“Coimbra tem mais encanto, na hora da despedida...”
trauteavam meio desafinados Armando e Faustino, para fazer esquecer os últimos
sobressaltos de percurso e conseguirem assim um pouco de paz de espírito para
enfrentar o resto da viagem. E lá ficava também Coimbra para trás ao som
daquele tradicional fado coimbrão entoado às três pancadas, mas na verdade o
que mais os preocupava e que não lhes saía da cabeça era a questão: “que mais
nos irá acontecer caramba (?)”. Na realidade não precisariam de esperar muito
tempo para terem a resposta...
O Inverno estava a ser bastante rigoroso, sendo frequente a
queda de uma ou outra árvore para as faixas de rodagem e por vezes até de
algumas barreiras que se desmoronavam, o que obrigaria qualquer condutor
minimamente prudente a uma condução mais cuidada. Mas... nada que preocupasse o
destemido “passador” que acelerava quanto podia. Alguma dezena de quilómetros
mais à frente já para lá da Mealhada numa descida bastante pronunciada, a faixa
de rodagem do lado contrário estava juncada de terras e de pedras tornando-a
totalmente intransitável em quase 50 metros
.
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O dia começava a dar os primeiros sinais de cansaço,
perdendo alguma da sua luminosidade habitual e parecendo querer escurecer. Não
havia trânsito àquela hora, talvez por já estar próximo o fim-de-semana. Apenas
subia em sentido contrário uma viatura, naturalmente pela mesma faixa de
rodagem que era a única transitável, mas o “passador” em vez de abrandar e
facilitar a passagem da viatura que subia, ainda acelerou mais até ficarem
frente a frente. Parou e saiu ligeiro ao encontro do outro condutor.
Armando sentado no banco da frente e Faustino ainda deitado
no banco de trás, para evitar ser visto pelo Comandante por quem tinham passado
há pouco em Coimbra, mantinham-se na expectativa esperando que o “passador”
dirimisse o diferendo, para continuarem a viagem. Eis quando Armando olha boquiaberto e nem
queria acreditar no que via, ao deparar-se com uma verdadeira cena de um duelo
à moda antiga, pois quer um quer outro condutor já estavam de pistola em riste
frente a frente a pouco mais de 10 metros um do outro.
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Temendo o pior, Armando saiu aflito da viatura aos gritos de
“tenham calma porra (!!!)” e aproximou-se esbaforido do “passador” que só
blasfemava “se não queres sair daí vivo, sais morto que eu trato-te já da saúde
(!)”. Sabia que ou se impunha naquele momento crítico, ou ficaria
definitivamente prisioneiro daquele aventureiro para o resto da viagem. A tropa
que tinha tentado fazer dele uma espécie de “máquina de matar”, para lá de lhe
ter revelado as energias inesgotáveis e os extraordinários limites da
resistência física do corpo humano levando-o a conhecer-se a si próprio,
tinha-lhe ensinado também que em situações de apuro, não há lugar para
hesitações e há que agir rapidamente. Até nas coisas más da vida há sempre algo
de positivo que se pode retirar, o que não deixa de ter alguma piada...
Assim, armando-se “numa de forte” colocou-se à frente do
“passador” e ordena-lhe categórico: “você está aqui por nossa conta e vai já
guardar essa merda dessa arma, pois só tem metade da razão por que está na sua
faixa, mas perde-a completamente porque se esquece de que quem desce deve dar
prioridade a quem sobe e ainda por cima está a colocar levianamente 4 pessoas
em risco, por isso vai já tirar dali a viatura”! Certamente surpreendido pelo
ar perentório de Armando, o facto é que o “passador” se encolheu, obedecendo
religiosamente à “ordem” recebida e retirando a viatura. Armando naturalmente
sentiu algum conforto e sabia que dali para a frente nada seria como dantes,
pois teria também uma palavra a dizer nas suas tresloucadas atitudes.
E lá continuaram estrada fora depois de mais uma peripécia
digna de século XIX. Ainda passaram junto ao Regimento de Infantaria 6 na
Senhora da Hora em Matosinhos no Porto, aonde Armando e Faustino tinham
permanecido largos meses desterrados, que saudaram jovialmente aliviados com um
“bye bye, hasta siempre camaradas (!)” seguindo direitos a Braga. Passaram pela
cidade dos Arcebispos era já noite cerrada, enfronhando-se uma ou duas horas
depois por uma estrada secundária de terra batida, por onde mal cabia a
viatura. Já cheirava a terras do fim do mundo.
Na verdade pareciam terras de ninguém, talvez pela escuridão
envolvente aonde nem o mais pequeno ponto de luz se vislumbrava. Não se via
vivalma, quando inesperadamente foram surpreendidos a seguir a uma curva, por
uma potente luz gesticulando freneticamente e seis silhuetas humanas no meio da
estrada de canhangulos hirtos apontados na sua direcção. Não havia qualquer
hipótese de fuga, obrigando o “passador” a travar bruscamente. Eram seis
Guarda-Fiscais de mausers aperradas,
que pareciam estar à espera deles armando-lhes uma autêntica emboscada. Armando
para manter o moral “das tropas” em que o futuro parecia acabar ali e fingindo
alguma frieza para disfarçar o tremelicar do queixo, gracejava baixinho para
Faustino: “a viagem chegou ao fim companheiro, até à vista camarada...”.
O Chefe da Brigada
avança decidido para o “passador” de arma em riste, trocando com ele breves
palavras imperceptíveis e perguntando-lhe por fim alto e bom som para aonde
iam, ao que o “passador” lhe respondeu que iam passar o fim-de-semana a
determinada quinta mais à frente. O Guarda retorquiu: “se é assim podem
seguir”. Já com o carro em andamento o “passador” comentava eufórico e com ar
vitorioso “estes estão comprados perceberam (?)”, mas Armando pelo nervosismo
que o “passador” demonstrava, não estava muito convencido. Mas o que é facto, é
que também não lhes tinha sido pedido qualquer identificação nem mesmo ao
“passador” o que era bastante estranho.
E lá ultrapassavam sorrateiros mais um obstáculo, seguindo
viagem naquela noite de breu. Já teriam percorrido seguramente mais de uma boa
meia hora de caminho depois daquele encontro inesperado, quando o “passador”
para descomprimir o ambiente tenso que se fazia sentir, diz em tom de graça:
“vá animem-se, que já falta pouco mais de 10 quilómetros para
a fronteira (!)”, parando a viatura e desligando ao mesmo tempo o motor. A uns 50 metros na encosta do
lado esquerdo no meio de uma vinha bem tratada era possível ver finalmente umas
luzes muito sumidas, que desenhavam os contornos toscos de uma pequena casa
aparentemente modesta.
Naquele silêncio sepulcral envolvente o “passador” grita em
voz alta: “Mariaaaaa...(!) Mariaaaaa...(!) óh Mariaaaaa...(!)” fazendo ecoar
aquele seu grito pela encosta acima. “Olá, Boa Noite (!)” responde uma voz
feminina do meio da encosta, ao que o “passador” retorquiu: “óh Maria, chama aí
o António (!)”. “O António não sabia que
vinhas hoje e não está cá, nem esteve cá todo o dia (!)” responde-lhe a mesma
voz feminina. “Então e como é que eu passo agora, Maria (?)” grita o “passador”
com a voz já um pouco alterada. “Olha arrisca (!), eu hoje por aqui não dei
conta de nenhuns movimentos (!)” ouve-se nitidamente a voz feminina responder.
“Eu estou lixado com vocês, parece que andamos a brincar com isto (!)” diz o
“passador”, ao mesmo tempo que arrancava desenfreado.
Armando era um rapaz calmo, ponderado e já com alguma
maturidade. Percebia que se tinha constituído uma certa “relação de força” com
o “passador” e embora avesso a tais lideranças, sabia que a “força” só entende
uma linguagem: a linguagem da “força”. A “força da razão” naquelas
circunstâncias de pouco valeria tornando-se numa pura perda de tempo e não
havia muito tempo a perder, ainda por cima quando estava em causa a salvaguarda
do grupo antes que fosse tarde de mais. Assim, agarra-se ao “passador” que
acelerava desbragado, obrigando-o a parar de imediato a viatura e ordenando-lhe
sem cerimónias: “você vai já sozinho fazer o reconhecimento do trajecto que
falta percorrer e nós vamos ficar aqui escondidos nesta vinha da direita e
livre-se de não voltar a aparecer (!)”. E por ali ficaram de cócoras,
escondidos no meio da vinha como se fossem uns perigosos bandidos.
Cerca de 30 minutos mais tarde aparece o “passador”
gritando: “o caminho está livre, não há qualquer problema podem vir (!)”.
Armando e Faustino lá saíram do seu esconderijo de recurso, entrando para a
viatura agora mais tranquilos e fazendo o resto do percurso sem qualquer
incidente, até junto a um pequeno casebre isolado aonde pararam. Não faziam
qualquer ideia aonde estavam, mas isso também não tinha importância nenhuma. O
“passador” abriu a porta do casebre, acendeu uma das velas que existiam no
local e a única coisa visível para lá das quatro paredes cheias de humidade e
de bolor que já crescia aqui e ali, eram uma boa meia dúzia de colchões
espalhados com alguma ordem pelo chão.
Retirado com a devida vénia de http://filhadodonodomundo.blogspot.pt |
Os relógios não paravam naquele seu tic-tac baixinho que mal
se ouve sem ser encostado ao ouvido, empurrando os ponteiros a grande
velocidade para a meia-noite. “Chegámos ao fim da primeira etapa” diz o
“passador” despedindo-se de Armando e de Faustino e desejando-lhes um resto de
Boa Viagem. Antes de partir ainda os foi avisando: “não se assustem porque deve
estar a chegar mais um casal com a filha e depois às 3 horas da manhã vem aqui
ter com vocês uma rapariga para atravessarem a fronteira e que vos vai levar
até à primeira aldeia espanhola, para apanharem a camioneta das 6 horas da
manhã para Ourense. Não se preocupem com o bilhete porque já está tudo pago até
Paris. Têm é que seguir à risca tudo o que ela vos disser”.
Ourense. Ponte Romana |
E assim aconteceu. Pouco depois chegava um casal já trintão
com uma menina dos seus 4 ou 5 anos e aonde era possível naquele lusco-fusco,
vislumbrar o terror estampado naqueles três rostos simples de gente do povo.
Disseram apenas Boa Noite. Armando e Faustino responderam ao cumprimento com
uma Boa Noite também e por ali ficaram, pois era evidente que não havia nem de
um lado nem do outro vontade para grandes falatórios.
O silêncio de cortar à faca que se tinha instalado naquele
casebre bafiento era impressionante e nem se ouvia sequer um bafo de
respiração. Era apenas entrecortado aqui e ali pelo Faustino, que com a sua
veia meio artística sussurrava baixinho para Armando, percebendo-se contudo
alguma ansiedade na voz: “ena pá, que grande filme que eu fazia se tivesse aqui
uma máquina de filmar (!), que grande filme caramba...”. Armando não estava lá
com muita vontade de discutir cinema àquela hora da noite depois de um dia de
tantas emoções e sussurrava-lhe no mesmo tom: “desliga lá a máquina e vê lá mas
é se descansas estas 2 ou 3 horas (!)”. E por ali ficaram meio acordados meio a
dormiscar naquela cama colectiva, à
espera que as 3 horas chegassem e que a rapariga batesse à porta para
prosseguirem a viagem.
(CONTINUA)