segunda-feira, 28 de maio de 2012

Canastreiro contador de estórias


Escreve



Gaspar Santos



Era do Álamo e veio a nossa casa fazer duas canastras. Destinavam-se, alternadamente, a servirem de contentor fixo de azeitonas, de azeitonas já moídas a “curtir” à espera de produzir azeite, e ainda para armazenar amêndoas ou alfarrobas.


Este homem, cujo nome já não recordo, era um mestre não só na arte de “tecer” cestos e canastras com ripas de cana, mas também na arte da palavra. Ele “tecia” as mais variadas estórias ficcionadas que contava cheio da maior convicção e repassadas de emoção, como se fossem verdadeiras. Era um actor. E eu, na inocência dos meus 10 anos, gostava de o ouvir. Chamo-lhe senhor José para abreviar.

Enquanto ele trabalhava no quintal eu ia para junto dele e, ou pedia que me contasse uma estória, ou fazia perguntas acerca de estórias que ele já contara. “Senhor José conte lá aquela, de quando passou para Espanha uma carga de contrabando”. E ele começava…

”Uma vez eu ia passar a nado uma carga de contrabando para Espanha. Ao sair da margem portuguesa, a Guarda-fiscal começou aos tiros quando eu já estava a nadar. A roupa que tinha ficado na margem, para vestir no regresso, passou para a posse deles.

Cheguei ao lado espanhol, satisfeito apesar de tudo, pois conseguira salvar a carga. Vejo surgir os carabineiros (o equivalente à guarda-fiscal). Comecei a correr com a pesada carga às costas, mas não aguentei muito. Tive que a largar. Fiquei desolado. Sem a carga, que passou para as mãos dos carabineiros, e sem ter que vestir, pois a roupa tinha ficado em Portugal.

Dirigi-me à localidade mais próxima. Ali havia um grande baile. Cheio de frio e fome, não havia outra alternativa senão pedir auxílio. Entrei no baile nu. Foi risada geral. Até que me deram uma roupa simples. Não conhecia ninguém. Mas as pessoas trataram-me o melhor que se possa imaginar possível, sem nenhuma hostilidade. Servi apenas de risota. Deram-me roupa, de comer e de beber.

Participei a seguir numa festa de arromba para a qual me convidaram. Eram as boas filhós. Eram as boas empanadilhas. E bons licores e Pedro Domec para aquecer. No outro dia regressei a Portugal só com prejuízo, mas satisfeito.”

Além desta, contou-me dúzias de outras. Essas estórias tinham como característica, serem bem-sucedidas, após um começo tumultuoso, perigoso ou pouco prometedor. Havia uma certa improvisação de cada vez que as contava, pois eu reconhecia diferenças entre a estória que estava a contar e a mesma estória que já lhe tinha ouvido: as palavras eram outras dentro da mesma estrutura narrativa.

Também lhe ouvi várias vezes estórias de um outro tipo, de final apenas ligeiramente diferente:

“Era uma vez, eu tripulava um barco no Guadiana. Ia para Vila Real e, no Alcaçarinho, o vento Norte deixou de soprar e a maré começou a correr para Norte. Havia que “fazer maré” e aguardar a mudança da corrente. Fundeámos eram 10 da noite. O camarada ficou no barco e eu ia a Alcoutim buscar vinho e comida.

No caminho, mesmo sem haver vento os canaviais começaram a varejar. Era de arrepiar. À medida que me aproximava do cemitério, as minhas pernas cada vez tremiam mais. Só via fantasmas enrolados em lençóis brancos, só com os olhos luminosos a sobressair. Saiam dos canaviais e vinham direito a mim, com umas gargalhadas e risadas que mais pareciam galinhas a cacarejar. No caminho, à minha frente e também atrás de mim, os fantasmas dançavam, rodopiavam, sei lá. E o cacarejar delas punha-me em pele de galinha. O medo que de mim se apoderou culminou, quando ao passar junto ao muro do cemitério ouço um homem nele debruçado dizer-me: Oh amigo, dá-me lume?

Ia morrendo de susto. Comecei a correr para Alcoutim, enquanto o homem que me falara desatava à gargalhada, e só parei uns metros depois do cemitério quando uma patrulha da Guarda-Fiscal me abraçou e tranquilizou: Oh homem não tenha medo, aquele homem é o coveiro que tem a residência no cemitério, é muito beberrão e gosta de brincar pensando que as pessoas já sabem dele e na verdade muitas já o conhecem. O que não era o meu caso.

“Bem, depois fui a Alcoutim aviar-me e ainda tive oportunidade de levar fósforos e uma garrafa do tinto para o coveiro me contar umas quantas piadas.”


As estórias ficcionadas do canastreiro tinham alguma parcela de realidade. Esta última, por exemplo, era usual os barqueiros contá-la, com pequenas variantes. Basta pensarmos, por um lado, que medo também os mais corajosos por vezes têm, e que por outro lado, os barcos tinham necessidade, com alguma frequência, de “fazer maré”, sempre que o vento e a corrente da água não permitiam navegar no sentido que eles queriam.

De facto o coveiro existiu, trabalhou na década de trinta no cemitério até morrer. Tinha o nome ou alcunha de Relego. Vivia e dormia no cemitério. Assustou muitas pessoas que ali passaram de noite, vindo ou indo para os Montes do Rio, quando ao Relego a bebedeira o fazia tocar a concertina ou para no silêncio da noite pedir lume para o cigarro.

O caminho nesse tempo era um carreiro de cabras já não utilizado hoje. Passava a nascente do cemitério tendo ao lado o precipício pendente para o rio como hoje se pode ainda observar.

Foi este Relego a quem Quaresma deu as cabeçadas descritas nos versos de José Francisco da Trindade, publicados por José Varzeano neste blogue em 22 de Abril de 2012.

Envolvendo a proximidade do cemitério, contam-se muitas estórias. Havia até quem apostasse, já com uns copitos a “bordo” e em ambiente de taberna, para provar a coragem de que era capaz de ir colocar de noite um lenço na porta do cemitério. Entretanto, outros que estavam presentes, sorrateiramente saiam a esconder-se na proximidade do cemitério e pregavam depois um grande susto ao corajoso fingindo-se de “almas do outro mundo”.