos esta estratégia:
O meu marido nasceu aqui, em
Constantim, mas quando foi para a Guarda Fiscal mandaram-no fazer serviço perto
do Porto. Depois de uns anos mandaram-no para aqui.
Era o trabalho dele, não é? Tinha
três filhos para sustentar! Mas ele dizia-me que sabia demais, porque eram
todos amigos... Ele sabia quem andava a fazer contrabando, eram da mesma idade
dele, tinham brincado juntos! (risos)
Ora deixá-los passar...era o que
ele dizia! Mas nós também tínhamos uma casa para sustentar, os miúdos eram
pequenos e eu pouco ganhava a fazer pão. Eles combinavam...juntavam-se a beber
cervejas e combinavam os dias em que iam prender a carga. Uns dias para uns,
outros dias para outros, não é?! (...)
Embora nos textos (extractos)
acima não seja feita referência directa a mortes por acção da Guarda Fiscal (ou
dos Carabineiros) há um testemunho directo em Santana de Cambas, recolhido por
Luís Filipe Maçarico:
Ana Dias Felícia (Ana Viana), 80
anos
Minas de S. Domingos
«A vida era muito dura, pois. Era
o tempo da guerra de Espanha. O mê marido estava na tropa, era já sargento da
tropa, mas depois quis ir para Moçambique e não o deixaram ir e ele desertou e
foi para Espanha. Começou a andar no contrabando, começou a ganhar dinheiro.
Levavam tabaco, geralmente o que levavam mais era tabaco, café. Traziam
fazenda, roupas, bombazinas, pois, encomendavam.
Eu ganhava poucochinho, as
regentes ganhavam pouco. Não tinham ainda Caixa, não tinham nada. E ele, como
tinha algum dinheirinho, e eu casei com ele, pronto. E ele continuou assim na
vida dele. E agora quando foi à Espanha, que o mataram, já havia muito tempo
que ele não ia à Espanha, e estava pensando em desistir daquela vida.
(…) Os guardas atiraram o tiro
mas não foi a ele, foi ao outro que eles queriam apanhar. Eles atiraram o tiro
ao ar. Foi guardas portugueses, ali no alto de Santana. (…) O mê marido ia
fazer 40 anos. Era Bento Pires Martins. Eu tinha 35 anos nessa altura. Ah! Pois
fiquei na mesma como estava quando era solteira, ele não me deixou nada. (…)
Eu sou Ana Dias Felícia. Mas aqui
sou conhecida por Ana Viana, porque o meu pai assinava António Viana…Eu faço
agora 90 anos em
Fevereiro. Fui a primeira regente do país. Fui professora no
concelho de Moura, Odemira e Lisboa, na Damaia».
(In «Memórias do Contrabando em Santana de Cambas – Um contributo para o seu estudo», pág. 48 - autor Luís Filipe Maçarico).
(In «Memórias do Contrabando em Santana de Cambas – Um contributo para o seu estudo», pág. 48 - autor Luís Filipe Maçarico).
Quanto aos materiais que eram
contrabandeados:
(...) Assim, por importação,
foram apreendidos:
alparcatas, figos secos,
pimentão, louça de barro ordinário, garfos em ferro, nozes, peixe fresco,
enxadas de ferro, camisolas de algodão, bengalas de madeira, minério
(cassiterite), forquilhas de ferro, vidros, véus de seda, navalhas de barba,
cravagem de centeio, máquinas de cortar cabelo, folha de Flandres, alumínio em
obra, pez, meias de seda, estampas religiosas, corda de pita, peixe em
conserva, caixas de madeira, camisas de malha de seda, boinas de lã e garrafões
de vidro.
Por exportação, foram
apreendidos: açúcar, arroz, café torrado em grão, vinho fino engarrafado,
centeio em grão, sucata de cobre, linhaça em grão, suínos, tabaco em fio,
cintos de vidro sintético e tecidos de algodão.
Como a ideia era avaliar do
reforço ou da existência de laços fronteiriços : «Segundo a professora e
Antropóloga Paula Godinho, a identidade fronteiriça apoia-se em relações
ilegais, de risco e em memórias (fulcrais) da fome.» (...)
Este tema tem muito mais que se
lhe diga mas acho que por hoje chega.
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Fontes de Consulta: