segunda-feira, 7 de maio de 2012

Lisboa - Paris por cinco contos de réis! [3]




Escreve

Amílcar Felício



“Coimbra tem mais encanto, na hora da despedida...” trauteavam meio desafinados Armando e Faustino, para fazer esquecer os últimos sobressaltos de percurso e conseguirem assim um pouco de paz de espírito para enfrentar o resto da viagem. E lá ficava também Coimbra para trás ao som daquele tradicional fado coimbrão entoado às três pancadas, mas na verdade o que mais os preocupava e que não lhes saía da cabeça era a questão: “que mais nos irá acontecer caramba (?)”. Na realidade não precisariam de esperar muito tempo para terem a resposta...

O Inverno estava a ser bastante rigoroso, sendo frequente a queda de uma ou outra árvore para as faixas de rodagem e por vezes até de algumas barreiras que se desmoronavam, o que obrigaria qualquer condutor minimamente prudente a uma condução mais cuidada. Mas... nada que preocupasse o destemido “passador” que acelerava quanto podia. Alguma dezena de quilómetros mais à frente já para lá da Mealhada numa descida bastante pronunciada, a faixa de rodagem do lado contrário estava juncada de terras e de pedras tornando-a totalmente intransitável em quase 50 metros
.
Retirado com a devida vénia de http://www.caminhense.com

O dia começava a dar os primeiros sinais de cansaço, perdendo alguma da sua luminosidade habitual e parecendo querer escurecer. Não havia trânsito àquela hora, talvez por já estar próximo o fim-de-semana. Apenas subia em sentido contrário uma viatura, naturalmente pela mesma faixa de rodagem que era a única transitável, mas o “passador” em vez de abrandar e facilitar a passagem da viatura que subia, ainda acelerou mais até ficarem frente a frente. Parou e saiu ligeiro ao encontro do outro condutor.

Armando sentado no banco da frente e Faustino ainda deitado no banco de trás, para evitar ser visto pelo Comandante por quem tinham passado há pouco em Coimbra, mantinham-se na expectativa esperando que o “passador” dirimisse o diferendo, para continuarem a viagem.  Eis quando Armando olha boquiaberto e nem queria acreditar no que via, ao deparar-se com uma verdadeira cena de um duelo à moda antiga, pois quer um quer outro condutor já estavam de pistola em riste frente a frente a pouco mais de 10 metros um do outro.

Retirado com a devida vénia de
http//www.batuiranet.com

Temendo o pior, Armando saiu aflito da viatura aos gritos de “tenham calma porra (!!!)” e aproximou-se esbaforido do “passador” que só blasfemava “se não queres sair daí vivo, sais morto que eu trato-te já da saúde (!)”. Sabia que ou se impunha naquele momento crítico, ou ficaria definitivamente prisioneiro daquele aventureiro para o resto da viagem. A tropa que tinha tentado fazer dele uma espécie de “máquina de matar”, para lá de lhe ter revelado as energias inesgotáveis e os extraordinários limites da resistência física do corpo humano levando-o a conhecer-se a si próprio, tinha-lhe ensinado também que em situações de apuro, não há lugar para hesitações e há que agir rapidamente. Até nas coisas más da vida há sempre algo de positivo que se pode retirar, o que não deixa de ter alguma piada...

Assim, armando-se “numa de forte” colocou-se à frente do “passador” e ordena-lhe categórico: “você está aqui por nossa conta e vai já guardar essa merda dessa arma, pois só tem metade da razão por que está na sua faixa, mas perde-a completamente porque se esquece de que quem desce deve dar prioridade a quem sobe e ainda por cima está a colocar levianamente 4 pessoas em risco, por isso vai já tirar dali a viatura”! Certamente surpreendido pelo ar perentório de Armando, o facto é que o “passador” se encolheu, obedecendo religiosamente à “ordem” recebida e retirando a viatura. Armando naturalmente sentiu algum conforto e sabia que dali para a frente nada seria como dantes, pois teria também uma palavra a dizer nas suas tresloucadas atitudes.

E lá continuaram estrada fora depois de mais uma peripécia digna de século XIX. Ainda passaram junto ao Regimento de Infantaria 6 na Senhora da Hora em Matosinhos no Porto, aonde Armando e Faustino tinham permanecido largos meses desterrados, que saudaram jovialmente aliviados com um “bye bye, hasta siempre camaradas (!)” seguindo direitos a Braga. Passaram pela cidade dos Arcebispos era já noite cerrada, enfronhando-se uma ou duas horas depois por uma estrada secundária de terra batida, por onde mal cabia a viatura. Já cheirava a terras do fim do mundo.

Na verdade pareciam terras de ninguém, talvez pela escuridão envolvente aonde nem o mais pequeno ponto de luz se vislumbrava. Não se via vivalma, quando inesperadamente foram surpreendidos a seguir a uma curva, por uma potente luz gesticulando freneticamente e seis silhuetas humanas no meio da estrada de canhangulos hirtos apontados na sua direcção. Não havia qualquer hipótese de fuga, obrigando o “passador” a travar bruscamente. Eram seis Guarda-Fiscais de mausers aperradas, que pareciam estar à espera deles armando-lhes uma autêntica emboscada. Armando para manter o moral “das tropas” em que o futuro parecia acabar ali e fingindo alguma frieza para disfarçar o tremelicar do queixo, gracejava baixinho para Faustino: “a viagem chegou ao fim companheiro, até à vista camarada...”.

 O Chefe da Brigada avança decidido para o “passador” de arma em riste, trocando com ele breves palavras imperceptíveis e perguntando-lhe por fim alto e bom som para aonde iam, ao que o “passador” lhe respondeu que iam passar o fim-de-semana a determinada quinta mais à frente. O Guarda retorquiu: “se é assim podem seguir”. Já com o carro em andamento o “passador” comentava eufórico e com ar vitorioso “estes estão comprados perceberam (?)”, mas Armando pelo nervosismo que o “passador” demonstrava, não estava muito convencido. Mas o que é facto, é que também não lhes tinha sido pedido qualquer identificação nem mesmo ao “passador” o que era bastante estranho.

E lá ultrapassavam sorrateiros mais um obstáculo, seguindo viagem naquela noite de breu. Já teriam percorrido seguramente mais de uma boa meia hora de caminho depois daquele encontro inesperado, quando o “passador” para descomprimir o ambiente tenso que se fazia sentir, diz em tom de graça: “vá animem-se, que já falta pouco mais de 10 quilómetros para a fronteira (!)”, parando a viatura e desligando ao mesmo tempo o motor. A uns 50 metros na encosta do lado esquerdo no meio de uma vinha bem tratada era possível ver finalmente umas luzes muito sumidas, que desenhavam os contornos toscos de uma pequena casa aparentemente modesta.

Naquele silêncio sepulcral envolvente o “passador” grita em voz alta: “Mariaaaaa...(!) Mariaaaaa...(!) óh Mariaaaaa...(!)” fazendo ecoar aquele seu grito pela encosta acima. “Olá, Boa Noite (!)” responde uma voz feminina do meio da encosta, ao que o “passador” retorquiu: “óh Maria, chama aí o António (!)”.  “O António não sabia que vinhas hoje e não está cá, nem esteve cá todo o dia (!)” responde-lhe a mesma voz feminina. “Então e como é que eu passo agora, Maria (?)” grita o “passador” com a voz já um pouco alterada. “Olha arrisca (!), eu hoje por aqui não dei conta de nenhuns movimentos (!)” ouve-se nitidamente a voz feminina responder. “Eu estou lixado com vocês, parece que andamos a brincar com isto (!)” diz o “passador”, ao mesmo tempo que arrancava desenfreado.

Armando era um rapaz calmo, ponderado e já com alguma maturidade. Percebia que se tinha constituído uma certa “relação de força” com o “passador” e embora avesso a tais lideranças, sabia que a “força” só entende uma linguagem: a linguagem da “força”. A “força da razão” naquelas circunstâncias de pouco valeria tornando-se numa pura perda de tempo e não havia muito tempo a perder, ainda por cima quando estava em causa a salvaguarda do grupo antes que fosse tarde de mais. Assim, agarra-se ao “passador” que acelerava desbragado, obrigando-o a parar de imediato a viatura e ordenando-lhe sem cerimónias: “você vai já sozinho fazer o reconhecimento do trajecto que falta percorrer e nós vamos ficar aqui escondidos nesta vinha da direita e livre-se de não voltar a aparecer (!)”. E por ali ficaram de cócoras, escondidos no meio da vinha como se fossem uns perigosos bandidos.

Cerca de 30 minutos mais tarde aparece o “passador” gritando: “o caminho está livre, não há qualquer problema podem vir (!)”. Armando e Faustino lá saíram do seu esconderijo de recurso, entrando para a viatura agora mais tranquilos e fazendo o resto do percurso sem qualquer incidente, até junto a um pequeno casebre isolado aonde pararam. Não faziam qualquer ideia aonde estavam, mas isso também não tinha importância nenhuma. O “passador” abriu a porta do casebre, acendeu uma das velas que existiam no local e a única coisa visível para lá das quatro paredes cheias de humidade e de bolor que já crescia aqui e ali, eram uma boa meia dúzia de colchões espalhados com alguma ordem pelo chão.
Retirado com a devida vénia de http://filhadodonodomundo.blogspot.pt

Os relógios não paravam naquele seu tic-tac baixinho que mal se ouve sem ser encostado ao ouvido, empurrando os ponteiros a grande velocidade para a meia-noite. “Chegámos ao fim da primeira etapa” diz o “passador” despedindo-se de Armando e de Faustino e desejando-lhes um resto de Boa Viagem. Antes de partir ainda os foi avisando: “não se assustem porque deve estar a chegar mais um casal com a filha e depois às 3 horas da manhã vem aqui ter com vocês uma rapariga para atravessarem a fronteira e que vos vai levar até à primeira aldeia espanhola, para apanharem a camioneta das 6 horas da manhã para Ourense. Não se preocupem com o bilhete porque já está tudo pago até Paris. Têm é que seguir à risca tudo o que ela vos disser”.
Ourense. Ponte Romana

E assim aconteceu. Pouco depois chegava um casal já trintão com uma menina dos seus 4 ou 5 anos e aonde era possível naquele lusco-fusco, vislumbrar o terror estampado naqueles três rostos simples de gente do povo. Disseram apenas Boa Noite. Armando e Faustino responderam ao cumprimento com uma Boa Noite também e por ali ficaram, pois era evidente que não havia nem de um lado nem do outro vontade para grandes falatórios.

O silêncio de cortar à faca que se tinha instalado naquele casebre bafiento era impressionante e nem se ouvia sequer um bafo de respiração. Era apenas entrecortado aqui e ali pelo Faustino, que com a sua veia meio artística sussurrava baixinho para Armando, percebendo-se contudo alguma ansiedade na voz: “ena pá, que grande filme que eu fazia se tivesse aqui uma máquina de filmar (!), que grande filme caramba...”. Armando não estava lá com muita vontade de discutir cinema àquela hora da noite depois de um dia de tantas emoções e sussurrava-lhe no mesmo tom: “desliga lá a máquina e vê lá mas é se descansas estas 2 ou 3 horas (!)”. E por ali ficaram meio acordados meio a dormiscar naquela cama colectiva, à espera que as 3 horas chegassem e que a rapariga batesse à porta para prosseguirem a viagem.

(CONTINUA)