Escreve
Daniel Teixeira
A MINHA AVÓ COELHO (a)
A minha «Avó Coelha» como lhe chamávamos era de facto minha
tia avó e era uma velhota extremamente bonita, tinha aquele ar de senhora
mesmo, como se dizia também por lá embora a «maldição» do costumeiro chapéu e
do lenço apenas deixasse ver um pouco dos seus lindos cabelos brancos na zona
da fronte e pouco mais.
Tínhamos um grande carinho por ela e agora penso se também não haveria um pouco de piedade da minha parte, mas de uma forma ou de outra, por simpatia directa ou intermediada pela pena dela ser cega o certo era que gostávamos todos os três irmãos e uma irmã adoptada de ir buscá-la a casa dela para a levar a casa da filha.
Vivia no Além (já aqui falei dos «bairros»em Alcaria Alta ) e a
filha dela (minha Tia Bia) morava na Praça. O Além e a Praça são os lados
nascente e poente do Monte e era preciso percorrer uma enfiada de azinhagas
ainda no Além, atravessar o Rossio passando em frente à casa da minha tia-avó
Zabelinha e subir uma relativamente bastante inclinada azinhaga logo ao lado do
agora local da ex-escola primária, desembocar em frente à casa da mãe do
Sebastião (agora psicólogo) e fazer mais cerca de 50 metros até à porta do
quintal da minha Tia Bia. Dado o estado dos caminhos era um percurso demorado
acrescentado pelo facto dela não ver. Coisas que acontecem e que a gente chega
a pensar se é melhor ser cego de nascença ou cegar numa idade já adulta.
Claro que não é melhor nem uma coisa nem outra, são as duas más, mas deve ser muito doloroso mesmo ter levado cerca de 50 anos a ver e de repente perder a vista. Não sei exactamente qual foi a causa mas sei que ela ainda esteve no velho hospital de Faro, agora sede da Misericórdia e na altura Hospital na sua grande parte servido em enfermagem por Freiras e propriedade da Misericórdia de Faro.
Tinha esta minha «avó» de nome um grande e natural desgosto por ter perdido a vista e não se podia falar nisso com ela. O facto de dizermos «veja» era suficiente para a vermos a chorar. Por isso o termo «ver» não podia ser usado, mesmo que não quiséssemos mesmo significar com a sua utilização ver, mas sim utilizando-o como forma de expressão.
Andava a meses como se dizia por lá: um mês na sua casa que era ao lado da casa do filho e logo indirectamente em casa do filho, o Ti Zé Coelho, outro mês em casa da filha que viviaem
Alcaria Alta , altura em que lá passava o dia e ia dormir a
sua casa no Além. Era quando nós a íamos buscar, de manhã. Quem a levava sempre
à tardinha era a filha para a ajudar a deitar-se também. No terceiro mês deste
calendário «a meses» ia para casa da filha que vivia em Giões, casada com o meu
Tio José Teixeira aqui já falado em anteriores crónicas, e que por princípio a
vinha buscar no seu carro de mula.
Foram raras as vezes que a vimos partir para Giões. Quase nunca calhava no nosso tempo de estadia por lá, pelo que a maior parte do tempo ela estavaem Alcaria Alta quando
nós lá estávamos. Fazia malha, meias mais propriamente, e era assim que
entretinha a vida. Viúva - nunca cheguei a conhecer o seu marido - tinha um
filho que não teve filhos. Lembro-me vagamente da mulher dele -
encontrávamo-nos por vezes na Valdégua, uma parte da horta com este nome
dividida entre os dois irmãos (minha tia e meu tio) mas que nós usávamos muito
sobretudo para a brincadeira. Tinha dois poços, um de escaleiras e um outro de
puxar de balde com corda e como se podia gastar água em justa medida
aproveitávamos para fazer os banhos caseiros: balde de água - sabão - balde de
água
Este meu tio ficou viúvo relativamente cedo e podia ter casado de novo, pretendentes não lhe faltaram ao que soube. Não era muito dado, como se usava dizer das pessoas pouco expansivas, também, mas era simpático: dormi uma noite em casa dele, já pelos meus 20 anos, não me lembro exactamente por qual razão porque quartos livres não faltavam por aqueles sítios mesmo que a nossa casa não tivesse lugares disponíveis.
Levava a sua lavoura e o tratamento das hortas naquilo que eu hoje acho ser uma quase clandestinidade: tínhamos hortas vizinhas, como a Valdégua que já referi, mas não me lembro de alguma vez o ter encontrado na labuta da rega. Não sei exactamente porque reparo nisto, mas era suposto termos uma relação mais chegada e tal não acontecia.
Escrevo muito sobre falecimentosem Alcaria Alta , sei isso perfeitamente, mas também
é preciso ter em conta que quase todo o pessoal que eu conheci por lá foi
falecendo e que para falar das suas vidas e dos meus contactos com eles não
posso esquecer isso. é triste mas o tempo foi passando: mesmo os mais novos por
uma razão ou por outra desapareceram e neste caso do meu Tio/Primo Zé Coelho
fui assistir ao seu velório feito ali em casa dele, no quarto dele mesmo, onde
já em caixão ficou à espera do dia seguinte para seguir para Giões.
