Daniel Teixeira
FALAR DE MONTANHEIROS
Tenho lido amiúde e de forma dispersa no tempo e nos temas
alguma coisa sobre as denominações e terminologia própria dos Montes do
Interior algarvio e embora não tenha consultado o Dicionário do falar algarvio
de Brazão Gonçalves e não sabendo portanto se esta terminologia que vou referir
vem lá expressa e desenvolvida vou escrever esta crónica com base naquilo que
conheço por ouvir dizer (pronunciar) e isto ainda sem dar uma atenção específica
àquilo que li noutras fontes.
Não se trata de um exercício egoísta ou de desconsideração
sobre aquilo que outros já escreveram sobre estes termos (que não são muitos na
minha memória) mas trata-se sim de os manter enquadrados nos momentos próprios
e ambientes em que eles foram ditos de forma isolada ou repetida na minha
presença.
A minha avó por exemplo não sabia, não conseguia e não
queria dizer «máquina» referindo-se a uma qualquer ou tão simplesmente à
máquina de costura: para ela era «mánica» e nem as constantes correcções nossas
a faziam demover da sua ideia: «é máquina que se diz avó!!» mas ela mantinha-se
na sua, não por birra, conforme me fui apercebendo, mas porque fazia parte dela
já esse termo.
Infelizmente não tive oportunidade (convenhamos, era uma
criança...) de comparar com o que as outras mulheres, sobretudo, diziam sobre
estes objectos mas lembro-me de que anos mais tarde ter ouvido que «as mánicas
da tropa arranjaram alguns caminhos do Monte de Alcaria Alta» misturado com
algumas «máquinas».
Tive de percorrer no Google um relativamente longo caminho
para encontrar num sítio de anedotas sobre alentejanos alguma coisa que me
desse para escrever mais umas linhas sobre este assunto. E é assim: «- Oh pai,
isto éi uma mánica , daquelas muito sufisticadas para cortar as árvores , faz
logo o trabalho todo . Fui agora mesmo buscá-la á do Fialho a Evora . Querem
vê-la a trabalhari !?»
Há também em Italiano algumas coisas que referem esta
terminologia mas com base diferente uma vez que se referem à posse: talvez
minha = ma + coisa = nica sendo este conceito bem mais geral no sentido
português do «é minha!!» com algum sentido também do conjunto «é minha e eu sou
o que é meu», isto visto numa forma muito geral e só para ilustrar.
Ora embora se possa chegar à conclusão de que se trata de
uma deturpação do termo base «máquina» (pelo menos a acreditar no falejar da
anedota alentejana) certo me parece ser que a primeira vez que a minha avó deve
ter visto «mánicas» foi precisamente nos períodos de ceifa nas Herdades do
Alentejo.
A tentação de juntar estas coisas faz parte da natureza
humana, certo, mas vamos admitir que esta propensão para a utilização do termo
«mánica» em vez de «máquina» tenha a sua origem no calão alentejano, pelo menos
neste caso.
«Pial» que eu tenho visto referido nalguns textos sobre os
Montes do Concelho de Alcoutim não me lembro de o ter ouvido: sempre me foi
referido «sente-se aí no poial» - por exemplo e embora se admita uma redução
geral algarvia pelo «comer» de sonoridades de mais difícil pronúncia nunca
ouvi. Arreata por exemplo é bem mais difícil de pronunciar do que rédea e não
foi «comida» ou substituída pelo seu equivalente.
Há aqui uma questão de estatuto também, rédea é de animal nobre,
cavalo, e arreata dá para os humildes burros e mesmo para os híbridos muares.
Será a questão do estatuto suficiente para levar à separação das utilizações?
Já «escaleiras» em vez de escadas vem nitidamente do espanhol e não me lembro
de se utilizar o termo escadas.
Ora, comecei pelo termo «mánica» e por ele irei terminar,
ainda que num outro plano: os animais, sobretudo os muares (e mesmo os cavalos)
tinham de ser tratados com «pezinhos de lã» no que se refere a sustos ou coisas
que os assustassem. Os asininos também sofriam de um descontrole em face do
desconhecido que os fazia entrar em parafuso mas eram relativamente
controláveis: baixinhos, bastava desmontar mesmo a salto e tratar do assunto
depois.
Ora nos cavalos era preciso aguentar a parada (empinar e
correria) e para isso era preciso ter experiência de montar e treino suficiente
para não fazer asneira. Os muares, quando em carroça, neste caso em dupla, dos
lavradores Vilão, que foi os que conheci neste plano entravam em processo de
«espanto» (dizia-se espantaram-se) com aquilo que na altura achávamos ser uma
coisinha de nada.
Como eram dois a puxar a gente parava o carro e virava-os de
forma a que não vissem o objecto do potencial espanto, mas como eram dois
bastava que um visse para que o processo fosse comum. Neste caso que vou
contar, talvez o mais grave que nos aconteceu dado o acidentado do terreno da
disparada dos dois animais, um indivíduo de Giões resolveu comprar uma «mánica»
motorizada em vermelho vivo que até a mim me assustaria.
Ora um tio meu estava de férias no Monte e não havendo ainda
telefone em Alcaria Alta
e tendo ele um estabelecimento em Lisboa um dos empregados telefonou para Giões
por uma questão qualquer que precisava de uma solução do proprietário.
Simpaticamente o tal homem da motorizada vermelha
ofereceu-se para dar um saltinho a Alcaria Alta dizer-lhe que de lá tinham
pedido para ele ligar para Lisboa.
Pois bem «apanhámos» (nós e os muares) a motorizada vermelha
à nossa saída do Monte em frente à Cerca do Toril na parte que era da minha Tia
Bia e as duas mulas entraram em disparada enveredando em direcção aos Farelos.
Quem conduzia era o Manelito Vilão e cá atrás na caixa íamos três: a gente na
nossa inocência achámos piada porque íamos num carro de corrida.
O carro dava saltos (eram ainda rodas de aro de madeira) e
só nos apercebemos de que a coisa podia ser grave quando ele nos disse para nos
deitarmos no fundo do carro porque o carro podia virar.
O Manelito Vilão (já falei do falecimento dele por ataque
cardíaco aqui no Hospital de Faro) gaguejava um pouco mas a ordem de nos
deitarmos e agarrarmo-nos bem veio toda sem gaguejo.
Ele lá conseguiu controlar os animais ao fim de bastante
tempo, mas quando me relembro de tudo penso que o carro a virar-se era
indiferente estarmos deitados ou de pé: os animais continuariam na sua correria
arrastando a carroça e muito pouca coisa nos salvaria estando dentro dele.
O susto demorou a passar: ficámos ali um bom bocado a
respirar fundo. Depois encetámos o caminho de regresso. Pois bem...felizmente
que o nosso destino inicial era uma horta frondosa a cerca de 50 metros da estrada.
Achei estranho ele meter o carro em maior velocidade minutos depois correndo-se
em direcção às árvores da parte traseira da horta até que olhei para o Monte e
para a serpenteada estrada. Lá ao longe vinha a «mánica» vermelha.
Chegámos mesmo a tempo de tapar da vista dos animais o até
para mim insólito objecto. E lá ia ele, com o meu enorme e pesado tio na boleia
quase arrastando os pés pelo chão.
Levámos muito mais tempo que o costume a regar a horta, a
sachar, a limpar as árvores. Só faltou dar-lhes brilho...e só saímos dali
depois do regresso do meu tio e do regresso a Giões do motociclista.