O quarto era pequeno e as pessoas que iam ficando na rotação do velório não deixavam nenhum espaço livre; algumas conseguiam sentar-se, outras ficavam de pé e para entradas e saídas era um acotovelar obrigatório. De quando em vez vínhamos cá fora tomar ar, fumar um cigarro e ouvir os tradicionais «a vida é assim» ou «é o caminho que todos temos de seguir» ou «era um bom homem» o que de facto era embora como já disse muito metido consigo mesmo. Tínhamos mesmo de ir lá vê-lo a casa ou no largo entre a sua casa e a casa da sua mãe porque não era mesmo pessoa de visitas a casa dos outros, nem mesmo da irmã a não ser por razões de negócios ocasionais.
Sobre ritos funerários li bastante, não tudo porque em Portugal não há uma cultura especificamente direccionada para o estudo dos cultos e do luto, pelo menos que eu saiba, mas agora e passados estes anos todos lembro-me das carpideiras relatadas no Norte de Portugal num estudo universitário e lembro-me também que por ali era difícil ver alguém chorar nos funerais. Havia a comoção, havia lágrimas, mas salvo nas alturas do cortejo funerário não se ouvia mais que soluços logo abafados pelo ombro ou pelo consolo de próximos.
Ao mesmo tempo lembro-me dos cultos mortuários em pleno período já da Renascença, em que em ambiente urbano, os quartos dos falecidos ficavam literalmente repletos, não só de familiares e conhecidos mas de qualquer pessoa mesmo: bastava que vissem o padre passar para a extrema unção que era de tradição segui-lo e entrar na casa do normalmente já falecido.
Quando do falecimento do meu primo Zé Francisco, tempo antes deste do Ti Zé Coelho, apercebi-me que a minha prima viúva dele queria fazer aquilo a que se pode chamar de sinalização e resguardo de luto entalando panos pretos nas pedras da casa e dos cercados aparentemente para assim informar as pessoas que naquela casa havia um falecido do que foi demovida pela minha mãe sob argumento de que «isso já não se usa».
Não se usava mas usou-se, sendo assim: o objectivo, penso eu, seria talvez não tanto informar as pessoas de um evento que num meio pequeno como era Alcaria Alta era logo de conhecimento público, mas talvez mais fazer um resguardo, quase sacro, uma «defesa» do descanso do defunto.
Nunca aprofundei isto, os cultos funerários vão-se perdendo também em favor dos funerais relâmpago de agora e as recolhas que tenho lido usam cerca de 70% das anotações da Idade Média, normalmente referindo as doações à Igreja feitas pelos falecidos.
Não vem a talhe de foice um pouco de humor nesta situação mas quando do falecimento de um outro familiar de Alcaria Alta, na Igreja de Giões, o Padre que veio de Mértola porque não havia outro disponível nas paróquias do Concelho fez o serviço dele encomendando a alma do defunto e dizendo a respectiva Missa.
Ficámos ali no Largo da Igreja conversando um pouco e ao fim de cerca de meia hora vimos que o carro onde tinha vindo o Padre, o carro funerário, não arrancava e que o pároco ali estava sentado imóvel como se estivesse rezando para si mesmo. Todos achámos muito bem, aquele recolhimento, em alma de uma pessoa que ele só tinha visto uma vez e já falecida até que alguém se lembrou que na confusão dos irmãos e dos primos ninguém sabia quem pagava ao Padre até que se chegou à conclusão que entre todos os possíveis pagadores todos eles tinham pensado que tinha sido o outro.
Lá se foi pagar ao Senhor Padre com pedidos das maiores desculpas. Ele, delicado, ali tinha ficado aquele tempo todo, nada dizendo sobre isso nem mandando dizer...
Tínhamos um grande carinho por ela e agora penso se também não haveria um pouco de piedade da minha parte, mas de uma forma ou de outra, por simpatia directa ou intermediada pela pena dela ser cega o certo era que gostávamos todos os três irmãos e uma irmã adoptada de ir buscá-la a casa dela para a levar a casa da filha.
Vivia no Além (já aqui falei dos «bairros»
Claro que não é melhor nem uma coisa nem outra, são as duas más, mas deve ser muito doloroso mesmo ter levado cerca de 50 anos a ver e de repente perder a vista. Não sei exactamente qual foi a causa mas sei que ela ainda esteve no velho hospital de Faro, agora sede da Misericórdia e na altura Hospital na sua grande parte servido em enfermagem por Freiras e propriedade da Misericórdia de Faro.
Tinha esta minha «avó» de nome um grande e natural desgosto por ter perdido a vista e não se podia falar nisso com ela. O facto de dizermos «veja» era suficiente para a vermos a chorar. Por isso o termo «ver» não podia ser usado, mesmo que não quiséssemos mesmo significar com a sua utilização ver, mas sim utilizando-o como forma de expressão.
Andava a meses como se dizia por lá: um mês na sua casa que era ao lado da casa do filho e logo indirectamente em casa do filho, o Ti Zé Coelho, outro mês em casa da filha que vivia
Foram raras as vezes que a vimos partir para Giões. Quase nunca calhava no nosso tempo de estadia por lá, pelo que a maior parte do tempo ela estava
Este meu tio ficou viúvo relativamente cedo e podia ter casado de novo, pretendentes não lhe faltaram ao que soube. Não era muito dado, como se usava dizer das pessoas pouco expansivas, também, mas era simpático: dormi uma noite em casa dele, já pelos meus 20 anos, não me lembro exactamente por qual razão porque quartos livres não faltavam por aqueles sítios mesmo que a nossa casa não tivesse lugares disponíveis.
Levava a sua lavoura e o tratamento das hortas naquilo que eu hoje acho ser uma quase clandestinidade: tínhamos hortas vizinhas, como a Valdégua que já referi, mas não me lembro de alguma vez o ter encontrado na labuta da rega. Não sei exactamente porque reparo nisto, mas era suposto termos uma relação mais chegada e tal não acontecia.
Escrevo muito sobre falecimentos
O quarto era pequeno e as pessoas que iam ficando na rotação do velório não deixavam nenhum espaço livre; algumas conseguiam sentar-se, outras ficavam de pé e para entradas e saídas era um acotovelar obrigatório. De quando em vez vínhamos cá fora tomar ar, fumar um cigarro e ouvir os tradicionais «a vida é assim» ou «é o caminho que todos temos de seguir» ou «era um bom homem» o que de facto era embora como já disse muito metido consigo mesmo. Tínhamos mesmo de ir lá vê-lo a casa ou no largo entre a sua casa e a casa da sua mãe porque não era mesmo pessoa de visitas a casa dos outros, nem mesmo da irmã a não ser por razões de negócios ocasionais.
Sobre ritos funerários li bastante, não tudo porque em Portugal não há uma cultura especificamente direccionada para o estudo dos cultos e do luto, pelo menos que eu saiba, mas agora e passados estes anos todos lembro-me das carpideiras relatadas no Norte de Portugal num estudo universitário e lembro-me também que por ali era difícil ver alguém chorar nos funerais. Havia a comoção, havia lágrimas, mas salvo nas alturas do cortejo funerário não se ouvia mais que soluços logo abafados pelo ombro ou pelo consolo de próximos.
Ao mesmo tempo lembro-me dos cultos mortuários em pleno período já da Renascença, em que em ambiente urbano, os quartos dos falecidos ficavam literalmente repletos, não só de familiares e conhecidos mas de qualquer pessoa mesmo: bastava que vissem o padre passar para a extrema unção que era de tradição segui-lo e entrar na casa do normalmente já falecido.
Quando do falecimento do meu primo Zé Francisco, tempo antes deste do Ti Zé Coelho, apercebi-me que a minha prima viúva dele queria fazer aquilo a que se pode chamar de sinalização e resguardo de luto entalando panos pretos nas pedras da casa e dos cercados aparentemente para assim informar as pessoas que naquela casa havia um falecido do que foi demovida pela minha mãe sob argumento de que «isso já não se usa».
Não se usava mas usou-se, sendo assim: o objectivo, penso eu, seria talvez não tanto informar as pessoas de um evento que num meio pequeno como era Alcaria Alta era logo de conhecimento público, mas talvez mais fazer um resguardo, quase sacro, uma «defesa» do descanso do defunto.
Nunca aprofundei isto, os cultos funerários vão-se perdendo também em favor dos funerais relâmpago de agora e as recolhas que tenho lido usam cerca de 70% das anotações da Idade Média, normalmente referindo as doações à Igreja feitas pelos falecidos.
Não vem a talhe de foice um pouco de humor nesta situação mas quando do falecimento de um outro familiar de Alcaria Alta, na Igreja de Giões, o Padre que veio de Mértola porque não havia outro disponível nas paróquias do Concelho fez o serviço dele encomendando a alma do defunto e dizendo a respectiva Missa.
Ficámos ali no Largo da Igreja conversando um pouco e ao fim de cerca de meia hora vimos que o carro onde tinha vindo o Padre, o carro funerário, não arrancava e que o pároco ali estava sentado imóvel como se estivesse rezando para si mesmo. Todos achámos muito bem, aquele recolhimento, em alma de uma pessoa que ele só tinha visto uma vez e já falecida até que alguém se lembrou que na confusão dos irmãos e dos primos ninguém sabia quem pagava ao Padre até que se chegou à conclusão que entre todos os possíveis pagadores todos eles tinham pensado que tinha sido o outro.
Lá se foi pagar ao Senhor Padre com pedidos das maiores desculpas. Ele, delicado, ali tinha ficado aquele tempo todo, nada dizendo sobre isso nem mandando dizer...